LITERATURA E SOCIEDADE: A LUTA DE CLASSES NO BRASIL ESCRAVOCRATA - UMA ANÁLISE DO CONTO "PAI CONTRA MÃE? DE MACHADO DE ASSIS




LITERATURA E SOCIEDADE: A LUTA DE CLASSES NO BRASIL ESCRAVOCRATA - UMA ANÁLISE DO CONTO "PAI CONTRA MÃE" DE MACHADO DE ASSIS
Maria do Socorro Almeida de Figueirêdo

Resumo
Este trabalho está centrado no conto "Pai contra Mãe" de Machado de Assis, tendo como fundamento teórico as discussões que relacionam literatura e sociedade. Dessa forma, após algumas considerações concernentes a arte, bem como sobre as influências externas que a produção literária assimila e transfigura, faremos uma leitura do conto destacando as relações sociais que as personagens mantêm, estas inseridas em um contexto sócio-político no Brasil escravocrata.
Palavras-chave: Literatura e sociedade, Machado de Assis, Brasil escravocrata.
Abstract:
This work focuses on the story "Father against Mother" Machado de Assis, taking as a theoretical discussions that relate literature and society. Thus, after some considerations concerning the art, as well as external influences on the literary production assimilates and transforms, we will read the tale highlighting the social relationships that keep the characters, they entered into a socio-political context of slavery in Brazil.
Keywords: Literature and Society, Machado de Assis, Brazil slavery.

1. A influência do meio social na arte
A arte vista como expressão do pensamento e sentimentos não tem uma finalidade é desvinculada de um fim funcional. De acordo com Samuel (2000): "A arte é gratuita, isto é, sua finalidade é quase a própria arte", no entanto ela tem o poder de ação, de provocar reflexões e de transformar realidade. Isso se dá pelo fato de que a arte e, no caso específico da literatura, pode veicular os valores culturais e ideológicos de um povo. Esse paralelo traçado por Samuel (2000) evidencia que: "A missão da literatura, como fato cultural, é evocar a potência do espírito, tudo aquilo que nas paixões e nos sentimentos humanos nos estimula e nos comove", e é nesse sentido que a arte está a serviço da transformação da realidade, pois o discurso literário é ação. Ainda sob a luz das ideias de Samuel (2000), verifica-se que a arte manifesta sim uma ideologia, porém não se reduz a ela, tendo em vista que "A arte resiste mesmo quando determinadas estruturas sociais desaparecem, mesmo quando já não importa a ideologia em que se insira". Nesse sentido conclui-se que a arte permanece, as ideologias de classes passam.
A literatura, muitas vezes é considerada como representação fiel da realidade, no entanto convém ressaltar que "A arte não obedece ao principio da imitação da realidade estabelecida" (SAMUEL, 2000 p.14). Sabe-se que "A literatura possui ligações com a vida social, porém não é determinada só por esse fator, a uma liberdade de criação literária". (CANDIDO, 2006). O autor esclarece que só os aspectos sociais não são suficientes para analisar a totalidade do fenômeno literário. A literatura é produzida de acordo não só com a realidade circundante, mas também com a visão de mundo do autor. Dessa forma, nosso trabalho se pautará no método dialético assinalado por Antonio Candido, em que coloca que tanto o texto (fatores internos) quanto o contexto (fatores externos) tornam-se elementos da composição interna da estrutura literária. Nesse sentido o autor diz que a estrutura social deve ser vista (no caso de uma obra literária) ou entendida como algo incorporado a visão de mundo do escritor e depois repassado para ficção através da representação do autor.
Tais considerações podem ser aplicadas a análise do conto "Pai contra Mãe" de Machado de Assis, tendo em vista que este partiu justamente da estrutura social vigente para produzir tal conto. O mesmo foi publicado no Livro Relíquias da Casa Velha em 1906. O referido conto denuncia de maneira sutil e reflexiva as mazelas do sistema escravocrata prevalecente no século XIX, em que tanto o homem livre, porém pobre quanto os escravos travavam a mesma luta para sobreviver nesse sistema.
O livro de contos no qual está "Pai contra Mãe" foi publicado dezoito anos após a proclamação da Lei Áurea, no entanto o mesmo não foge ao contexto da época, aliais as observações de Machado continuam atualíssimas no presente contexto social, em que a busca pela sobrevivência continua ainda nesse país de extrema desigualdade social e de mecanismos econômicos injustos. Dessa forma o escritor Machado de Assis esteve sempre atento aos acontecimentos do seu tempo, refletindo sobre a história que acontecia a sua volta.
2. Machado de Assis: O grande contista
Joaquim Maria Machado de Assis nasceu num morro carioca, numa época em que no Brasil os negros eram escravos. Era de família humilde e já na adolescência interessava-se pela vida intelectual da corte, onde trabalhou como caixeiro de livraria, tipógrafo e revisor, até se iniciar como jornalista e grande escritor, chegando, inclusive, a ser um dos fundadores e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras. Foi cronista, produziu poesia, teatro e critica, mais foi na ficção seu grande destaque, sendo, portanto romancista e contista por excelência. A vasta obra ficcional de Machado se configura como "o ponto mais alto e mais equilibrado da realista brasileira" (BOSI, 2003 p.174). O autor de Relíquias da Casa Velha escreveu de maneira brilhante e soube retratar a sociedade brasileira através de uma análise psicológica, buscando compreender e provocar reflexões sobre os mecanismos que comandam as ações humanas. Sua produção de contos é vasta, sendo considerados pela crítica com sendo apenas mediano os livros: Contos Fluminenses (1870), em que se encontra já uma das principais características machadianas, a ironia, além de apresentar um estudo da alma feminina; e Histórias da Meia-Noite (1873). È a partir do terceiro livro, Papéis Avulsos (1882) que a maturidade artística machadiana se constitui. Nesse livro estão presentes alguns dos mais famosos contos de Machado que são: O Alienista, Teoria do Medalhão e O Espelho, nos quais são abordados temas como a loucura, a vaidade, enfim o comportamento humano. Joaquim Maria ainda publicou em vida outros livros de contos, como: História sem datas (1884), Várias histórias (1896), Páginas recolhidas (1899) e por fim Relíquias da Casa Velha (1906).
Machado, pois, se destaca no meio literário por sua genialidade e, sua obra ficcional tem um caráter permanente e atual, pois se:
Ao assumir perspectiva radical diante da condição humana, a partir de uma linguagem polissêmica, a literatura vem assegurando sua permanência e atemporalidade. (PROENÇA, 2001).
É o que acontece com a obra machadiana, pois como bem relata Proença (2001):
Sua obra permanece e é atual, na medida em que, em textos multissignificativos, evidencia, a partir de seu testemunho sobre o homem e a realidade de seu tempo, questões relacionadas com o homem de todas as épocas (...)
Por isso no conto Pai Contra Mãe, as relações sócias presentes num sistema escravagista e autoritário do século XIX, tomando como exemplo as classes menos favorecidas, como é o caso do homem pobre e o escravo, dialogam com os marginalizados da sociedade capitalista e excludente do século XXI, no que envolve a questão da sobrevivência.
Machado de Assis foi um excelente observador do meio urbano e por isso se encaixa na divisão feita por Matos (2006) em que há "os contistas da cidade e os contistas da terra" e "o autor de Papeis Avulsos forma entre os contadores da cidade, atmosfera que nasceu e formou seu espírito." O mencionado contista descreveu e/ou narrou, com forte ironia, que lhe é peculiar, o momento sócio-político da cidade do Rio de Janeiro. Consciente, crítico, além de cético, Machado sabia que naquele sistema vigente, mesmo com o fim de tantas injustiças e desumanidades, que era a escravidão, o sistema acima citado jamais seria justo e igualitário. Para legitimar essa afirmativa tomemos as observações de Massaud Moisés (2004, p.125) "O escritor acreditava que no Brasil haveria a abolição da escravatura, mas a estrutura da sociedade não mudaria porque dificilmente o Brasil progrediria para uma sociedade igualitária". Podemos inferir, pois, tamanha consciência e sensibilidade do autor de "Páginas Recolhidas" com relação ao futuro, pois no presente com tantas mudanças e avanços no sistema vigente, uma sociedade justa e igualitária, ainda permanece como utopia.
3. Apresentação do conto
"Pai contra Mãe" de Machado de Assis, conta a história de Cândido Neves, um homem sem posses, que não consegue se ligar num emprego fixo e sobrevive de pegar escravos fugidos. Casado com Clara, também pobre, vive com sua tia Mônica, que é costureira. Eles passam por necessidades no decorrer de todo conto. O casal falava em ter um filho, mas a sua tia sempre lembrava a condição econômica da família. Candinho caçava escravos, um dia tinha dinheiro e em outro não tinha um centavo. Quando o trabalho de pegar escravos não dava mais lucro, em decorrência da diminuição dos negros e da concorrência, Candinho se vê numa situação muito difícil, a família estava carente de tudo: faltava carne e feijão e o aluguel estava atrasado três meses. E, com tanta dificuldade Clara fica grávida. Tia Mônica sugere que quando a criança nascer, deve ser levada para a roda dos enjeitados, o pai não gosta da ideia, mas é obrigado a aceitar. Quando a criança estava próxima de nascer à família foi despejada da casa e foram morar de favor com uma conhecida. Um dia depois do nascimento o menino é levado pelo pai para a Roda dos Enjeitados. No meio do caminho Cândido Neves encontra uma escrava fugida de nome Arminda, pela qual o proprietário pagava uma boa recompensa. Era a chance de Cândido mudar seu destino, deixa o menino com um senhor e sai em perseguição à negra. Ele prende-a e amarra-a sem importa-se com as súplicas: "estou grávida, me solte e serei sua escrava", mesmo assim Cândido leva-a até a casa do proprietário. Sem suportar a violência a escrava aborta a criança que esperava. Cândido Neves apanha o dinheiro, pega o filho e volta para casa, certo que seu filho não seria mais entregue ao orfanato. O conto termina com a frase: "Cândido Neves, beijando o filho, entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga da escrava e não se lhe dava o aborto. Nem todas as crianças vingam, bateu-lhe o coração".
O conto "Pai contra Mãe" de Machado de Assis faz parte do livro Relíquias de Casa Velha, publicado em 1906, que segundo Alfredo Bosi (1994, p.58), "Pai contra Mãe está inserido dentro dos contos anedóticos do escritor carioca". A história de Candinho se junta à história da escrava fugida: "Cândido Neves em família Candinho é a história a quem se lida a história de uma fuga" (ASSIS: 2004 P.103).
O tema central do texto dar-se em torno da interação entre Cândido Neves e o universo escravocrata, na luta pela sobrevivência, evidenciando aspectos sócio-econômicos, que enfatizam a miséria dos personagens e a "coisificação" do ser humano. Como afirma Antonio Candido sobre o pensamento machadiano, que "a transformação do ser humano em objeto do homem, que é uma das maldiçoes ligadas à falta de liberdade verdadeira, econômica e espiritual". Ao mostrar o processo de escravidão durante a narrativa de Machado mostra a realidade brasileira de muitos anos e que de certo modo ainda perdura-se nos dias de hoje.
4. Perfil dos personagens
Pode-se perceber durante toda a narrativa o comportamento duplo de Cândido Neves, quando se tratava de alguém superior ou igual a ele, apresentava-se mansamente tanto que sua família chamava-o de Candinho enfatizando uma personalidade simples e doce, como afirma Bosi que "Cândido Neves, pobre mas branquíssimo até no nome", quer dizer que no decorrer da narrativa o personagem apresenta um caráter sem nenhuma candura, revelando-se diante de sua tia Mônica, quando tenta convencê-lo a levar o menino para a Roda dos Enjeitados:
Cândido arregalou os olhos para a tia, e acabou dando um murro na mesa de jantar. A mesa que era já bastante velha e desconjuntada esteve quase a se desfazer inteiramente por causa do tremendo golpe. (ASSIS: 2004, p. 104).
Nota-se então que nesse convívio familiar estava contido o egoísmo e a maldade que se agravavam pelas condições miseráveis de sobrevivência, principalmente quando a tia falava: "vocês, se tiverem um filho, morrem de fome". (ASSIS: 2004, p.104). O modo como tia Mônica se coloca mostra todo um contexto social que justifica esse discurso pessimista da personagem. Sobre isso Roberto Schwarz (2002, p.109), comenta:
[...] As inaceitáveis realidades da pobreza moderna correspondem a um propósito ?para isso te chamamos?. A condenação tem mão dupla realidade social é negativa, por lhe faltar sentido humano. A pobreza está descrita em seu ciclo regular, por assim dizer funcional e não lhe falta método a seu absurdo. Neste sentido, ela tem sim uma finalidade, embora humanamente insustentável qual seja a de reproduzir a ordem social que é a sua desgraça.
Para suportar as situações de miséria as personagens agarravam-se a fé cristã para tornar a vida mais fácil, sendo então uma característica comum entre a camada mais pobre da sociedade:
Nossa Senhora nos dará de comer [...] A alegria era comum aos três, o casal ria a propósito de tudo. Os mesmos nomes eram objeto de trocados, Clara, Neves, Cândido; não davam que comer, mas davam que rir, e o risco digeria-se sem esforço. (ASSIS: 2004, p.104).
Em um segundo momento a mansidão aparente de Candinho desaparece, mostrando-se superior diante da escrava, que usa sua força para menosprezá-la. Na verdade Cândido Neves representa o homem livre, porém pobre e dependente. Sendo que com o escravo ele lutava: "Nem sempre saía sem sangue, as unhas e os dentes do outro trabalhavam, mas geralmente ele os vencia sem o menor aranhão" (ASSIS: 2004 p.106).
De forma irônica Machado de Assis escolhe os nomes dos personagens, Cândido Neves e Clara, que lembram pureza e alvura que contradiz-se com os sentimentos presentes no texto, de forma que denuncia o preconceito racial sofrido pelo negro fazendo referência a cor da pele. Outro ponto evidenciado pelo autor são os nomes das ruas onde acontecem o desenrolar dos fatos, Rua dos Bardonos e Rua da Ajuda, nesta última Cândido Neves vêem a saída para livrar o folho da Roda dos Enjeitados, já a escrava Arminda passa nesse momento a necessitar de ajuda, e não encontra para salvar a si ou ao seu filho que estava em sua barriga:
Quem passava ou estava à porta de alguma loja compreendia o que era e naturalmente não acudia (...). Não foi difícil prender a mulata, apesar de sua relutância; ela quis gritar (...) mas entendeu logo que ninguém viria libertá-la, ao contrário [...] (ASSIS: 2004, p.111).
Assim a escrava fugida se vê incapaz de lutar e, Cândido Neves se sente poderoso diante da escrava para defender a vida do filho: De acordo Massaud Moisés (2004, p. 227) cita:
Por trás do ceticismo que impregna o trecho, adivinha-se o pensamento de Darwin, ensinando que a ?seleção natural? premia os mais fortes somente que transporta como sucedia regularmente na prosa machadiana para um clima simbólico.
Caracterizam-se então o autoritarismo das classes elitistas presentes na sociedade em que Candinho vivia dando ênfase ao paternalismo existente nessa sociedade. De modo que Arminda consciente de sua condição apenas diz: "Estou grávida meu senhor". (ASSIS: 2004, p.110). Cândido não se importa. Ao contrário, ele responde com severidade: "Você é quem tem a culpa, quem lhe manda fazer filho e fugir depois?" (ASSIS: 2004 p.111). Impiedoso e egoísta, Candinho só pensa em entregar a escrava ao dono e resolver a situação do filho. Insensível a tudo ver sem nenhuma piedade a escrava abortar diante do proprietário:
No chão, onde jazia levada do medo e da dor e após algum tempo de luta, a escrava abortou. O fruto de algum tempo entrou sem vida neste mundo. Cândido Neves viu todo esse espetáculo (...). Candinho depois de assistir à tragédia, esquiva-se, aliviado e feliz por ter salvo seu filho. Beijando o filho entre lágrimas verdadeiras, abençoava a fuga e não se lhe dava do aborto. (ASSIS: 2004, p. 112).
Temos nesse momento a revelação total do personagem que deixa a máscara cair e mostra seu verdadeiro rosto. Como também mostra a difícil condição de sobrevivência do pobre no Brasil de escravidão.
No entanto no final dessa luta por uma vida miserável o filho de Cândido Neves sofrerá com as condições precárias que terá que enfrentar para sobreviver. Com isso Bosi (2003, p. 123) cita:
O bem-estar de uns parece fundar-se na desgraça de outros. O acesso aos bens vitais e econômicos, por baixo que seja em termos quantitativos (afinal, Candinho é pobre) exige a espoliação do outro (...). O pobre se é livre, faz retornar aos ferros o escravo que, fugindo para a liberdade, concorreria com ele no páreo dos interesses. O antagonismo não se fixa apenas nos extremos; há uma guerra de todos contra todos, que percorre os elos de ponta a ponta: aqui a vemos comunicar-se do penúltimo ao último.
O sistema capitalista contribui para que Cândido tenha esse perfil de crueldade para com os outros, então a culpa não é totalmente dele, para escapar da miséria parece necessário recorrer à lei natural de sobrevivência.
5. A luta entre as classes sociais
Em "Pai contra Mãe" Machado relata as barbaridades sofridas pelos escravos e a luta para sobreviver no Brasil na época do Império.
No decorrer da narração o autor descreve as máscaras que eram utilizadas pelos escravos, devido ao alcoolismo, dando para o leitor a ideia de que tais instrumentos tinham apenas características funcionais:
A máscara fazia perder o vício da embriaguez aos escravos, por lhe tapar a boca. (...) O ferro ao pescoço era aplicado aos fujões (...) escravo que fugia assim, onde quer que andasse mostrava um reincidente e com pouco era pegado. (ASSIS: 2004, p.102)
Constitui-se o negro como objeto ou como um animal, quando fugia um escravo, o anúncio informava os traços físicos para ajudar no reconhecimento: "Punha anúncios nas folhas públicas, com os sinais do fugido, o nome, a roupa, o defeito físico, se o tinha, o bairro por onde andava e a quantia de gratificação" (ASSIS: 2004 p.102). Também traziam ilustrações fazendo uma crítica aos escravos africanos e seus descendentes: "Muitas vezes o anúncio trazia em cima ou ao lado uma vinheta, figura do preto, descalço, correndo, vara ao ombro e na ponta uma trouxa". (ASSIS: 2004, p.103).
O narrador se detém ao tratar da utilização de um instrumento de tortura que era utilizado pelos escravos causando sofrimento, que é a máscara-de-flandres:
A máscara só tinha três buracos, dois para ver, um para respirar, e era fechada atrás da cabeça por um cadeado com o vício de beber, perdiam a tentação de furtar, porque geralmente era dos vinténs do senhor que eles tiravam com que matar a sede. (ASSIS: 2004, p.102).
Essas práticas violentas contra os escravos são justificadas no conto como uma forma de manter a "ordem social e humana": "Era grotesca tal máscara, mas a ordem social e humana nem sempre se alcança sem o grotesco e alguma vez o cruel" (ASSIS: 2004 p.102). È importante ressaltar que essa forma de castigo, onde os escravos eram massacrados e violentados, inclusive com a permissão da lei na época do império, mostra o mascaramento da crueldade e da brutalidade cometidos contra a pessoa humana.
O ofício de Cândido Neves, era capturar escravos fugidos, uma forma de ganhar algum dinheiro, e naquele momento até essa função estava difícil de exercer, pois o regime social do Brasil era extremamente escravocrata. E nesse contexto começa a configurar um tipo de mecanismo denominado de favor, como uma forma de garantir a sobrevivência, porém essa prática acentua a dependência do homem livre e branco ao senhor latifundiário. A esse respeito, Schwarz (1987, p. 18), comenta o seguinte:
No contexto brasileiro, o favor assegurava às duas partes, em especial a mais fraca de nenhuma é escrava. Mesmo o mais miserável dos favorecidos, via reconhecida nele, no favor, a sua livre pessoa, o que transforma prestação e contraprestação por modestas que fossem, numa cerimônia de superioridade social, valiosa em si mesma. O favor esteve presente por toda parte, combinando-se às mais variadas atividades, ele é a nossa mediação quase universal.
Esse homem que também é dominado pelo senhor, é representado por Cândido Neves, onde só consegue diminuir a miséria em que vive, porque recebe o amparo de uma senhora rica. A posição intermediária que Candinho ocupa entre o senhor e o escravo, suas condições sociais e as relações estabelecidas constitui o foco central do conto.
Assim a sociedade brasileira escravagista, apresentada no conto, passa por diversos problemas, onde as classes sociais desfavorecidas, principalmente os negros, sofriam severos castigos e eram utilizados por todos os lados como forma de manter e garantir a sobrevivência da classe elitista.
6. Considerações finais
Neste conto está retratada a situação das classes sociais da época, que era representada pelo escravo que vivia na miséria; o desinteresse pela vida do homem branco pobre; e o senhor latifundiário que mantinha-se como mais forte sobre os outros, seja usando o seu dinheiro ou utilizando-se da força física e social. Neste contexto Roberto Schwarz (1987: p. 16) aponta o seguinte:
Como é sabido, éramos um país agrário e independente, dividido em latifúndios, cuja produção dependia do trabalho escravo por um lado, e por outro lado, do mercado externo. A colonização produziu com base no monopólio da terra, três classes de população: o latifundiário, o escravo, e o homem livre, na verdade dependente.
Em "Pai contra Mãe" Machado chama o leitor para uma reflexão sobre a vida humana, através do humor, da ironia, e de personagens comuns de sentimentos desumanos do desenvolvimento social do Brasil, mostrando através de Cândido Neves e Arminda os conflitos da sociedade onde a violência está presente e que mata-se um ser humano para dar lugar a outro.
Assim, realizar uma análise de uma obra de Machado de Assis é uma tarefa que exige dedicação, pois não é fácil abordar temas como o homem livre e a escravidão, o que requer uma diversidade de teorias que abordem questões sobre o tema.
7. Referências Bibliográficas
ASSIS, Machado de. Contos Escolhidos: Seleção de Deomira Stefani. 18ª ed. São Paulo: Ática, 2004.
BOSI, Alfredo. História Concisa da Literatura Brasileira. 39ª ed. São Paulo: Cultrix. 2003.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul, 2006.
_________. Formação da Literatura Brasileira. 1° volume. 6ª ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1981.
MATOS, Mário. Machado de Assis, contador de Histórias. In: Machado de Assis: Obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 2006.
MOISES, Maussad. A literatura Através dos Textos. São Paulo: Cultrix, 2004.
SCHWARZ, Roberto. As ideias fora do lugar. In: Ao vencedor as Batatas. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
SAMUEL, Rogel. Arte e Sociedade. In: O Manual da teoria literária. Petrópolis: Vozes, 2000.
PROENÇA FILHO, Domicio. Permanência e atualidade da ficção machadiana. In: Melhores contos Machado de Assis. São Paulo: Global, 2001.


Autor: Socorro Almeida


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