Estatais com poder de polícia: por que não?



RESUMO

Estatais com poder de polícia: por que não?

José Vicente Santos de Mendonça


I ? Introdução e colocação do problema

O direito administrativo vive um processo de constante transformação, a história dos serviços públicos pode ser contada como a história das crises da noção. O direito administrativo, que é uma espécie de espelho burocrático do modo como a comunidade politica percebe, é um direito de mudança.
Curiosamente, também existem teses que permanecem as mesmas há muito tempo. A impossibilidade jurídica de as estatais exercerem poder de polícia é uma delas. Tais razões de suporte podem ser agrupadas em duas linhas:
? o poder de policia não pode ser delegado a uma entidade privada porque é da essência das funções do Estado;
? o regime de pessoal das empresas estatais é o celetista, incompatível com o exercício do poder de policia;
O primeiro é um argumento ontológico, o segundo é exemplo de argumento consequencialista, nenhum deles está imune a críticas.

II ? O que é o poder de policia

Considerada a mais antiga das funções do Estado, o poder de policia, também chamado de policia administrativo, não se confunde com policia judiciária. O poder de policia é o dever-poder administrativo consistente na imposição, em prol do interesse público, de restrições, limitações e/ou condicionamentos à conduta do particular.

III ? A refutação do argumento ontológico sobre a essencialidade da função

Argumentos ontológicos apelam para a essência das coisas. O exemplo clássico de argumento ontológico diz respeito à existência de Deus e foi formulado por Santo Anselmo: "se Deus é a maior coisa em que se pode pensar, e se isso existisse apenas na cabeça de quem pensasse nisso, tal circunstância iria contra a própria definição de Deus; logo, Deus deve existir não só na mente, mas, também, na realidade" (Strefling, 1997).
O que há é uma proximidade historicamente contigente entre algumas atividades e o Poder Publico. Muito do argumento ontológico a respeito da impossibilidade de empresas estatais exercerem o poder de polícia remete à discussão acerca de um conteúdo material para a noção de serviço publico: certas atividades, "por sua própria natureza", seriam típicas de serviço público; as atividades de policia administrativo, "por sua própria natureza", só poderiam ser exercidas por entidades de direito público.
É evidente que o regime de direito público é mais adaptativo, grosso modo, ao exercício do poder de policia. Se analisarmos as atividades incluídas no poder de polícia, veremos que muitas são tranquilamente delegadas a entidades privadas.
Existe, sim, uma proximidade empírica entre poder de policia e personalidade jurídica de direito público ? não quer dizer que tenha sido ou que deva ser sempre assim.

IV ? A refutação do argumento consequencialista acerca da instabilidade do regime de pessoal

O próximo argumento apresentado em favor da impossibilidade do exercício de poder de policia por empresas estatais é consequencialista.
Há um extenso debate teórico a respeito da aceitação, ou não, de teorias jurídicas baseadas na filosofia de base do consequencialismo ? o pragmatismo utilitarista ?, mas, seja como for, é perfeitamente possível utilizar raciocínios consequencialistas na prática do direito sem "ir muito fundo" em seus eventuais pressupostos filosófico ou sequer cogitá-los. Foi o que se fez na apreciação e no julgamento da ADIn nº2.310-DF, até agora a mais recente manifestação jurisprudencial a respeito do nosso tema.
É de fato que os empregados públicos não possuem a estabilidade do art.41 da Constituição da Republica, que assevera são estáveis os "servidores nomeados para cargos de provimento efetivo".
No entanto, após a Constituição de 1988, entendeu-se que a admissão de empregados em empresas estatais, passado um período inicial de vacilação jurisprudencial, deve ser precedida de aprovação em concurso público. Essa forma específica de admissão de pessoal, procedimentalizada e tendente à garantia da isonomia. Do contrário, seria como tornar rigoroso o modo de admissão nas estatais, para evitar a pessoalidade e o compadrio, deixando uma larga avenida para esses vícios no modo como será operada a dispensa.
Com base nesse raciocínio, boa parte da doutrina e da jurisprudência passou a admitir uma garantia contra demissões imotivadas dos empregados públicos. É bem verdade que, ao não poder demitir livremente, igual às demais empresas privadas, isso pode acrescentar algum dado de não isonomia ao regime das estatais competitivas.
Se o regime celetista é tão frágil, melhor avisar à Petrobras, maior empresa do Brasil e uma das maiores do planeta, e que, até pouco tempo, operava o monopólio público de um bem mineral cujo interesse estratégico e econômico motivou guerras. Sem sequer entrar na discussão acerca da capacidade de exercer misteres na área da regulação pública ou do exercício do poder de policia, é evidente que, se um regime jurídico de pessoal é frágil, ele o será qualquer que seja o conteúdo material da atividade exercida.
Em resumo: refutamos o argumento consequencialista da instabilidade de regime de pessoal ? segundo o qual a atribuição de poder de polícia aos empregados públicos das empresas estatais vai gerar a consequência indesejável.
O que há é, de um lado, uma superavaliação das garantias do regime estatutário, e, de outro, uma subavaliação das garantias do regime de emprego privado tal como aplicado pela administração pública do século XXI.




V ? Três requisitos de cautela

Vamos propor três requisitos de cautela em seu exercício, embora com certo cuidado quanto a muitas vezes ingênua pretensão de transformar categorias doutrinárias em "lei", que dois deles, os dois primeiros, são dever jurídico em sentido estrito.
O primeiro: para evitar qualquer sombra de potencial conflito de interesses entre interesse público e capital privado, e, de certa forma, manter a proximidade institucional com a figura das autarquias, na estatal que for exercer poder de policia só pode existir capital público, jamais privado. Ou seja: apenas empresas públicas, jamais sociedades de economia mista, podem exercer poder de policia. Em outras palavras, deveres e limites são impostos para tornar possível a vida em sociedade, não para enriquecer ninguém.
Segundo requisito: as empresas publicas que exercerem poder de polícia não poderão intervir concorrencialmente na economia. Só podem ser prestadoras de serviços públicos. Tratar-se-ia de uma intervenção concorrencial absolutamente anti-isonômica, já que nenhuma outra entidade privada estaria dotada de tal poder extroverso.
Terceiro requisito: o exercício do poder de policia deve ser acidental em relação à prestação de serviços públicos. Quer dizer, não pode existir uma empresa pública cujo objeto social seja o de exercer a polícia administrativa das profissões, ambiental, urbanística etc.
O ultimo requisito demanda mais explicação. Qual o motivo para não existir empresas públicas aos quais se atribua, direta e exclusivamente, o exercício de algum poder de polícia setorial? Em tese, a solução é possível. Ocorre que, como dissemos, a personalidade jurídica de direito privado acaba sendo uma modelagem sub ótima em relação à personalidade de direito público quando se trata de exercer o poder de policia.



VI ? Conclusão: estatais podem exercer poder de policia

Curioso que se admita, hoje em dia de modo até relativamente tranquilo, que as estatais possam prestar serviços públicos, mas que o "medo da forma privada", que já se venceu há muito tempo no campo do direito dos serviços públicos.
Se entidades da administração pública, de capital integralmente público, com bens públicos, integradas por agentes públicos que estão garantidos contra pressões tanto quanto servidores estatutários, podem prestar serviços públicos, por que não poderiam exercer alguma fração do poder de policia que se vincule diretamente ao exercício da prestação.
Uma leitura antifundacionalista e voltada à realidade da economia e às consequências práticas das interpretações do direito administrativo não pode ter medo de afirmar: empresas públicas, em certos casos, podem exercer o poder de policia.

Autor: Lucilene Mariani


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