Paulo Honório, um narrador-personagem de vida agreste e de alma reificada



Paulo Honório, um narrador-personagem de vida agreste e de alma reificada

"O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que domina tudo" Karl Marx

O romance São Bernardo, de Graciliano Ramos, é uma narração memorialística ficcional tecida pela visão materialista de seu narrador-personagem, Paulo Honório. Órfão, criado por uma negra analfabeta, luta para conseguir ascensão social a qualquer preço. Quando conquista a riqueza e o reconhecimento desejados, descobre-se solitário e infeliz.
Com isso, decide fazer um balanço da própria vida em um processo narrativo e imagina "construí-lo pela divisão do trabalho" (Ramos, 1996, p.5). Na reconstrução de sua trajetória, surgem os traços marcantes de uma personalidade agreste moldada por um modelo socioeconômico do qual fazia parte. Paulo Honório opta pela especialização do trabalho, de modo a conseguir a máxima vantagem, com o objetivo de aumentar a eficiência da produção.
Porém o otimismo com que Paulo Honório encara a empresa no início dá lugar a uma frustração devida à confusão gerada pelos diferentes pontos de vista de cada "cooperador".

A princípio tudo correu bem, não houve entre nós nenhuma divergência. A conversa era longa, mas cada um prestava atenção às próprias palavras, sem ligar importância ao que o outro dizia. (Ramos, 1996, p.6)

Tais atitudes são conseqüências da alienação do homem em todos os aspectos imagináveis da vida, tanto em relação à natureza, quanto ao outro e em relação à sociedade. Algo que é produzido por ele em forma de arte e prazer passa a ser uma atividade desenvolvida de maneira mecânica que o condiciona e limita sua capacidade criacional, tornando-se cada vez mais distante a possibilidade de independência, uma vez que perde o conhecimento da técnica e agora desenvolve atividades parciais no processo de produção.
Ao final do segundo capítulo surge uma questão fundamental para a obra e para a literatura em geral "? então para que se escreve"(Ramos, 1996, p.10), que pode ser traduzida por qual é a função da literatura? Qual é a função de passar pelo crivo da escrita uma vida inteira?
Desde o primeiro momento, Graciliano Ramos nos apresenta claros sinais de o romance ser um exemplo de metanarrativa, ou uma poética de um narrador sertanejo, agreste e reificado, homem de pouco trato com as forças humanizadoras das letras. "O que é certo que, a respeito de letras, sou versado em estatística, pecuária, agricultura, escrituração mercantil, conhecimentos inúteis neste gênero."(Ramos, 1996, p.9)
Como afirma Candido em Ficção e Confissão, "Até quando escreve, a sua estética é a da poupança." "É o processo que adoto: extraio dos acontecimentos algumas parcelas; o resto é bagaço" (Candido, p.35). A vida, para Paulo Honório, tanto narrada quanto experienciada in loco trata-se de um "negócio" ou de uma conta aritmética; ou seja, ele "matematiza" a vida, através de um pensamento lógico-matemático, construído ao logo da sua ambiciosa vida.
Quando se depara com pessoas que possuem um senso de humanidade qualquer, o narrador não consegue entendê-las; ele tem pensamentos tortuosos que não permitem espaço para o lúdico nem para a imaginação. "? Lorota! O hospital, sim senhor. Mas biblioteca num lugar como este! Para quê? Para Nogueira ler um romance de mês em mês. Uma literatura desgraçada..." (Ramos,1996, p.91). Fato interessante, pois no final da vida a maneira que ele descobre para reconceitualizar sua existência é através de uma autobiografia, apesar de não admitir, mesmo colocando em dúvida o papel da escrita literária.

Ocupado com esses empreendimentos, não alcancei a ciência de João Nogueira nem as tolices do Gondim. As pessoas que me lerem terão, pois, a bondade de traduzir isto em linguagem literária, se quiserem. Se não quiserem, pouco se perde. Não pretendo bancar escritor. É tarde para mudar de profissão. E o pequeno que ali está chorando necessita quem o encaminhe e lhe ensine as regras de em viver.
? Então para que se escreve? (Ramos, 1996, p.9)

Paulo Honório é dominado pelo sentimento de posse, tendo em vista que a acumulação de capital e sua conseqüente noção de propriedade levam-no a construir tal sentimento em suas relações interpessoais. Figura dominadora e ativa, o narrador-personagem afirma, no capítulo 25, que começa a sentir ciúmes de Madalena, pois sua mulher parece, para ele, ter mais afinidades com Padilha e Nogueira. Paulo Honório tem a mente baralhada por idéias confusas. Possui uma filosofia própria, a qual tenta adaptar o mundo, sem êxito.

Mediada sempre pelo mercado, a consciência humana tende progressivamente a fechar-se à compreensão dos elementos qualitativos e sensíveis da realidade. Todo valor se transforma ? ilusoriamente ? em valor-de-troca. E toda a relação humana se transforma ? destruidoramente ? numa relação entre coisas, entre possuído e possuidor. (LAFETÁ, 1996 p.206)

Para Paulo Honório, a simples conquista de São Bernardo não é suficiente. O narrador sente a necessidade de aumentar suas posses e ele vê em Madalena esta possibilidade. É com a escolhida para ser sua esposa que Paulo Honório vai suprir a carência de falta de letramento. Com um pensamento de caráter naturalista do tipo, o fruto não cai longe da árvore, Paulo Honório conquista/subjuga Madalena com o intuito da procriação. Aquele vê as mulheres como animais procriadores ou bichos esquisitos que poderão render-lhe herdeiros sadios e ainda status social.

Amanheci um dia pensando em casar. Foi uma idéia que me veio sem que nenhum rabo de saia a provocasse. Não me ocupo com amores, devem ter notado, e sempre me pareceu que mulher é um bicho esquisito, difícil de governar.
A que eu conhecia era Rosa do Marciano, muito ordinária. Havia conhecido também a Germana e outras dessa laia. Por elas eu julgava todas. Não me sentia, pois, inclinado para nenhuma: o que sentia era desejo de preparar um herdeiro para as terras de São Bernardo. (RAMOS, 1996 p.57)


Madalena não era da laia de Rosa Marciano nem da de Germana; era uma pessoa apropriada para seu projeto de deixar herdeiros, como afirma o narrador-personagem no capítulo 14, "destinado a Madalena":

A essas (Rosa e Germana) grifo meu azunia-se a cantada sem rodeios, e elas não se admiravam, mas uma senhora que vem da escola normal é diferente.(...) Fiz um esforço para endereçar amabilidades a d. Glória. (Ramos, 1996 p.80)

Para conquistar Madalena, Paulo Honório sabia que deveria utilizar-se de estratégias diferentes das que costumava usar com outras mulheres. Sabia que teria que fazer um esforço hercúleo para não demonstrar o quanto estava reificado e sem sutilezas no trato com outras pessoas.
Seu foco é mostrar o quanto sua fazenda é grande e produtiva, o que pode render financeiramente em comparação ao parco salário recebido por Madalena. Dessa maneira ele estabelece com a professora uma relação de troca; eu lhe ofereço dinheiro e conforto e você um herdeiro e uma situação social compatível a um grande latifundiário.
Em muitos momentos do romance podemos notar Paulo Honório tentando subjugar a delicadeza do letramento e da intelectualidade, com seu caráter agreste e dominador; porém, paradoxalmente, é com uma narrativa que o fazendeiro reconstrói se passado. Na verdade é por meio da linguagem que o relato memorialista é construído, tecido de escolhas, silêncios, lembranças e imprecisões.
O narrador se apresenta como um homem pragmático e isso se reflete na sua maneira de escrever, com seu estilo objetivo. O romance se caracteriza como uma metanarrativa em que mostra o narrador comprometido com o poder. Um narrador-personagem onipotente, incapaz de escrever a própria vida: estes são efeitos produzidos no cruzamento das relações poder/saber.
Paulo Honório, aos poucos, mostra suas opções ideológicas, mas é no último capítulo que estas aparecem mais claramente, no momento em o narrador revisa sua vida. Esta reflexão auto analítica apresenta uma recusa ao processo de reificação que norteia sua existência
O que estou é velho. Cinqüenta anos pelo São Pedro. Cinqüenta anos perdidos, cinqüenta anos gastos sem objetivo, a maltratar-me e a maltratar os outros. O resultado é que endureci, calejei, e não é um arranhão que penetra esta casca espessa e vem ferir cá dentro a sensibilidade embotada. (Ramos, 1996 p.184)

A repetição de sua idade neste parágrafo e no seguinte nos demonstra um narrador aniquilado, que parece não acreditar que gastou toda a sua vida com atitudes e pensamentos inúteis. Encontra-se, agora, sem a mulher, que suicidou-se, sem amigos. Sente-se aleijado, e o mundo que o cerca é repleto de imagens sombrias: lobisomem, silêncio e treva criados por um isomorfismo entre paisagem e psiquismo do narrador. É o pio da coruja, é o mundo à revelia.























Referências Bibliográficas:
ABDALA JUNIOR, B. O Pio da Coruja e as cercas de Paulo Honório. Fotocópia.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 41 ª edição, Cultrix, São Paulo; 1994.
CANDIDO, Antonio. Ficção e Confissão. Fotocópia. P. 31-38.
LAFETÁ, João L. O mundo à revelia. Posfácio. In: RAMOS, Graciliano. São Bernardo. 66 ed., Rio de Janeiro, Record, 1996, p.192-217.
RAMOS, Graciliano. São Bernardo. Rio de Janeiro: Record, 1996.


Autor: Daniel Martins Cruz Junqueira


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