Conflitos de Gênero



DESMITIFICANDO O PAPEL DO DIREITO PENAL DE RESOLVER CONFLITOS DE GÊNERO*

Marcio Renard Lima de Araújo **
Tiago José Mendes Fernandes

Sumário: Introdução; 1 Breve Histórico do Partriarcalismo; 2 Vitimação x Autoria; 3 Discussão atinente a criminalidade de gênero; Conclusão; Referências.

RESUMO
Apresenta-se um breve histórico do partriarcalismo do sistema econômico hoje predominante, ou seja, o capitalismo, fazendo-se em seguida uma análise com base no estudioso Lombroso no que diz respeito vitimação e autoria, concluindo com os célebres mestres da criminologia crítica, Vera Andrade e Alessandro Baratta, a respeito da criminalidade de gênero, tema central do artigo.

PALAVRAS-CHAVE
Patriarcalismo do sistema capitalista e criminalidade de gênero.

Introdução

O presente artigo pretende elucidar aspectos do partriarcalismo do sistema capitalista, gerando certa segregação entre homens e mulheres. A partir daí, analisar como se criou uma vitimação na figura da mulher, e a autoria de fatos delitivos da figura do homem para isso será feito o estudo do paradigma etiológico representado na obra de Lombroso. Esse médico legista italiano analisava característica física e psíquica, e alegava que as mesmas eram as principais causadoras da criminalidade.
Mostrar-se a também que mesmo com a mudança do paradigma etiológico para o paradigma Labelling Approach. Este último discutia mais o poder de criminalização que dispõe do poder econômico político, tem de criminalizar posturas dos estados sociais inferiores. Mesmo com essa revolução ocorrida do mundo criminológico as idéias etiológicas se perpetuam no senso comum penal, que é a ideologia penal dominante.
Além disso, será feito o estudo a mister da dicotomia do duplo eixo de exigência do movimento feminista, que recorre ao sistema penal visivelmente classista, racista e SEXISTA.

1 Breve Histórico do Partriarcalismo

Para falar do patriarcalismo, não resumindo sua história aos dias atuais é interessante utilizar a obra de Fustel de Coulanges, "A Cidade Antiga". Para iniciar análise é fundamental observar desde o Culto aos Mortos, que era o ritual de oferenda de bebidas e repastos fúnebres feitos aos defuntos, conjuntamente a essa veneração que ocorria nos "cemitérios" havia também o culto ao Fogo Sagrado, isso era feito no altar onde se mantinha sempre uma quantidade de carvões aceso, e essa manutenção dos carvões cabia aos filhos e esposas.
O essencial disso, é que não havia um Fogo Sagrado para cada membro da família, mas sim exclusivamente para os antepassados do sexo masculino, considerado membro superior em força e sabedoria, a função da mulher era se submeter a isso não tendo o direito de discordar de nenhuma decisão de seu marido, cabendo a ela a tarefa de cuidar do lar e dos filhos.

Cumpre frisar que essa religião do Fogo Domestico e dos antepassados, que era transmitida em linhagem masculina, não pertencia, contudo, unicamente ao homem: a mulher participava do culto. Como filha, assistia aos atos religiosos de seu pai; como mulher casada, àqueles de seu marido

Dessa maneira elucidado o inicio da fundamentação patriarca lista, que surgiu a a partir de uma religião doméstica.
Na idade média, nada foi diferente do que aconteceu na antiguidade clássica, o homem utilizando-se de sua virilidade dominava a relação matrimonial, obrigando mais uma vez a mulher a uma posição submissa. De novo cabendo a ela as funções domésticas, e o homem tinha o poder de ultrapassar os muros domestico discutindo política e economia determinando o futuro das nações e de todas as relações institucionais.
Assim fundou-se o patriarcalismo da atualidade, fundamentado nas mesmas concepções que sobrevivem desde a antiguidade clássica.

2 Vitimação x Autoria

No senso comum penal e em todas as agências do Direito Penal é fácil perceber sempre que se pensa na autoria de atos delitivos se imagina o autor sendo homem, mas tal fato não pertence somente à atualidade ele é remanescente do paradigma etiológico que com a escola positiva, representada principalmente pelo médio italiano Cesare Lombroso, distinguiu a autoria e a vitimação dentro da criminalidade.
Lombroso viveu numa época determinista a partir de causas prontas para obtenção de conseqüências determinadas, assim sendo um evento científico fundamentado nessa teoria a exemplo da física, demonstrando que água quando colocada a uma temperatura de 100° C nas condições normais de temperatura e pressão, ela certamente irá evaporar. Assim Lombroso primeiramente se utilizou desse determinismo nos "delitos" do mundo animal (animais e plantas) afirmando que para plantas e animais assumirem "posturas delituosas", eles precisam de características interiores determinantes para tais posturas.
De forma análoga é definida as posturas desviantes no homem, Lombroso argumenta que para o "homem" praticar crimes ele possui ontológicas que o tornam um delinqüente nato. Depois desse ponto o estudioso italiano começa analisar e descrever as características físicas e psíquicas determinante na criminalidade de um delinqüente, uma dessas características é a presença ou não de tatuagens nos indivíduos, e qual tipo de tatuagens utilizadas por cada um, concluindo assim que isso é determinante para o tipo de crime que o delinqüente irá cometer.
Posteriormente, ele mostrara que além de observar o uso da tatuagem é interessante admoestar a sensibilidade, ou melhor, a falta dela a dor tanto física quanto afetiva.

[...] Esta estranha apatia, essa insensibilidade ante a desventura alheia, devida talvez ao egoísmo, o ponto de partida para falta de compaixão, não raro a conversa para si mesmo, pois embora tenham sido encontrados alguns casos como da marquesa de Brinvillier, Antonelli, Boggia, Vallet, Bourse, que foram tomados de terror diante da execução deles, a maior parte conserva uma singular frieza e indiferença até sua última hora, Mostram-se assim isentos do amor à própria conservação, que é a mais universal e o mais forte instinto do ser humano.

Na obra que está sendo estudada há também outra forma de identificação de um criminoso, seriam essa a observação do uso de gírias, da religião, vestimentas dentre outras.
Se faz mister a análise desse paradigma, pois se observa em toda sua definição atribuída a criminalidade a figura da autoria desta situada no homem, evidenciou-se isso quando se fez uso da medição de crânios,pernas e braços além de aspectos afetivos buscados, em presídios e manicômios, lugares com população predominada por homens. Assim os estudos científicos que mostravam que estes possuem "germes do mal" influenciadores em sua delinqüência.A ciência até aceitava autoria de crimes nas mulheres, mas elas tinham que ser prostitutas ou ciganas e para representarem o estereótipo de vítima tinham que ser a típica dona do lar.
A mudança do paradigma etiológico para o paradigma da reação social representou uma revolução na criminologia dentro da academia, pois não se discutia a criminalidade ontológica de determinados indivíduos, mas sim como processo, no qual classes dominantes se utilizam do seu poder econômico político para definir as condutas normais das classes inferiores, como desviantes, sendo assim criminalizadas. Barata menciona que:

[...] Os criminólogos tradicionais examinam problemas do tipo "quem é criminoso?", " como se torna desviante?", " em quais condições um condenado se torna reincidente?"," com que meios se pode exercer controle sobre o criminoso?". Ao "contrário, os interacionistas, como em geral os autores que se inspiram no Labeling Approach, se perguntam:" quem è definido como desviante?"", que efeito decorre desta definição sobre o indivíduo?", em que condições este indivíduo pode se tornar objeto de uma definição?" e, enfim, " quem define quem?.

Infelizmente tal revolução não conseguiu ultrapassar os muros da academia, dessa forma a ideologia penal dominante utiliza as idéias etiológicas para definir a criminalidade. Sendo assim o sistema penal continua classista , racista e Sexista.

3 Discussão atinente a criminalidade de gênero

O intróito de todo esse debate deve ser focado na posição a ser assumida pelo movimento feminista acerca do dever de realmente louvar a igualdade com o homem, ou efetivar de vez tal diferença. Parece-nos visível que é a segunda opção que esse movimento vem se usando, faz isso se servindo de um estereotipo de vítima, buscando a proteção do Sistema de Justiça Criminal. Assim sendo, utiliza-se dos principio da ideologia social: Princípio do Bem e do Mal sustentado por um sistema de idéias maniqueísta que distingue cidadãos do bem e do mal; Princípio da Finalidade ou da Prevenção, a função atribuída a pena não é somente o castigo como retribuição do crime, ela tem a tarefa de uma prevenção geral que é a inibição de todos de cometerem crimes, e prevenção geral que é a de obstar um ex presidiário se torne um reincidente.
Princípio da igualdade no qual a conduta criminal é encontrada numa minoria e a lei penal é igual para todos; e o Principio do Interesse Social e do Delito Natural, no qual a norma defende o interesse de todos os cidadãos igualitariamente. O movimento feminista por acreditar na lógica eficientista proclamada pelo "Tolerância Zero". Para que esse fato se efetivasse foi necessário uma grande atuação da mídia que teve a função de tornar a segurança publica, uma espécie de mania pública. Em contraposição à veracidade de tais princípios, Vera Andrade fala que:

O sistema penal, constituído pelo aparelho policial, judicial ministerial, e prisional aparece como um sistema operacionalizado nos limites da lei, que protege bens jurídicos gerias e combate a criminalidade ( o "mau") em defesa da sociedade (o"bem") através da prevenção geral ( intimidação dos infratores potenciais pela ameaça da pena cominada em abstrato na lei penal), e especial ( ressocialização dos condenados pela execução penal), garantindo também a aplicação igualitária da lei penal aos infratores. Através deste duplo eixo vimos constituir-se, pois, uma ideologia extremamente sedutora (liberal e da defesa social) e com um fortíssimo apelo legitimador através da qual o sistema penal promete, em suma, que o paraíso passa pela sua mediação.

Na esteira dessa argumentação, fica evidenciado que há várias promessas ainda não cumpridas pelo sistema Penal, é verdade também que o sistema de justiça criminal não criado para isso e nem tentará cumprir nenhuma delas.
Assim sendo, as funções da pena não são cumpridas, pois a lei não inibe a pratica de novos crimes, não ressocializa e cumpri funções não declaradas que são a segregação, estereotipação e seletividade.

Na verdade, esses resultados mostram que a intervenção do sistema penal especialmente as penas detentivas, antes de terem um efeito reeducativo sobre o delinqüente determinam, não maioria dos casos, uma consolidação da identidade desviante do condenado e seu ingresso em uma verdadeira e própria carreira criminosa.

Seguindo o raciocínio da desmistificação do direito penal como solucionador dos conflitos de gênero, Vera Andrade menciona que:

Em primeiro lugar, que os crimes sexuais são condutas majoritária e ubíquas, e não de uma minoria anormal. Em segundo lugar e correlativamente, que a violência sexual não é voltada, prioritariamente, para a satisfação do prazer sexual, o que retira a culpa, insistentemente atribuída à mulher, pela explícita ou latente provocação de sua prática. E em terceiro lugar, que nos crimes sexuais se julgam as " pessoas" ( autor e vítima) envolvidas, antes que o fato-crime cometido, de acordo com estereótipos de estrupadores e vítimas.

Esse estudo do direito dos autores é remanescente do ainda vivo (na ideologia penal dominante) paradigma Etiológico que atribui como causa principal da criminalidade características ontológicas, dessa maneira coloca os holofotes penais sobre os autores, pois ele e não o sistema possui problemas. Assim prioriza o estudo da vida pregressa dos autores ao estudos dos fato em si.
Outro problema também não percebido pelo movimento feminista é a ruptura que há em sua unidade quando evoca o direito penal, haja vista que, os denominados crime contra os costumes (estupro, atentado violento ao pudor, corrupção de menores e etc), se fundamentam numa lógica da honestidade para distribuir o estereotipo de auto e vítima dentro desses crimes, evidenciando-se mais uma vez toda a seletividade do sistema penal, que dentro da criminalização secundaria, seleciona não só autores, mas também vítimas.

Num sentido fraco, o SJC é ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência porque, entre outros argumentos, não previne novas violências, não escuta os distintos interesses das vítimas, não contribui para a compreensão da própria violência sexual e a gestão do conflito e, muito menos, para a transformação das relações de gênero. O sistema não apenas é estruturalmente incapaz de oferecer alguma proteção à mulher, como a única resposta que está capacitado a acionar - o castigo - é desigualmente distribuído e não cumpre as funções preventivas ( intimidatória e reabilitadora) que se lhe atribui. Nesta crítica se sintetizam o que denomino de incapacidades protetora, preventiva e resolutória do SJC. 2) num sentido forte, o SJC (salvo situações contingentes e excepcionais) não apenas é um meio ineficaz para a proteção das mulheres contra a violência (particularmente da violência sexual, que é o tema da pesquisa), como também duplica a violência exercida contra elas e as divide, sendo uma estratégia excludente que afeta a própria unidade ( já complexa) do movimento feminista.

Deste modo, fica evidente o duplo eixo paradoxal do movimento feminista, uma vez que, em toda sua historia tenta liberta-se da opressão imposta pelos homens, entretanto recorre ao direito penal dominado pelos mesmos homens que elas tentam libertar-se. Mais uma vez afirmando que o sistema penal é racista, classista e sexista e fundamentado na teoria da Honestidade feminina para atribuir ou não o estereotipo de vítima.
Tem que se falar também do alto risco que corre movimento mencionado, pois publicização de um conflito privado e sua posterior criminalização é um caminho muito sinuoso para se correr, pois no decorrer de sua historia o sistema penal sempre causou mais problemas do que aqueles que ineficazmente tentou resolver.

Conclusão

Partindo dessas premissas, pode-se destacar, em primeiro plano o breve histórico do partriarcalismo do sistema capitalista, com base na obra da Cidade Antiga, referente ao contexto histórico da Grécia e Roma antiga, na qual é conduzido de maneira firme e com mãos de ferro pela classe dominante até os dias atuais. Partriarcalismo esse visto em nosso sistema penal, através da vitimação e da autoria, ou seja, o estereótipo pré- determinado de cada delinqüente, conseqüência do racismo do código penal brasileiro, adquirido através deste sistema dominante, assim como a "luta" por igualdade entre homem e mulher, objetivo central do movimento feminista, que se assegura no princípio da ideologia social.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, Vera Regina Pereira. A soberania patriarcal: o sistema de justiça criminal no tratamento da violência sexual contra a mulher. Texto apresentado no painel "O Sistema de Justiça criminal no tratamento da violência contra a mulher", no 9º Seminário Internacional do IBCCrim.

ANDRADE, Vera Regina Pereira de. Sistema penal Maximo X Cidadania Mínima. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.

BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal Introdução à sociologia do Direito Penal. 3° Edição.Trad.Juarez Cirino dos Santos. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 2002

BAUMAN, Zygmunt. Vidas Desperdiçadas. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005.

COULANGES, Fustel. A Cidade Antiga: Estudos sobre o culto o direito e as instituições da Grécia e de Roma. 3°Ed. Trad. Edson Bini, São Paulo: Edipro, 2001.

GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. Porto Alegre: L&Pm, 1999.

LOMBROSO, Cesare. O homem delinqüente. Trad. Sebastião José Roque. Coleção fundamentos do direito. São Paulo: Ícone, 2007.

WACQAUNT, Loic. Prisões da miséria. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor, 2001.

Autor: Tiago Mendes Fernandes


Artigos Relacionados


Lei "maria Da Penha" E ViolÊncia Sexual DomÉstica Contra A Mulher

Os Efeitos Causados No Sistema Penal Pela Mudança De Paradigma

Criminalizando Seltivamente A MisÉria

ReduÇÃo Da Maioridade

A Eficácia Do Direito Penal

Criminologia

A (in)seguranÇa Da Dogmatica E Do Sistema Penal: Ideias E Fatos