Deste lado do rio: relações sociais e econômicas da comunidade pesqueira do bairro Mauazinho, em Manaus-AM.



Resumo
A pesca artesanal é uma atividade econômica característica da população amazônica, a qual tem com o peixe uma das principais fontes de proteínas. Esta atividade, praticada pelos membros da comunidade de pescadores do bairro Mauazinho, se desdobra em relações de trabalho com características próprias, determinados por fatores ambientais e com a constante tentativa de intervenção do trabalho capitalista. Este artigo procura realizar a demonstração do fluxo econômico e social do pescado extraído por esta comunidade, até o consumidor final.

Palavras-chave: Pesca artesanal; Mauazinho; atravessador.

Abstract
Fishing is one of th economic activities related to the Amazonian population, which has the fish as the major source of animal protein. This activity, practiced by members from the fishing community of Mauazinho, is based in a working relationship which has its own characteristics, determined by environmental factors and the constant attempts from the capitalist labor intervention. This article tries to demosntrate the social and economic flows of fishing activities, from their catch to the end consumer.

Keywords: Fishing; Mauazinho; Commercial middleman.

Apresentação
Na comunidade residente às margens do igarapé que leva o mesmo nome do bairro, especificamente, a atividade econômica principal é a pesca artesanal entre os meses de maio a dezembro, intercalada a atividades diversas durante o período anual de defeso. O objetivo deste artigo é expor as relações sociais e econômicas de produção do pescado nesta comunidade, além da relação entre trabalho e capital que delas se origina.

De acordo com os próprios pescadores, suas atividades são caracterizadas como pesca artesanal, uma vez que se utilizam de equipamentos e ferramentas simples, como as próprias embarcações, redes e sistemas de armazenamento de pescado. Não há ocorrência, na área estudada, de atividades de pesca industrial (com utilização de embarcações com câmaras frigoríficas, redes automatizadas, sonares de localização de cardumes e sistemas de propulsão modernos). Para o grupo de pescadores estudado neste artigo, a pesca industrial não forma um pescador em sua essência, pois o empregado da embarcação é, segundo eles, equiparado ao operário de uma fábrica: torna-se especializado em uma única função, e não possui acesso ao conhecimento de todas as etapas do trabalho pesqueiro. Entretanto, tem-se:

"A terminologia pescador artesanal é imposta pelos órgãos oficiais de pesca a todos aqueles pescadores que não são empregados assalariados de empresas industriais e/ou grandes barcos pesqueiros e, dessa maneira, se estende a todos os outros pescadores". (CARVALHO, 2002, pag. 62)

Em toda mercadoria comercial, seu preço é o maior indicador de mercado. O preço do peixe, no entanto, possui lógica própria, pois a mesma mercadoria-peixe pode variar de preço não só no decorrer do dia, mas também no decorrer das estações do ano em Manaus, ditados pelos períodos de cheia e vazante dos rios Negro e Solimões. A variação de preço considera fatores como espécie, época do ano, tamanho e aparência do peixe, se está "ovado" ou não, se fresco ou pescado no dia anterior, até mesmo o horário do dia, entre outros, que constituem variáveis de difícil compreensão, porém determinantes do preço do pescado. A produção da comunidade não é despachada diretamente ao consumidor final. A figura do atravessador do pescado está diretamente inserida na vida social da comunidade e executa, além da função econômica, a ligação entre os pescadores e o núcleo urbano de Manaus.

A demanda do pescado, em geral, sempre esteve relacionada ao consumo da população local. Deste modo, a produção pesqueira da comunidade do Mauazinho é composta, em sua maioria, de jaraqui, pacu e sardinha (peixes de escama populares). Apesar de existirem, nas áreas de captura, outras espécies de valor comercial fora do estado do Amazonas (principalmente bagres), as mesmas são desprezadas em grande parte da temporada de pesca anual.

Durante a coleta de dados para a realização deste artigo, foi utilizada inicialmente a observação sistemática direta, entre os meses de março e junho de 2011. Em um segundo momento, após a criação de vínculos de amizade com alguns membros da comunidade estudada, o método de pesquisa utilizado foi a observação participante, aliada principalmente à entrevista etnográfica com alguns membros.

Segundo Hammersley (1990), o termo "etnografia" refere, em termos metodológicos,
investigação social que comporte a generalidade das seguintes funções:

a) o comportamento das pessoas é estudado no seu contexto habitual e não em
condições artificiais criadas pelo investigador;

b) os dados são recolhidos através de fontes diversas, sendo a observação e a
conversação informal as mais importantes;

c) a recolha de dados não é estruturada, no sentido em que não decorre da execução de
um plano detalhado e anterior ao seu início, nem são pré-estabelecidas as categorias
as quais serão posteriormente usadas para interpretar o comportamento das pessoas (o que não significa que a investigação não seja sistemática, mas apenas que os dados são recolhidos em bruto, segundo um critério tão inclusivo quanto possível);

d) o foco do estudo é um grupo não muito grande de pessoas, mas, na investigação de
uma história de vida, o foco pode ser uma única pessoa;

e) a análise dos dados envolve interpretação de significado e de função de ações humanas e assume uma forma descritiva e interpretativa, tendo a (pouca) quantificação e análise estatística incluída, um papel meramente acessório.




A comunidade de pescadores do bairro Mauazinho

O bairro do Mauazinho, localizado na Zona Leste de Manaus, foi criado oficialmente em 1968, após a instalação definitiva da Zona Franca de Manaus. Sua ocupação definitiva, no entanto, se deu a partir de 1969, com a construção do Porto da Ceasa. Apesar de antigo e possuir grande área geográfica (724 hectares) dentro da área urbana do município, sua população, de acordo com o Censo 2010, é de apenas 11.719 habitantes, por conta de sua distância do centro de Manaus. Destacam-se, neste bairro, vários portos comerciais, a refinaria da Petrobras, terminais de recebimento de combustíveis de outras empresas petrolíferas, as usinas termelétricas Mauá e Electron e indústrias de beneficiamento de madeira.

Antes da ocupação, a faixa fluvial compreendida entre a ilha do Marapatá e o igarapé do Jardim Mauá já era utilizada como área de pesca, por pescadores artesanais residentes nos municípios de Careiro da Várzea e Careiro Castanho, em sua maioria. Na ocasião, a produção era distribuída por atravessadores no porto da Manaus Moderna, distante da área de pesca. Com a construção do porto da Ceasa e a abertura das avenidas de acesso ao bairro, tornou-se viável a mudança para a capital.

Em 1973 as primeiras famílias de pescadores se estabeleceram definitivamente no bairro, ocupando a área de praia próxima ao cemitério Nossa Senhora das Lajes. Atualmente há cerca de dez famílias residentes na área de praia, sendo cada família proprietária de uma embarcação, além de pescadores "contratados" residentes no interior do bairro. São organizados sob o sistema de colônia de pescadores artesanais, e sua produção é praticamente toda encaminhada ao porto da Ceasa por um mesmo e único atravessador desde 2001.

Apesar de organizados sob sistema de colônia e baseados na economia familiar, de acordo com relatos dos próprios pescadores para a confecção deste artigo, esta organização se dá apenas por finalidade jurídica, a fim de obtenção da regularização da atividade e o direito ao seguro-defeso e aposentadoria. Na prática, ocorrem conflitos permanentes entre várias famílias da colônia, principalmente relacionados à utilização das áreas de lançamento de redes, utilização da verba comunitária, preço de venda do pescado e a contratação de pescadores avulsos. Segundo um membro da comunidade:
"Nós nos organizamos em colônia apenas para fazer o agá para o governo e termos nossos direitos trabalhistas. Mas aqui, de colônia não tem nada: as famílias vivem em pé de guerra e vez ou outra estão se matando por qualquer coisa. Meu barco mesmo, eu sempre deixo um vigia para dormir nele, senão pode amanhecer todo depenado, e enquanto conserto o caso tem outro barco utilizando minha área de campanha" (R.A, 54, dono de embarcação)

A área de lançamento de redes de pesca é chamada de campanha pelo grupo de pescadores. Cada família é "dona" de sua respectiva campanha, através de acordo firmado entre as famílias. No entanto, a campanha pode ser utilizada por outra família, caso o "dono" desta deixe de trabalhar no dia destinado à pesca, ou a "alugue" para esta outra família. Existem 11 campanhas com "dono" exploradas pelo grupo pesquisado, localizadas entre a ilha do Marapatá e o futuro porto das Lajes. As mesmas são exploradas entre os meses de maio a agosto de cada ano e basicamente toda a produção é composta de jaraqui (Semaprochilodus theraponura). A partir de agosto, com a formação de faixa de praia nas campanhas e o desaparecimento dos cardumes de jaraqui por conta da vazante do rio Negro, ocorre a migração das atividades de pesca para o rio Solimões, mais especificamente nas localidades denominadas Paraná Terra Nova, Lago do Cambixe (ou lago Central) e Ilha do Careiro¹, estes pertencentes ao município de Careiro da Várzea. Na ocasião, entre setembro e janeiro, as espécies capturadas são a sardinha (Triportheus spp), o pacu (Mylossoma spp), além de bagres diversos (chamados de "peixes lisos"). Entre janeiro e maio, ocorre o período de defeso e, deste modo, parte do grupo de pescadores se envolve em outras atividades como o corte e beneficiamento de madeira, comércio de alimentos e bebidas², ou fretamento de embarcações para lazer ou transporte de passageiros.

Finalmente, apesar de habitarem a área urbana de Manaus por quase quatro décadas, e apresentarem um modus vivendi típico de um habitante da cidade, os pescadores do Mauazinho se consideram ribeirinhos (em oposição ao termo pescador citadino). O termo deixa de ter conotação geográfica para estar relacionado, neste caso, à identidade do grupo social.

"[...] a territorialização funciona como fator de identificação, garante a defesa no que se diz respeito ao uso dos recursos naturais. A idéia é delimitar uma territorialidade específica, determinar as unidades sociais resultantes de diferentes processos sociais de pertencimento coletivo. [...] é possível perceber que os moradores [...] se consideram ribeirinhos por habitarem uma comunidade que alaga durante alguns meses do ano, em outras palavras, reconhecem a relação de troca que estabelecem com o meio em que vivem, de modo que esse processo de identificação garante seus direitos em relação à ocupação territorial do lugar". (FRAXE, 2009)


Divisão do trabalho e da renda, e o peixe como mercadoria

A produção pesqueira na área estudada está envolvida por uma situação que transita desde aspectos relacionados ao cotidiano alimentar da população regional até diferenciadas relações de mercados as quais extrapolam o local, adotando novas lógicas na divisão do trabalho a qual envolve sua estrutura de mercado em Manaus.

Uma consideração importante a ser feita é a condição do peixe enquanto mercadoria. Segundo Marx (1985) "a utilidade de uma coisa faz dela valor de uso" sendo que "o valor de uso realiza-se somente no uso ou no consumo". Por outro lado as coisas também possuem uma propriedade intrínseca a si que as faz permutáveis por outras e "o que há de comum, que se revela na relação de troca ou valor de troca da mercadoria, é, portanto, seu valor" (MARX, 1985). Com isso, a pesca apresenta outra perspectiva de mercado a qual abrange uma diferenciação na raiz das relações capitalistas de produção, que é a discussão do valor de uso e valor de troca.

Cada embarcação pesqueira possui, em sua guarnição, membros de uma mesma família em sua maioria numérica, geralmente com o chefe da família na função de "patrão", ou seja, comandante e dono da embarcação. Resumidamente, as funções laborais em uma embarcação pesqueira da comunidade estudada estão divididas da seguinte maneira:

a) Comandante da embarcação ("patrão"): proprietário do barco e das redes, e que conhece todas as funções no trabalho pesqueiro. Geralmente recebe o comando do barco de forma hereditária.

b) Lançador de rede: profissional especializado nesta função, com bom condicionamento físico, habilidade e força. Em alguns casos, a família não dispõe deste profissional, e o contrata no bairro do Mauazinho ou no município de careiro da Várzea.

c) Observador de cardume ("olheiro"): é o profissional mais respeitado da embarcação. Sua atividade consiste em fixar posto avançado e analisar o fluxo de cardumes na área da campanha. Somente após sua ordem as redes são lançadas. Geralmente o "olheiro" é o membro mais idoso da família, com experiência em todas as outras funções na embarcação e sem condições físicas de exercer outras funções.

d) Puxadores de rede: geralmente em quantidade de 4 a 6 por embarcação. Após a captura do cardume, são responsáveis pelo recolhimento da rede à embarcação, retirada e contagem dos peixes capturados. Exercem também as funções de manutenção e limpeza da embarcação. Usualmente é a primeira função exercida pelo novato no trabalho de pesca.

e) Canoeiros: responsáveis pela ligação entre a embarcação e o meio externo, transporte das redes durante o lançamento e recolhimento das mesmas, e transporte do peixe para a embarcação do atravessador. Esta função é geralmente desempenhada pelos membros mais jovens da embarcação, inclusive crianças.

Um fato peculiar e de relevante importância no estudo socioeconômico da atividade pesqueira desta comunidade, é referente à distribuição das despesas e receitas entre os membros da guarnição pesqueira, conforme o exemplo a seguir: a guarnição da embarcação Rio Mengo, composta do "patrão", lançador de rede, "olheiro", 04 puxadores de rede e 02 canoeiros, perfazendo o total de 09 profissionais.

O comandante da embarcação é o responsável pela aquisição de todos os materiais necessários para o dia de trabalho na campanha (combustível, mantimentos, manutenção da rede e do barco, etc). Tais gastos são divididos equitativamente por todos os membros da guarnição (1/9 para cada membro). A divisão da receita da pesca, no entanto, é realizada da seguinte maneira: a embarcação e a rede passam a se tornar "membros" da guarnição, elevando seu número para 12 elementos. O "patrão", por ser proprietário de ambas, passa a representar 3/12 na divisão da receita, recebendo um valor maior (25% do total arrecadado) em comparação aos demais membros da guarnição (8,3% do total arrecadado).

Durante o acompanhamento de um dia inteiro de atividades em campanha desta embarcação, verificaram-se os seguintes resultados: foram realizados dois lançamentos de rede, às 09:00h e às 14:00h, com o total de aproximadamente 5000 jaraquis capturados. Outras espécies capturadas (bodó, arraia, cuiú-cuiú e bagres) são distribuídas pelo comandante aos demais membros da guarnição. Esta produção de jaraqui foi vendida ao atravessador ao preço de R$ 220,00 o milheiro, e por sua vez o atravessador repassou o pescado no porto da Ceasa ao valor de R$ 280,00 o milheiro. De acordo com informações do atravessador, o pescado lhe é pago à vista no porto da Ceasa, e o repasse da receita da embarcação é realizado em terra, ao final do dia, e descontados os débitos da embarcação com o atravessador. O "patrão" da embarcação, por sua vez, realiza a divisão das receitas e despesas entre a tripulação somente aos sábados, pois:

"Se eu pago o pessoal todo final de dia, ele vai até a beira encher a cara de cachaça, e no dia seguinte não vem trabalhar, nem no outro, até acabar o dinheiro. Assim, sem dinheiro durante a semana, eu consigo controlar o pessoal". (R.A, 54 anos, dono de embarcação).

As demais espécies capturadas durante o período observado perfaziam em torno de 20 exemplares, divididos entre os puxadores de rede, o lançador de rede e o observador. Assim, verificou-se que, por possuírem maior valor comercial agregado em relação ao jaraqui (principalmente os bagres), tais exemplares não foram repassados ao atravessador. Os pescadores os consideram como "pagamento extra" e os utilizam como valor de troca por outras mercadorias em terra, ou mesmo utilizados para consumo ao final do dia. Assim, o peixe não passa necessariamente por relações de mercado, mas sua função no abastecimento familiar é cumprida. Em relação a este fato, tem-se:

"uma coisa pode ser valor de uso, sem ser valor de troca. É esse o caso, quando sua utilidade para o homem não é mediada pelo trabalho. (...) Quem com seu produto satisfaz sua própria necessidade cria valor de uso mas não mercadoria. (...) Para tornar-se mercadoria, é necessário que o produto seja transferido a quem vai servir como valor de uso por meio da troca." (MARX, 1985).

Tal particularidade do pescado representa uma forma diferenciada de suprir as demandas de abastecimento. Essa condição de apenas valor de uso reflete as relações sociais as quais compõem, ainda, o ribeirinho enquanto sujeito social que ainda não está inserido totalmente nas relações capitalistas usuais de produção. O peixe constituído de valor de uso e troca, no entanto, evidencia uma organização das forças de trabalho em torno de uma estrutura de mercado a qual viabiliza, na forma capitalista, a comercialização deste pescado.

De acordo com Abramovay (2008), "mercados devem ser estudados sob o ângulo institucional, sociológico, histórico, como construções sociais". Deste modo, o estudo restrito às condições econômicas de mercado não é suficiente para a plena compreensão da dinâmica de um grupo social com características peculiares, como é o exemplo do grupo de pescadores do Mauazinho e suas interações sociais. O mercado capitalista "é uma forma de interação social que distorce, corrompe, polui, degrada a nobreza da cooperação direta, não mediatizada pelo dinheiro, entre atores" (ABRAMOVAY, 2008).

A função social do atravessador

O atravessador de pescado é uma função presente em praticamente todas as relações comerciais nas quais o pescado está envolvido, especialmente na Amazônia. Também chamado de marreteiro ou aviador, geralmente esta função está relacionada de forma negativa na cadeia produtiva do pescado.

"[...] a intermediação estabelece [...] uma profunda relação de dependência. A aceitação, aparentemente resignada, do preço baixo do peixe por parte do pescador, também se deve a um "pacto" de lealdade existente entre alguns pescadores e atravessadores, que se cria através do endividamento moral (ou material), quando o pescador recebe algum adiantamento. Mas, pode haver outras bases para a lealdade, além daquela que advém do empréstimo, como, por exemplo, aquela baseada no bom relacionamento entre as partes" (CARVALHO, 2002, p. 81)

A comercialização do pescado produzido pela colônia, desde sua instalação em Manaus, sempre foi realizada por intermédio de um ou mais atravessadores. Apesar desta forma de comercialização sempre estar negativamente relacionada à exploração, elevação de preço do pescado até o consumidor final e à criação de uma relação de dependência econômica, o contexto e função desta atividade deve ser analisada de forma neutra, a fim de se obter a plena compreensão da mesma.

Durante o período de pesquisa de campo para a elaboração deste artigo, as atividades do atravessador de pescado foram acompanhadas durante um período de 6 horas (12:00h às 18:00h), em um único dia. Desta forma, aliada às entrevistas com o mesmo e com outros membros da comunidade, verificou-se que ocorre uma relação de sinergia e mutualismo entre as partes deste grupo social.

O atravessador pesquisado reside no bairro do Mauazinho, porém fora dos limites da comunidade pesqueira. Sua embarcação, no entanto, fica atracada junto às embarcações pesqueiras na comunidade. É natural do estado de São Paulo, exercia a função de caminhoneiro e, após contrair matrimônio em 1998 com a filha de um "patrão" de pesca da colônia, passou a ser aceito na comunidade e, desde 2001, é o único atravessador o qual comercializa o pescado produzido pelo grupo³.

Diariamente, durante o período da manhã, o atravessador permanece com sua embarcação em um ponto central do perímetro das campanhas de pesca, e dirige-se a cada uma delas após contato telefônico de cada patrão de pesca, para coleta do pescado. Após intervalo para almoço, o pescado coletado nas campanhas é encaminhado ao porto da Ceasa para dois distribuidores, os quais repassam o produto aos feirantes e casas comerciais de Manaus. Ao final da tarde, o atravessador percorre uma rota pré-estabelecida entre as campanhas, para coleta da produção pesqueira residual. Esta produção é novamente encaminhada ao porto da Ceasa, porém direcionada pelos distribuidores exclusivamente para a feira da Manaus Moderna, e é vendida durante o período da madrugada aos feirantes. Antes do anoitecer, é realizada a prestação de contas entre os distribuidores e o atravessador, que por sua vez retorna à comunidade para a prestação de contas com os patrões de pesca.
Além do trabalho de intermediação no comércio do pescado, o atravessador também exerce a função de agente de ligação entre as embarcações e o núcleo urbano da capital. Durante uma jornada de trabalho, ocasionalmente os patrões de pesca solicitam ao atravessador o envio de mantimentos extras, peças de reparo das embarcações, remoção de pessoal da campanha para a colônia, e até mesmo a realização de pagamento de contas bancárias de membros das tripulações.
Observou-se que a necessidade da presença do atravessador ocorre, principalmente, devido à estrutura física das embarcações utilizadas pela comunidade. Cabe, portanto, uma breve descrição das mesmas.
A embarcação típica é construída em madeira, com motor Diesel de centro e comando na proa. Os comprimentos variam entre 6 e 13 metros. Apresentam piso único e porão para armazenagem de pescado e materiais de trabalho, sem refrigeração. Seu custo de aquisição, para uma embarcação nova, gira em torno de R$ 20.000,00. Verificou-se, na área do porto da Ceasa, a venda de embarcações usadas por valores entre R$ 10.000,00 e R$ 15.000,00. Seu custo de manutenção é baixo, os proprietários não registram as embarcações na Capitania dos Portos, e seu consumo de combustível aproximado é de 25 litros de óleo Diesel por dia de atividade pesqueira em campanha de pesca no rio Negro.
Uma embarcação de pesca industrial, por outro lado, possui custos de aquisição e manutenção elevados, em comparação às embarcações de pesca artesanal. Os modelos menores, com capacidade de armazenamento de 800 kg de pescado em câmara frigorífica, possuem valores a partir de R$ 40.000,00. Ainda, seu custo de combustível para a mesma atividade é cerca de seis vezes maior, por conta da necessidade de se manter o motor ligado, mesmo ancorada, já que se faz necessário o funcionamento contínuo de sua câmara frigorífica.

Deste modo, torna-se necessária a coleta do pescado pelo atravessador tão logo ele é capturado, por conta da ausência de meios de armazenagem e conservação da produção nas embarcações de pesca artesanal, aliada à necessidade de se permanecer na campanha de pesca por um dia inteiro devido aos dois lançamentos de rede realizados diariamente.

O atravessador, de forma geral, não é visto pela comunidade como um agente de exploração do trabalho dos pescadores. Ao contrário, alguns patrões de pesca o consideram "empregado" da colônia, invertendo assim o conceito prévio o qual se tem desta atividade.

"O Louro (atravessador) trabalha para nós, é nosso motoboy de canoa. Você viu que ele fica o dia todo por conta da gente, e quando a gente liga dizendo que puxou rede, ele corre para pegar o peixe. Sem falar que ele sempre traz o que a gente precisa. Basta ligar". (L.F. 51, patrão de pesca)


Considerações finais

A pesca artesanal como atividade extrativista, foi uma das primeiras atividades laborais exercidas pelo homem. Conforme Diegues (1983), "a pesca em sociedades primitivas, ainda que segundo indicações arqueológicas e etnológicas, ela tenha representado uma importante fonte de alimento em períodos anteriores ao aparecimento da agricultura", de forma que possibilitou a inserção de novas proteínas na alimentação humana como também desenvolveu habilidades necessárias a transformação do homem em ser social.

Esta atividade, praticada pelos membros da comunidade do Mauazinho, ainda se utiliza dos mesmos recursos tecnológicos pesqueiros utilizados no início do Sec. XX. Este atraso tecnológico, aliado à fraca presença do Estado, condiciona o grupo a relações comerciais e de trabalho baseadas no imediatismo e informalidade.

Considerando que a produção de pescado da comunidade supre tão somente o mercado local, por conta do tipo de espécies capturadas, verificou-se a falta de necessidade em se introduzir novas formas de produção, uma vez que estas são oriundas da demanda do produto no mercado interestadual e internacional, e este não é o caso.

A atividade pesqueira sempre esteve inserida no contexto histórico da região Norte, e sua importância permite a existência de uma gama complexa de temas a serem estudados e compreendidos, sejam eles de cunho social, econômico, biológico ou político. No Ama¬zonas, a ativi¬dade pesqueira é de grande relevância para o in¬cre¬mento da economia local, além de con¬tribuir enorme¬mente para uma política de se¬gu¬rança al¬i¬mentar. Se-gundos dados do IBAMA, de¬sem¬barca no porto de Manaus entre 25 a 30 toneladas de pescado por ano e em¬prega cerca de 155 mil pes¬soas. Os pescadores e pescadoras artesanais são responsáveis por 65% da produção.

A pesca artesanal promovida pela comunidade do Mauazinho, permanecendo imutável em suas tradições e técnicas desde seu início, procura resistir à ameaça de extinção por conta do capitalismo, o qual possui a essência de transformar o pescador artesanal em assalariado. Ainda, a maioria dos atuais investimentos e políticas públicas está voltada para o fortalecimento do hidronegócio, com exclusivo interesse em se privatizarem as águas para instalação de fazendas de cultivos. Dessa forma, suprimem os territórios das comunidades pesqueiras e promovem a desregulamentação da legislação ambiental, conquistada historicamente por lutas, tradições e mobilizações populares.

Os estudos da sociologia agrária colocaram o camponês, o ribeirinho, ou o pescador artesanal como sujeitos essenciais ao entendimento das sociedades contemporâneas, especialmente para a compreensão do capitalismo. De acordo com Chayanov (1981), aparecem categorias analíticas para que se construa uma lógica de produção e reprodução das sociedades camponesas, emergindo aí suas diferenças e contradições com as formas de produção propriamente capitalistas. Nesta perspectiva, defende a tese das formas não polares na economia, advogando pela existência de diversas formas de organizações sociais e, entre elas, as sociedades camponesas, mesmo que na grande maioria dos casos, subordinadas e antagônicas ao modo de produção capitalista.

O pescador artesanal, por exercer uma atividade extrativista, depende diretamente da natureza para viver, das cheias e vazantes dos rios, da lua, da quantidade de peixes disponíveis, diferentemente de outras atividades que de tantas mediações alienam o trabalhador da relação com o produto do seu trabalho. O pescador artesanal do Mauazinho nessa relação de dependência e de transformação da natureza vai, ele mesmo, se transformando a cada pescaria, adquirindo novos saberes sobre o rio e habilidades sobre a pesca.


"Em todo lugar, os ciclos lunares e de marés, regulam grande parte da periodicidade da vida animal. A vida do pescador também se regula pelas marés, pela lua e pelas chuvas, num ritmo que corresponde ao comportamento dos animais e á vida e aos ciclos sazonais de plantas e animais". (VANNUCCI, 1999).

Notas

¹ Segundo informações colhidas com alguns pescadores da comunidade, estas localidades possuem suas próprias colônias de pescadores.Ocorre, no entanto, que a maioria dos pescadores residentes no bairro do Mauazinho são oriundos destas comunidades, estando assim "autorizados" a pescar nas mesmas.
² A área de praia em torno do cemitério Nossa Senhora das Lajes, formada com a vazante do rio Negro, torna-se um local de lazer aos finais de semana, freqüentado principalmente pelos habitantes da zona leste de Manaus. Assim, o comércio de bebidas e transporte fluvial tem como clientes os banhistas freqüentadores da área.
³ O atravessador, segundo relato do mesmo, foi quem teve a iniciativa de mostrar à comunidade as vantagens de tê-lo como único intermediador na aquisição do pescado. Segundo ele (porém não constatado), as relações comerciais entre atravessador e pescadores são transparentes, e os pescadores conhecem o valor a sem vendido antes da captura dos cardumes.

Referências

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ciências sociais. In: Tempo Social ? Revista de Sociologia da USP, 2004.

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VANUCCI, M. Os manguezais e nós. São Paulo: EDUSP, 2003.

Autor: Frederico Cesarino


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