Ferreira Gullar: O Poeta do Espanto



FERREIRA GULLAR: O POETA DO ESPANTO


"Mas acredito que a coisa mais constante na minha poesia envolva, sim, o propósito de iluminar o que há de mais misterioso e fascinante na existência."
Ferreira Gullar


Introdução

Esta epígrafe, talvez, seja uma súmula para que possamos entender a poética de Ferreira Gullar. "Iluminar o que há de fascinante e misterioso na existência" é de fato o mote que podemos encontrar em sua trajetória nos caminhos da poesia.
O poeta maranhense, com sua poesia, iluminou os mais recônditos cantos do cotidiano. Penetrando na intimidade daquilo que o humano é incapaz de compreender ou explicar sobre a existência.
Em sua obra, nos chama a atenção o caráter urgente de sua poesia. Sim, a urgência de apreender o inapreensível e reinventar, através da língua e da arte, a vida, ou não somente a vida, mas a vida que precisa ser reelaborada, como o próprio poeta nos diz no poema 4 da série "Sete poemas portugueses":

Nada vos oferto
além destas mortes
de que me alimento

Caminhos não há
Mas os pés na grama
os inventarão

Aqui se inicia
uma viagem clara
para a encantação

Fonte, flor em fogo,
quem é que nos espera
por detrás da noite ?

Nada vos sovino:
com a minha incerteza
vos ilumino

Neste poema, Gullar mostra o caminho da encantação, ou melhor, do arrebatamento através do que há de mágico na vida. Daí surge a fascinação pela vida, e surge daquilo que, para os olhos dos mortais, se escondem, mas aos olhos do poeta desabrocham.
Ferreira Gullar começou sua trajetória de poeta, ainda em São Luís do Maranhão, sua terra natal, em 1949, com o livro Um Pouco Acima do Chão; depois, em 1951, muda-se para o Rio de Janeiro, onde publica, em 1954, A luta Corporal, que, para Gullar, é o pontapé inicial de sua trajetória como poeta, já que o primeiro Gullar considera uma destoante de sua obra e por isso não autoriza sua reprodução.

Luz sobre o Poema

Em a Luta Corporal, os impasses e reinvenções a que o poeta ficaria sujeito em seu percurso poético já são aparentes. Gullar surge como um vanguardista nesta obra, o que podemos conferir com a afirmação do poeta sobre o poema "Roçzeiral", anos mais tarde, em uma entrevista em que diz: "Eu tinha explodido a linguagem no fim do meu livro A Luta Corporal. Por que eu explodi a linguagem? Eu não pensava estar fazendo nenhuma inovação. Tratava-se de um problema existencial, de conhecimento, de responder à vida (...) Eu tinha destruído a linguagem, não foi uma brincadeira, não foi uma atitude..." (p.10, 2000)
Gullar escreveu o poema a partir de uma visão do desaparecimento das flores de um jardim antes florido e que agora vicejavam apenas em sua memória. Daí surge a alegria de sua poesia: do fenecimento das flores e da explosão da linguagem. Portanto, sua alegria poética emerge da destruição, do caos que instaura e em que persiste e subsiste a vida.

Roçzeiral
Au soflu i luz ta pom-
pa inova?
órbita-
furor
to bicho
scuro fo-
go
Rra

A poesia de Gullar, portanto, nasce do espanto, do mesmo espanto de Bandeira em "O bicho", pois o que importa para o poeta é o homem, a vida, como podemos atestar em uma entrevista ao crítico e escritor José Castello: "A literatura tem que mudar a vida. Ela não pode ser gratuita, não pode ser à toa" . Este seu pensamento continua vigente até os dias atuais, e norteou sua poética mesmo quando tudo o impulsionava a não acreditar mais no homem, durante o período da ditadura militar.
Esta sua preocupação com o social o fez afastar-se dos irmãos Campos, de Décio Pignatari e do Concretismo ? movimento que seguiu após a publicação de Luta Corporal ? e aproximar-se do CPC . Gullar pensava ser o Concretismo uma estética pouco popular, mais presa a uma erudição e que não se harmonizava com seu sentimento acerca do momento político pelo qual o país passava.
Em 1975, lança Dentro da Noite Veloz, onde encontramos "Poema Brasileiro" em que transforma uma estatística, que, como qualquer outra notícia de jornal, embrulharia o peixe do dia seguinte, em poesia; mais uma vez retifica que sua poesia nasce do espanto e ilumina o "obscuro" estado do Piauí. Transforma o cotidiano e o que, para muitos, seria corriqueiro, em literatura. Os últimos versos do poema "antes de completar 8 anos de idade" se repetem como uma ladainha infernal nos ouvidos daqueles que leem e escutam o poema; sua repetição parece querer ecoar aos quatro cantos do Brasil para que aqueles que adoçam seu café sem se preocupar em saber da proveniência do açúcar se conscientizem de que há vida humana se extinguindo como as flores da praia de Botafogo.
E é esse nó na garganta do poeta que o faz "vomitar" o "poema sujo". O livro é concebido em um momento em que o poeta vive um momento turbulento de sua vida e de seu país e em que, conscientemente, o poeta joga luz para iluminar aquilo que está "turvo turvo / a turva / mão do sopro / contra o muro / escuro" dentro e fora de si; o poema é subjetivo e objetivo simultaneamente, é paradoxal como o momento em que veio a lume. Nele, aparecem espectros de sua vida particular e da vida pública do país e do mundo.
Nessa espécie de canção do exílio, podemos notar seu compromisso diário com a poesia assim como de toda sua obra. A poesia nasce da sujeira do dia-a-dia, faz reaparecer o passado por meio das coisas mais banais. É com a poesia que o poeta vai à luta, mesmo exilado em outro país; é através da memória e da poesia que o poeta combate.
Gullar, porém, lucidamente, afirma em "Boatos":

Ora eu sei muito bem que a poesia
não muda (logo) o mundo.
Mas é por isso mesmo que se faz poesia:
porque falta alegria.
E quando há alegria
se quer mais alegria!

Neste poema de 1967, o autor reafirma a necessidade de se produzir poesia, ainda que o momento seja adverso; ainda que falte alegria, há de se buscá-la e que esse movimento, essa busca, seja incessante.
Apesar de ser reiteradamente chamado de poeta engajado, de ter sua poesia associada apenas à participação política, Gullar rejeita tal rótulo. Talvez fosse mais apropriado atribuir ao poeta ser ele o poeta do espanto, da vida normal, ou melhor, o poeta que se espanta diante do cotidiano. Sua poesia é participante da vida.
O poeta tem razão em não querer se submeter a etiquetas que o enquadrem em compartimentos, para que seja facilmente identificado. Em uma rápida passagem de sua extensa produção, notamos seu comprometimento com a vida; a vida vivida em quintais, bares, ruas é patente:

Sem qualquer esperança
te espero.
Na multidão que vai e vem
entra e sai dos bares e cinemas
surge teu rosto e some
num vislumbre
e o coração dispara.
Te vejo no restaurante
na fila do cinema, de azul
diriges um automóvel, a pé
cruzas a rua
miragem
que finalmente se desintegra com a tarde acima dos edifícios
e se esvai nas nuvens.
(Pela Rua)

Sua poesia nasce não como o assombro dos adultos diante das catástrofes, mas sim do espanto da simplicidade do banal, como o melhor sorriso de criança, assim como um menino sorri diante de um gato que pula de um armário enferrujado.






Referências Bibliográficas:
BASTOS, Dau (ORG.) Papos Contemporâneos: entrevistas com quem faz literatura brasileira. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2007.

BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41 ª ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
CHIARA, Ana. Ferreira Gullar: Poeta da alegria. Revista Relâmpago. Fotocópia, 2000
GULLAR, Ferreira. Toda poesia. 7. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1983.


Autor: Daniel Martins Cruz Junqueira


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