Franchico & Matilde




Como são estranhos os caminhos e descaminhos do amor... Recordo-me de meu amigo Franchico, o qual eu tinha contato à época da faculdade. Homem de voz mansa, sempre ponderado, diplomático e inteligente. Gostava de literatura, música clássica, tinha um bom emprego no serviço público e levava a vida com tranquilidade, morando sozinho.

Franchico, claro, já tivera suas desilusões amorosas. Chegou a ser casado (embora não formalmente) e tinha uma filha que morava com a ex-companheira. Não deixava se abalar, porém, e sabia se cuidar na vida de solteiro. Se a semana era consumida no trabalho e estudos, reservava os fins de semana para os amigos, para churrascos, festas e cinema. E gostava bastante de festas e bebidas, sendo conhecido como "bom de bico". Também era muito bom de papo, sendo difícil não se ter uma conversa agradável com Franchico. E, senhor de si, esse fator lhe garantia certo sucesso com as mulheres.

Não tenho ao certo informações sobre o desempenho amoroso dele nesse período. Parecia-me, às vezes, que estava de certa forma exaurido e queria ficar sozinho. Lembro uma vez que fui com alguém na casa dele, um domingo à noite, acho que para buscar um livro ao algo assim, e chegamos justamente no momento que Franchico voltava de uma festa. Após nos cumprimentar com sua educação costumeira, pediu-nos licença, virou o rosto e começou a vomitar no meio da rua. Não pude disfarçar certo constrangimento, mas Franchico é assim, nunca negou suas humanidades.

Outra coisa que eu admirava em Franchico era sua inabalável paciência e vasta sabedoria. Gostava de filosofia, de poesia e de fazer reflexões sobre a vida. Uma frase que marcou e que nunca irei esquecer é a que estabelecia o ponto central que, entendia, deveria balizar a aproximação a uma mulher: "todas as mulheres são mal-amadas". Mas hoje, nos tempos do celular e da internet, da informação rápida e da frivolidade, começo a duvidar dessa máxima. Talvez as mulheres começaram a esquecer o amor.

Também era muito difícil tirar Franchico do sério. Sempre bem-humorado e com sua paciência tipo oriental, sabia administrar muito bem o seu tempo. Muitas vezes passava as tardes de sábado e domingo imerso em leituras, quando esquecia completamente as mulheres e badalações. Queria eu ter essa capacidade de seccionar o pensamento, esse é mais um aspecto que sempre lhe invejei. Talvez por isso, eu e outros amigos tínhamos como hobby atrapalhar o Franchico nesses períodos. Para suprir o tédio que batia nas tardes de sábado e domingo, numa época que não existia Internet e que celular era artigo de luxo, usávamos um serviço de multi-conversa disponibilizado pelo telefone. Entrávamos em contato com homens interessados em encontros homossexuais ou mulheres de estirpe duvidosa, e dávamos o número do telefone e o nome de Franchico. O mais incrível é que, às vezes, ele conversava longamente com as pessoas. Morremos de rir quando ele relatou os conselhos que estava dando a uma dessas mulheres, que sentia angústia e desilusão amorosa. Quase marcou encontro com ela. Bom, se marcou, não sei dizer.

Em todo caso, não posso falar muito do lado festeiro e boêmio de Franchico. O que me marcava eram as suas reflexões, pensamentos, a forma mansa de aceitar a vida e procurar ter o melhor proveito dela. Talvez por isso às vezes eu me via surpreso com esse gosto por bebidas e alguns amigos, de certo modo, extravagantes. Lembro, inclusive, que ele tinha certa tara por uma vizinha, a qual via a silhueta nua pelo vidro de uma janela. Era uma mulher que não tinha um braço, e parece que isso muito o fascinava.

Caminhos e acasos da vida, certa vez passamos as férias num balneário. Convidamos o Franchico para ficar uns dias por lá, assim que o trabalho lhe permitisse. Sempre prestativo e disponível à vida social, ele foi.

Tipo de evento que hoje eu não mais participaria, era época de carnaval, de calor intenso, de acomodação sem muito conforto, música baiana, praia lotada... À noite, trio elétrico na rua. Até tentei me adaptar, mas acabei percebendo, não sem certa frustração pelo isolamento, que aquele não era meu estilo de vida. Para Franchico, no entanto, tudo era festa. Sempre com uma cerveja à mão, usando sua sunga de praia preta e camiseta colorida, adaptava-se facilmente a esse tipo de ambiente. Um intelectual bastante flexivo aos trejeitos populares.

Foi justamente essa flexibilidade que o levou a se aproximar de Matilde. Ela era amiga da namorada de meu irmão e, por acaso, estava por ali numa noite de carnaval. Acabou juntando-se ao grupo e se aproximando de Franchico, dada a sua simpatia, conversas interessantes e animação para beber e dançar. Aliás, beber e dançar era com Matilde mesmo. Mulher de cidade do interior, também já tinha sido casada, teve uma filha e sua fama não era das melhores, pois já tinha ficado com muitos caras desde então. Pelo menos era o que se dizia, nunca a conheci o suficiente para questionar sua índole (se é que isso seja motivo para se questionar a índole de alguém).

Como nosso grupo era pequeno e de gostos distintos, acabávamos nos separando e nos encontrando vez ou outra. Num desses encontros, percebi que Franchico e Matilde andavam sozinhos, perambulando, bebendo e dançando, junto à multidão, atrás do trio elétrico. E ficou claro o que estava acontecendo. O nível de intimidade fora crescendo e os dois já não apenas conversavam e dançavam juntos, também se abraçavam e beijavam.

Ficará eternamente em minha mente a cena de Matilde recostando-se a um muro e vomitando intensamente, lata de cerveja numa mão, a outra apoiada no muro. No ombro, a mão confortadora de Franchico. Ela passava muito mal, mas eles não desistiam de nada. Voltavam à folia, continuavam bebendo e beijando. Isso mesmo! Mal Matilde acabara de vomitar, Franchico dava-lhe um beijo na boca. Muita gente se impressionou quando contei essa história. Hoje sei que isso apenas exemplificava a intensidade do amor que nascia ali ? coisa na qual ninguém apostava, dadas as aparentes diferenças dos dois.

O tempo passou e ficamos sabendo que Franchico viajava nos fins de semana para estar ao lado dela. Não durou muito tempo até que ele conseguisse uma transferência para a mesma cidade dela. Em termos de carreira, isso representava um passo para trás. Mas, certamente, inteligente e sensato com as coisas da vida, Franchico sabia muito bem ponderar cada aspecto necessário para sua paz e felicidade.

Assim, os anos foram passando. Franchico teve mais um filho, agora com Matilde. Mora na cidade do interior, continua exatamente no mesmo emprego, não estuda mais, leituras tornaram-se raras, festas só com moderação e diante de um seleto grupo de amigos. Franchico virou um homem de família, no fundo muita gente gostaria de ter uma vida assim. Pena que ele tenha descoberto que, por mais que tente ser lógico e racional na busca pela felicidade, por mais que se dedique em conquistar as coisas e estabelecer sua paz interior, a felicidade acaba se resumindo à própria busca. Hoje, diante de tudo que conquistou, e por mais agradecido que esteja consigo mesmo por tê-lo feito, ele sente saudades de suas reflexões de solteiro, da liberdade de ir e vir, apesar da solidão eventual da época em que praticamente só tinha compromisso consigo mesmo.

Se ao boêmio faltava a segurança de uma vida estável para controlar seu ímpeto, ao marido estabilizado falta a imprevisibilidade do boêmio. Infelizmente nunca nos sentiremos completos. Mas é esse dinamismo que nos faz seguir na vida, apesar da necessidade de pesar com cuidado as decisões, pois caminhos há sem retorno. Por isso Franchico decidiu continuar com sua vida atual, vendo o tempo passar, os filhos crescerem, e envelhecendo em paz.

Autor: José Marcelo Rigoni


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