Os Narradores Autoirônicos de André Sant?Anna e de Marcelo Mirisola



Os Narradores Autoirônicos de André Sant?Anna e de Marcelo Mirisola
"? Eu prometo ? (ela prometeu, eu tava lá e ouvi). Eu ouvi, sim. Blota Jr. Foi padrinho."
Marcelo Mirisola

Na Literatura produzida na contemporaneidade há uma tendência de narradores em primeira pessoa que problematizam a realidade em que estão inseridos, ou mais que isso suas narrativas se prestam a dar um soco em tudo aquilo que lhes incomoda, que lhes causa raiva.
Após a leitura dos contos "Basta um verniz para ser feliz", de Marcelo Mirisola e "O Importado Vermelho de Noé", de André Sant?Anna, notei o quão perturbador são as repetições de algumas expressões e a ironia que delas emanam.
Em Sant?Anna, as imagens se desintegram à medida que o narrador, compulsiva e meticulosamente, as reitera em uma sintaxe caótica e transbordante de cinismo. Nesse sentido o narrador é sujeito e objeto da desintegração, pois o mesmo,o tempo e o espaço se diluem no dilúvio de sua retórica.
Em Mirisola, temos um narrador que expõe a vida íntima de um casal de amigos, seus mau-caratismos, sua "vidinha" aburguesada, porém o próprio narrador é um mau-caráter, cara-de-pau que precisa de muito verniz para se favorecer daqueles que ele critica.
Característica peculiar a ambos os textos é a permanente presença da ironia de modo a proporcionar a desconstrução das estruturas de poder. A ironia serve para chamar a atenção dos leitores para situações que muitas vezes passam despercebidas, ou até mesmo, são ignoradas devido ao fato de serem já tão corriqueiras e tratadas com naturalidade pelo público.
Outra característica importante nos contos é a ambigüidade que deriva do recurso de expressão ironia. Ao entendermos a ironia como uma figura que consiste em dizer algo exatamente ao contrário do que se está dizendo. Dessa forma, os autores marcam suas narrativas com um certo falseamento por parte dos narradores num exercício de autoconsciência, auto-reflexão com um tom antiburguês
Em "O Importado Vermelho de Noé" o narrador-personagem vai tentar realizar de seu sonho de american way of life na Meca do consumismo: Nova York. Somente lá ele poderá ser feliz. Já no texto de Mirisola o narrador-personagem tem todas as condições para ser feliz aqui basta apenas um pouco de verniz.
No primeiro, uma extenuante repetição de expressões parecem sair feito um jorro em que o narrador parece querer provar para si mesmo que ele é o único que tem a capacidade de sair do caos em que se encontra. E o seu "cérebro de administrador sabe que providencias tomar. Procurei o desenvolvimento em cada instante de minha vida. Sei exatamente onde quero chegar." (p.596) Paradoxalmente, em outro momento, ele que, como afirmou, tem as rédeas de sua vida, pois seu pensamento pragmático o proporcionou esta condição, recorre, mais de uma vez, a Deus para reafirmar sua condição de "escolhido pela grande Providência". "Agora compreendo os desígnios da natureza, a intenção do destino. Agora posso compreender Deus, que está ao meu lado e faz chover dinheiro em Nova York." (p.597) Ou como nesta outra passagem, onde se aproveita da onipresença de Deus, porém, apenas na cidade escolhida, "Deus está em toda Nova York." (p.597)
Em outro momento, o narrador, além de mostrar sua intimidade com o Divino, se diviniza a partir de um jogo de ideias silogísticas em que consiste em dizer que "Deus é também um grande administrador, como eu, Paulo e todos os novaiorquinos. É a grande empresa de Deus, como são grandes as minhas empresas." (p.597) no discurso, a figura do narrador se confunde com a de Deus.
Não param por aí suas referências bíblicas, se compara também a Paulo (que também fugirá da cidade que o homenageia em seu nome), possivelmente Paulo de Tarso, aquele que foi convertido ao catolicismo e tratou de cuidar dos gentios. Porém, o narrador é um Paulo de Tarso às avessas porquanto este cuidava em difundir sua religião, suas ideias, aquele quer com todas as suas forças fugir, evitar qualquer contato com todos aqueles que não pertençam ao seu status social.
Outra referência bíblica é a Noé, que recebeu de Deus as ordens para a construção de uma barca para salvar do dilúvio a criação divina. Porém, no conto de André Sant?Anna, o homem pós-moderno quer apenas salvar-se, o que enfatiza o modo de pensar pós-moderno capitalista da individualidade.
Sua retórica é convulsa e enfadonha como de todos aqueles que privilegiam uma vida pragmática, preconceituosa que exaltam a força dos países desenvolvidos em detrimento do flagelo subdesenvolvido. A chuva, por exemplo, que é símbolo de fertilidade, para o narrador, só proporcionará riqueza em Nova York. Em São Paulo, ela fará transbordar o rio Tietê (símbolo do subdesenvolvimento da Cidade de São Paulo) enchendo de excrementos a cidade.
Ironicamente, o narrador que esperava fundir-se com o os dólares em Nova York, acaba morrendo afogado junto ao excremento que transborda do rio Tietê.
Em "Basta um Verniz para ser Feliz", a ironia e a ambigüidade dão o tom da narrativa, em que o narrador parece ser o mediador, apresentador (ora ele conversa com as personagens, ora com o leitor) de um reality show sobre a vida de uma família em uma sociedade de consumo e todas as mazelas frutos da convivência diária.

[...] o espetáculo é ao mesmo tempo o resultado e o projeto do modo de produção existente. Não é um suplemento do mundo real, uma decoração que lhe é acrescentada. É o âmago do irrealismo da sociedade real. Sob todas as suas formas particulares ? informação ou propaganda, publicidade ou consumo direto de divertimentos ?, o espetáculo constitui o modelo atual da vida dominante na sociedade.

O narrador mostra a vida de aparências de uma família que possui hábitos pouco dignificantes e vivem de aparências. Mirisola descreve as personagens sem nenhuma complacência e até com certa crueldade. Sobre Duarte, o marido ele diz: "para ele a vida é um barbear rente, hipócrita e macio (...) Duarte é um babaca", "Eu e ele parecemos irmãos (nossa bunda é grande)." (p.97).
O narrador e a personagem se irmanam na irônica condição de "bundões", que segundo o dicionário "Aurélio" significa pessoa moleirona, sem coragem, pusilânime. Nesse momento, podemos perceber como o narrador se autoironiza, fazendo-nos notar como ele também faz parte desse mundo de aparências e de pusilanimidade, pois ele, também é um bundão ao tirar vantagem, sem o menor escrúpulo, de uma pessoa de "vida minúscula e bem sucedida (...)". (p.97).
Para descrever a mulher, o narrador não poupa expressões naturalistas "A mulher dele é baixinha e tem as tetas grandes. (...) Qualquer dia chupo as tetas dela. O babaca confia em mim. Eles são rotarianos." (p.97). As personagens são uns babacas sócios do Rotary Club, que tem por lema a ajuda ao próximo e a amizade, porém apenas entre os membros do clube e que não escolhem participar, mas são escolhidos para pertencerem ao clube.
Os filhos do casal, ele descreve como "O garoto é bicha e quer fazer ESPM. A menina é uma biscate. Eles me chamam de ?tio?, os cínicos." (p.100). Porém maior cinismo, parte do tom narrativo de Marcelo Mirisola que com crueldade finge dizer a "verdade" para extrair o máximo de espetáculo das personagens. "? sabia que sua mãe não suporta você, fernandinha? / aí o arremedo de piranha chora. Se descabela, e eu lhe dou uns conselhos." (p.100)
O conto mostra uma família que não enxerga por conivência, conformismo ou completa cegueira. São pessoas que dividem o mesmo ambiente mas não se conhecem. É o narrador que conhece a todos, que circula em todos os espaços, inclusive a empregada em quem ele dá umas "encoxadas". Essa intimidade permite ao narrador ser o conselheiro da família, contudo seus conselhos são algo escatológico: "?Enfia! Enfia que vai salvar seu casamento!?. O casamento deles está em crise. Eu vivo falando para ela enfiar o dedo no cu dele. Mas ela não tem coragem." (p.98).
Outro ponto interessante que denota ironia é o mosaico de referências ao mundo pop que mostra a relação com a cultura de uma família burguesa: Blota jr., Karaoquê, "Feelings", mocassim Apache, bermuda da Fórum, camiseta pólo, ESPM, Honda Civic, Bell?s Beach, Elton John.
Toda essa alusão a ícones do mundo pop é narrada com a ironia de quem quer mostra quão banal se tornou a sociedade de consumo e todos os seus símbolos são transformados em moedas de troca "? Pede um Honda Civic pra ele. Ele adora você. E você adora o Duarte, não é assim?" (p.100).
Assim, podemos aproximar as duas narrativas pela clave do cinismo da voz que narra cada conto, tendo em vista que ambos os narradores falseiam-se diante do leitor para mostrar seu desencanto com a sociedade em que estão inseridos e que não conseguem afastar-se, pois mutilados pelo seu modo de encarar a vida têm dificuldade de sair do visgo os prende a vida banal.






BASTOS, Dau (ORG.) Papos Contemporâneos: entrevistas com quem faz literatura brasileira. Rio de Janeiro: Faculdade de Letras UFRJ, 2007.

CHIARA, Ana e ROCHA, Fátima Cristina Dias. (org) Literatura Brasileira em Foco: o eu e suas figurações. Rio de Janeiro: Casa 12, 2008.
FERRÉZ (org). Literatura Marginal: talentos da escrita periférica. Rio de Janeiro: Agir, 2005.
Rebello, Ilma da Silva. A Literatura e a Estética Literária na Era da "Indústria Cultural": uma leitura de Budapeste de ChicoBuarque in:http://www.filologia.org.br/soletras/12/01.htm







Autor: Daniel Martins Cruz Junqueira


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