O Espantalho
No tempo em que a região sul do Pará era ainda quase que totalmente coberta por exuberante floresta, constituída de uma grande variedade de frondosas árvores, e não desse verde rasteiro do capim de pastos das grandes fazendas que hoje substituem as pequenas roças de outrora, nos pequenos lotes de terra demarcada no meio das matas, quando a terra era de quem primeiro chegasse, foi que o compadre Careca, recentemente chegado ao povoado de São Domingos do Araguaia, atraído pela perspectiva de trabalhar autônomo, em sua própria terra, sem ser agregado, sem patrão para lhe mandar, como era o seu viver no sertão do ceará no ano de 1960, começou a trabalhar na sua própria terra, lutando contra todas as dificuldades que ameaçavam lhe barrar suas perspectivas otimistas.
Ajustou contas com o dono da fazenda onde trabalhava como capataz, juntou os cacarecos, a mulher, os três filhos, e em paus de arara fizeram viagem até a cidade de Imperatriz, no Maranhão. De lá, prosseguiram de barco até ao povoado de Apinagés, no Pará, concluindo a viagem sobre lombos de burros, por uma estreita e lamacenta picada, sombreada pela mata fria e festejada com o canto das aves e dos gorgos, o que lhes enchia os olhos e os ouvidos de um encantamento nunca visto no Ceará das caatingas e de uma medonha estiagem.
Resolvera fazer essa mudança a convite de uns parentes seus, já por alguns anos estabelecidos na região, por conta própria, sem serem paus mandados, "donos dos próprios focinhos"; Terra boa, rica, bastante água, muita chuva, muita caça, muito peixe, um paraíso em vista a aridez do sertão de onde veio.
Chegando ao povoado de São domingos, começou logo a levantar a sua moradia; Um barraco de palhas de babaçu, igual a maioria das casas daquele povoado, com todo o material tirado da natureza; Os olhos de palha, que se fossem tirados na lua certa, durariam por vários anos. As forquilhas, os caibros, o cipó-de-escada para os amarradios. Tudo gratuito, oferecido pela mata, custando somente o esforço físico, o qual foi dividido entre os outros moradores que de muito bom grado se dispuseram em ajudar no levante da habitação do novo morador, o qual foi recebido com alegria e curiosidade.
O povoado era constituído de poucas dezenas de barracos, sendo menos de dúzia as casas construídas de tijolos e telhas. Eram as casas dos mais abastados; O dono da única venda ali existente, os donos das terras mais próximas do povoado, já com pastos formados, cerca de arame farpado, cabeças de gado, e a igreja que se situava bem no fim da última Rua de São domingos.
Feito o barraco, passou para dentro dele com a mulher, os filhos e os cacos; Cinco pratos de esmalte, cinco colheres, duas panelas de ferro, uma colher de pau, um pilãozinho de pisar tempero, uma faca, um facão, uma boroca que cabia as roupas de toda a família, um moto rádio, as cinco redes e cinco pares de corda. Nos primeiros dias o barraco exalava um cheiro bom de mato verde, que eram as palhas de babaçu ainda frescas, entrando em processo de ressecamento.
Era pelo mês de julho, quase no tempo de começar o broque das roças. Agora era só arranjar um pedaço de terra, a sua futura fazenda. Era isso mesmo. Não tinha medo de serviço pesado. Não fazia cara feia para dificuldades. Não era de desistir facilmente.
Sua mulher, boa costureira que era, já havia arranjado algumas encomendas, e costurava na máquina de dona Rosália, a mulher do Lourenço da venda. Como pagamento pelo uso da máquina, bastava cozer algumas peças para a filha de dona Rosália, e conversa acabada. Nos primeiros dias depois de instalados naquele povoado, dona Altina era quem vinha arranjando o de comer, com o que ganhava com as suas costuras. Na maioria das vezes recebia o pagamento em arroz já pilado, feijão, farinha e galinhas. Dinheiro mesmo era mais difícil, pois pouco dinheiro circulava ali, a maioria permanecendo preso nas mãos do Lourenço e dos demais de melhores condições financeira.
Quando o compadre Careca chegou para um dos seus parentes, para colher informações de como e a onde arranjaria um pedaço de terra, o mesmo lhe respondeu:
? Primo, aqui a terra é de quem chegar primeiro. Só que as daqui de pertinho do povoado, tudinho já tem seu dono. Tudo amansada. A minha mesmo já tem até um alqueire de pasto. Só falta mesmo o arame pra cercar. Depois de tirar o de comer, vou pegar o resto do arroz, do feijão e do milho, e vou trocar por umas bolas de arame farpado, com o Lourenço. Se Deus quiser, pro ano que vem crio gado.
? Compadre ? Disse o compadre Careca, o qual tinha o hábito de tratar todo mundo de compadre, e quase por todos também era tratado da mesma forma. ? tu que conhece bem essa redondeza, não quer dá umas voltas comigo por aí, pra nós ver um lugar bom pra eu me arranjar?
? Vou sim, primo, mas deixa isso pra sábado que vem. Enquanto isso, não quer ir me ajudar a bater o meu feijão? Nós começa amanhã, sexta nós termina e eu te dou uma lata de feijão pra tu comer por alguns dias.
? Vou na hora, compadre.
Na segunda feira daquela semana o compadre Careca foi com o seu primo, o Vicente, ajudá-lo a bater o feijão.
Era a primeira vez, desde que chegara ali, que o compadre Careca saía do povoado.
São Domingos era rodeado por pastos das propriedades dos moradores mais antigos, as quais formavam uma clareira de mais ou menos 350 braças em quadro. Findos os pastos, pelos quatro lados erguiam-se as verdes e altas muralhas, que era a mata protegendo do resto do mundo aquele povoado.
Montados cada um em lombos de mulas, e uma terceira que seguia na frente, levando uma cangalha e dois jacás com o rancho, as borocas com as roupas e as redes, iam o compadre Careca e o primo Vicente em rumo ao sítio bom jardim, como era assim chamado pelo dono, aquele pedaço de mata virgem, com apenas uma abertura que era um alqueire de pastos do primo Vicente. Depois de romperem os quase quinhentos metros de pastos do Lourenço da venda, penetraram na mata. O compadre Careca ia em silêncio, ouvindo os ruídos da mata, olhando para um e outro lado, para as copas das árvores, e vez por outra perguntava:
? Compadre, que assovio é esse?
? É o canto da jaó, primo.
Andavam mais um pouco e depois:
? Compadre, e esse canto?
? É o canto do peito de aço, primo.
? E aquela grumecha medonha?
? É o canto dos guarbas, primo
? E quantos quilômetros daqui na sua terra, compadre?
? De lá da vila pra lá dá seis, primo.
Andaram quinhentos metros mata adentro e logo saíram numa clareira pequena, umas quatro linhas de abertura. Atravessaram a grota de Lages com a água lambendo os fundos dos jacás da mula de frente; Era a terra do velho Cilírio. A barraquinha estava lá num canto da clareira, bem na beira da mata.
Entraram na mata novamente e a uns dois quilômetros mais a frente saíram em outra clareira pequena do mesmo jeito da primeira; Era a terra do Chico Vítor. Com mais quatro quilômetros de viagem, saíram noutra clareira. Agora era o sítio bom jardim; Uma abertura de cem braças em quadro. No fim dela, na beira do caminho que seguia mata adentro, uma choupana, com as paredes de taipa e a cobertura de palhas de babaçu, na beira de um igarapé de águas escuras feito café fraco; Era o brejão.
? É aqui, primo ? Disse Vicente ? vamos apear e entrar pro barraco.
Apearam, desarrearam os animais que logo foram soltos nos pastos, guardaram as coisas num canto do barraco, ataram as redes e foram acender o fogo do fogão a lenha.
O barraco era de médio tamanho, não possuindo paredes internas, somente a cobertura de palhas e as quatro paredes em redor, uma porta na frente e outra no fundo, ambas feitas de esteiras de olho de palha.
? Primo ? Disse Vicente ? já tá quase de noite, por isso vamos só prosear. Amanhã bem cedinho nós pega no batente. Vamos fazer uma bóia e depois só fumar deitados nas redes, né?
? Pode ser, compadre.
Jantaram ainda com a claridade do dia, depois se deitaram nas redes. O sol morria vermelho e gordo por detrás da mata logo mais em frente. No cimo de uma castanheira seca que havia bem no meio dos pastos, uma acoã repetia o seu canto incessante. Ao longe, o piado da jaó se despedindo do dia. Os guaribass iniciavam o seu côro feito gorgolejos, bem próximo ao barraco. Com pouco já era noite feita, com a lua clara. Agora era o canto do curiango: AMANHÃ VOU...! AMANHÃ VOU...! Era o que parecia dizer aquela ave noturna em seu canto de voz fanhosa, misturando-se com o forte cricrilar de grilos por todos os lados.
Sob a luz de uma lamparina em cima de uma rústica mesa ao centro do barraco, o primo Vicente quebrou aquele silêncio de vozes humanas:
? Primo, essa estrada que segue pra dentro da mata, é por ela que vamos seguir quando nós for marcar a sua terra.
? É mesmo, compadre?
? É.
? E fica muito longe, as terras que ainda não têm dono?
? Uns seis quilômetros daqui, do outro lado dos veados.
? E essa estrada, compadre, vai até muito longe?
? Vai até lá na beira dos veados, primo, de lá pra frente é um matão só.
? Compadre, qual as pragas que dão nas lavouras daqui?
? Primo, praga de inseto mesmo não tem nenhuma, pelo menos até agora... Mas o meu milho mesmo que era pra dá uns cem sacos, só deu vinte, "na marra"; Os macacos-prego botaram foi pra acabar mesmo, viu?
? Tem muito deles por aqui, compadre?
? Hôô se tem! E tôu pra lhe dizer que tem muito mesmo é pra lá pras bandas de onde o primo vai se arranjar, viu?
? Será, compadre?
? Hôô...! Por que é que você não fica aqui comigo? A terra é nossa, primo. Lá, eu digo que tu não vai colher milho nem pra encher o papo de uma galinha, moço, tem macaco-prego demais! E mandioca? O caititú e o queixada come tudo, não sobra nem pra fazer uma papa prum neném. O arroz pode ser; Terra boa, de massapé, mas tem umas capivarinhas...
? Compadre, eu vou marcar a minha terra é lá mesmo. Se caso eu não conseguir nada no primeiro ano, como você tá falando, aí eu venho pra cá, trabalhar mais você. Eu sempre sonhei em ter a minha terrinha só minha.
? Primo, tem a malária. Aqui eu já amansei, mas pra lá, malária dá até nos macacos.
? Compadre, pra malária eu sei me prevenir. Aprendi com um feiticeiro que conheci lá no ceará.
? É mesmo, primo? E como que é isso?
? É só você ter sempre um garrafão de água misturada com raiz de melão de São Caetano, machucada com um dente de alho; Tomar todo dia de manhãzinha bem cedo uma "golepada", e não ir pra beira da água antes das oito da manhã e nem depois das quatro da tarde, viu? Que nessas horas é que o mosquito tá por lá.
? Taí, que eu não sabia! Já peguei três aqui, no ano que eu botei a primeira roça. Pra sarar eu tive que ir pro hospital lá no marabá. Depois o lugar ficou manso, com essa abertura.
? Pois é...
? Então o primo tá mesmo resolvido?
? Tôu sim, compadre.
? Pois boa sorte, primo, qualquer coisa...
Começou a esfriar o tempo. Com a friagem da noite veio também o sono. O primo Vicente levantou-se da rede e apagou a lamparina com um assopro, deitou-se novamente depois de dizer boa noite.
? Boa noite, compadre.
O canto forte dos grilos e das aves noturnas, o farfalhar de folhas bolidas pelo vento faziam a mata permanecer viva, acordada naquela hora da noite. Os dois companheiros dormiam enquanto a lua fazia o seu lento percurso cruzando o céu e deitando sua luz branca sobre a mata em vigília.
No outro dia, ainda com escuro, pegaram no batente. Na sexta ao meio dia terminaram aquela labuta.
? Cinco sacos, primo. Vinte latas. Uma é sua, viu?
? É, compadre, dá pro consumo de mais de dois meses.
Naquele mesmo dia montaram nas mulas e seguiram em frente, pela picada mata a dentro, no rumo dos veados. Pelas três horas da tarde estavam nas margens daquele igarapé de águas escuras e de uma correnteza arisca e silenciosa no seu colear de serpente.
? Primo, do outro lado pra lá você pode marcar a sua terra onde você quiser.
? E pra atravessar esse igarapé, compadre?
? É só subir ou descer beirando as margens, que com pouco se acha um lugar mais estreito, primo.
Apearam dos animais amarrando-os em uma vara de café bravo na beira do caminho e seguiram margeando os veados para o lado de cima. Quinhentos metros mais adiante acharam um local onde as margens eram mais próximas uma da outra. Atravessaram o igarapé com a água acima dos joelhos.
? É sempre raso assim, compadre?
? Não, primo. Tem lugar de caber um de braços pra cima, dois ou três metros de fundura.
Andaram um pouco cortando galhos aqui e acolá, marcando o caminho de volta, até saírem em um pé de anajás, carregadinho de frutos maduros que exalavam um cheiro adocicado e agradável. Constataram que havia muitos deles a pouca distancia um do outro, todos carregados de frutos maduros. No chão, ao pé de cada um, um monte de frutos caídos e roídos pelas pacas, tatus, cotias e caititús. Os frutos mais sadios eram consumidos pelos macacos-prego, os quais tinham o privilégio de comerem-nos ainda lá em cima nos cachos, antes caírem.
Quando se aproximaram do primeiro pé de anajás, a voz natural da mata foi substituída pelos assovios agudos e gritos renitentes do bando de macaco-prego que se banqueteavam daqueles frutos, e que fugiam assustados, pelos galhos, provocando um farfalhar de folhas para todos os lados, até sumirem mata adentro.
? Tá vendo, primo?
? Pois é, compadre.
? Primo, só nesse bandinho devia de ter pra mais de cem. E tem muito bando desse bichinho nesse lado de cá dos veados; Que tal, ainda vai continuar com a sua empreitada?
? Compadre, nesses bichinhos eu vou dar um jeito, você vai ver. Com fé em Deus...
? Então vamos voltar, que já tá quase anoitecendo.
Chegaram à bom jardim já pelas seis horas da noite. Arriaram uma das mulas com uma cangalha, e nela colocaram dois sacos de feijão. O resto o primo Vicente levaria no dia seguinte, depois de tirarem os piques da terra do compadre Careca. Montaram nas outras mulas e seguiram viagem rumo a São domingos, no escuro, guiados apenas pela luz dos olhos dos animais. A luz da lua gorda não conseguia penetrar por entre a folhagem da mata.
No dia seguinte, sábado, logo bem cedo, o compadre Careca e o primo Vicente já estavam com o suor escorrendo-lhes pelos rostos. Já haviam começado o primeiro pique. Marcaram mil metros de frente, que dava para a margem dos veados, e já haviam aberto uns trezentos metros dos dois mil de uma das laterais.
? Primo, quatrocentas braças de frente por quinhentas e vinte e cinco de fundo, vai dar certinho vinte e um alqueires. É o tamanho de todos os lotes daqui. Esse seu vai dar muito mais, Hôô...!
? Compadre, e como é que nós vamos medir esses piques?
? É só tirar uma vara e medir doze palmos dos meus, primo, que dá certinho uma braça.
Pelas cinco horas da tarde já haviam aberto as duas laterais. Faltava agora somente o fundo. A frente já estava marcada, que era a margem dos veados.
? Primo, vamos dormir na bom jardim. Amanhã cedo, antes das dez nós corta o pique do fundo. Aí o primo já vai ter a sua terrinha marcada. Depois é só começar o broque, derrubar, queimar, plantar e deixar os macaco-prego comer o milho todo.
O compadre Careca ouvia aquele jeito galhofeiro do primo Vicente dizer aquilo, porém não se incomodava com isso. Estava muito ocupado em seus devaneios, divagando na futura labuta, na sua primeira roça só sua, sem patrão para lhe mandar, no seu barraco, seus bichos só seus, seu sítio só seu...
No domingo antes do meio dia terminaram a demarcação do lote; "Sítio bagaço grosso". Foi o nome com que o compadre Careca batizou a sua terra.
? Por que esse nome, primo?
? É porque eu sei que a luta vai ser grande, compadre, o bagaço vai ser feio, a briga vai ser grossa contra aqueles macacos. Mas deixa está que eu hei de dar um jeito neles, com fé em Deus. ? Concluiu tirando o chapéu e olhando para cima.
O resto daquele mês de julho transcorreu sem nenhuma novidade, como é o que acontece em lugares isolados igual aquele povoado. Somente os comentários dos homens, na venda do Lourenço, entre um gole e outro de cachaça, falando da entrada do mês de agosto, que era o tempo de começarem o broque das roças. Durante esse período o compadre Careca ganhava a vida dando diárias na limpa dos pastos do Lourenço, com quem estabeleceu uma boa amizade e de quem adquiriu confiança e admiração, pela disponibilidade que tinha para o trabalho. Não era de enjeitar serviço. Era do cabo da foice, do machado, da enxada. Não escolhia serviço, nem dia e nem hora para trabalhar, contando que houvesse pagamento...
Firmou um trato com o Lourenço, no qual o vendeiro lhe forneceria tudo o que fosse necessário para começar a sua empreitada na bagaço grosso, para ajustarem contas somente depois da colheita, no ano seguinte. Em caso de a empreitada não surtir o efeito esperado pelo compadre Careca, o mesmo saudaria a sua dívida em prestação de serviços para o vendeiro. O Lourenço tinha pastos para serem limpos, cercas para serem erguidas na nova abertura que ia fazer naquele ano, por tanto não tinha motivos para se preocupar. Não corria perigo de perder seu investimento na mão do compadre Careca. Aquela dívida seria saudada de qualquer maneira; Ou em dinheiro ou em serviço.
No primeiro domingo de agosto daquele ano, pela manhã bem cedinho, o compadre Careca e o primo Vicente rumavam em direção ao igarapé dos veados, montados nas mulas, e uma terceira levando a carga de coisas do compadre; Machado, foice, faca, facão, enxada, lima esmeril, uma cavadeira, um garrafão de vidro já cheio do preventivo contra malária, uma espingarda lazarina, munição, uma lanterna, uma caixa de pilhas e o rancho. Tudo tirado lá na venda do Lourenço. Menos o contra malária. Fazendo as contas, estava devendo para o Lourenço o equivalente a mais de dois meses de trabalho. Mas com fé em Deus tudo ia dar certo. Iria pagar tudo com a safra do meio alqueire de roça que ia botar. Oito linhas.
Chegando à beira dos veados, o primo Vicente ajudou a descarregar as coisas e retornou para a bom jardim. O compadre Careca ficou sozinho ali, socado naquela matona, volteando as vistas para os lados, para cima, a procura de um lugar para fazer um abrigo.
Primeiro abriu o saco de rancho, tirou o fumo, o papel, o isqueiro, enrolou um cigarro, acendeu-o, e enquanto pitava sentado sobre um pau caído, ouvia os rumores da floresta. Era pelas dez horas da manhã. Os guaribass cantavam lá para os fundos da mata. Os macacos-prego passavam aos bandos, por cima dos galhos mais altos, farfalhando nas folhas das árvores, gritando e assoviando.
Terminou de fumar, pegou o garrafão de contra malária e tomou um bom gole. Como medida de precaução ia fazer o seu primeiro abrigo um pouco distante do igarapé, longe dos mosquitos da malária.
Colocou o facão embainhado na cintura e saiu procurando uma palmeira de babaçu, para tirar as palhas que seria para fazer a cobertura do abrigo. Não demorou em achar várias delas, ainda baixas, lhe dando possibilidades de tirar as palhas sem precisar subir nelas. Tirou mais de cem palhas, aparou as pontas de todas elas, riscou as suas palmas com a ponta do facão bem afiado, bateu-as para o lado de cima, encostando uma palma na outra, ficando as palhas somente com um lado e com o seu talo bem no meio.
Depois pegou o machado e cortou nove forquilhas, todas quase de mesmo diâmetro, seis travessas de mesmo feitio e dez caibros. Cortou um molho de cipó-de-escada e o depositou junto ao restante do material. Agora era só cavar os nove buracos, fincar as nove forquilhas, atrepar nelas as três travessas, fazer o amarradio com as outras três, amarrar os dez caibros e cobrir com as palhas amarrando-as com o cipó-de-escada. No dia seguinte daria início ao seu broque.
Pelas quatro da tarde o barraco estava armado, bem fincado no chão, bem coberto, não se vendo nenhuma fresta no teto, por pequena que fosse, e distando uns trezentos metros do igarapé.
Depositou todas as coisas bem ao pé da forquilha central, pendurou a boroca na travessa do meio, tirou a roupa suada e pendurou-a num varal improvisado dentro do barraco, feito de cipó-de-escada, e foi até ao igarapé tomar um banho. De volta ao barraco, improvisou um fogão a lenha, com três pedras que encontrou lá beira dos veados, e que carregou uma a uma. Bem próximo ao barraco mesmo, encontrou muitos paus secos, com os quais acendeu o primeiro fogo naquela nova habitação. Voltou ao igarapé e retornou trazendo um galão de dez litros de água com a qual encheu o pote atrepado em uma forquilha de três ganchos fincada bem no centro do barraco.
Colocou uma panela com feijão para cozinhar. Ainda não havia comido naquele dia. Somente um cafezinho antes de sair de casa. Abriu novamente o saco de rancho, tirou a carne salgada, estendeu-a no varal, atou a rede, enrolou um cigarro, acendeu-o, deitou-se e ficou a devanear.
A panela começou a ferver emitindo um barulho de borbulhas, e vez por outra o crepitar da lenha ardendo no fogo. A fumaça invadia todo o barraco, mas com pouco um vento brando lhe varria para fora. O farfalhar do vento nas folhas das árvores era constante e misturava-se com os demais rumores da voz da mata, que era o canto dos jacus, o piado da jaó ao longe, o grito dos tucanos, o assovio dos peitos de aço, o côro dos guaribas reboando lá mais adiante e o estalido de galhos e folhas secas sob as patas de algum bicho diurno a passar por perto do barraco. Tudo isso lhe causava uma tranqüilidade e uma moleza agradável.
Fechou os olhos para ver a sua roça já com plantio viçoso, um milhão danado de bom, um arroz de dá gosto só de ver, roça com de um tudo. Depois pastos formados, cerca de arame, cabeças de gado, curral de madeira, casa de tijolos e telhas... Quando retornou dos seus devaneios, o feijão já estava cozido. Assou um pedaço de carne e comeu com o feijão e um punhado de farinha de puba.
No dia seguinte, ainda com escuro, depois de tomar um bom gole de contra malária, fez café, tomou um caneco dele, enrolou um cigarro, acendeu-o e começou a amolar a foice que já tinha sido encabada ainda no dia anterior. Colocou a panela com feijão no fogo, pegou a foice, o facão e foi para o início do pique que começava na beira dos veados, para o lado em que o igarapé descia. Antes de cortar o primeiro galho, benzeu-se e pediu a proteção de Deus.
Quinze dias depois, resolveu medir o que já tinha brocado; Se não desse as oito linhas é porque daria mais. Cortou uma vara e mediu doze palmos; Se não desse uma braça era porque daria mais. Tinha certeza que o seu palmo era ainda maior que o do compadre Vicente. Depois de medir fez as contas; Deu dez linhas. Agora era só derrubar. Tinha que ir até a vila comprar mais rancho. O contra malária só daria para mais uma dose. Ia aumentar a conta lá na venda Lourenço.
Enquanto atravessava o broque em direção ao barraco, seu olfato enchia-se do cheiro bom de mato verde secando. Um bando de macaco-prego passava pulando nos galhos das árvores rente ao aceiro, gritando e assoviando, ressabiados, estranhando aquele oco, aquele vazio que era o broque no meio da mata.
Restaram algumas árvores mais frondosas no meio do broque, mas com muito esforço e fé em Deus, o compadre careca as botaria abaixo, a golpes do seu machado ainda virgem. Depois era só tocar fogo e esperar o final de outubro, que era o tempo de plantar a roça.
Dez dias depois retornou abastecido de mais rancho, contra malária, muita força de vontade e de uma conta ainda mais gorda lá na venda do Lourenço. Tinha nada não. Com fé em Deus... O compadre Vicente foi de novo com as mulas, para ajudar-lhe a transportar as coisas. Era num domingo de meio dia para a tarde. Deixaram os animais amarrados na beira dos veados e foram até ao barraco.
Ao atravessarem o broque, o compadre Vicente ia olhando, admirado daquele servição. O mato cortado estava estalando de seco. Era mesmo hora de começar a derrubada. Ao se aproximarem do barraco, deram com a algazarra dos macacos-prego, os quais malinavam em tudo que havia ali dentro. Derramaram no meio da casa um resto de farinha, de feijão e de arroz que havia ficado sobre um jirau de varas, espalharam as roupas de serviço pelos cantos, derrubaram as ferramentas que tinham ficado encostadas na forquilha central do barraco, uma baderna sem tamanho.
? Tá vendo, primo? Esses infelizes são de matar qualquer um de raiva. E quando tiver milho no ponto? Não respeitam nem o barraco da gente...
? É compadre, os bichos são mesmo de lascar. Mas eu sou teimoso. Vamos ver quem é que vai mandar aqui; Se é eu que sou o dono daqui ou se são eles, que nunca plantaram nem um pé de milho. Deixa está!
Conversaram por um pouco de tempo, enquanto atravessavam o broque, e de volta ao barraco o compadre Vicente resolveu voltar.
? Já é hora, primo. Com pouco anoitece. Amanhã eu também vou começar a minha derrubada. Fique com Deus, primo.
? Deus lhe acompanhe, compadre.
Uma semana depois, todos os paus mais grossos que ficaram em pé, já se encontravam deitados. Agora o broque era uma clareira. Aquele trecho de terra estava desnudo, recebendo os raios do sol de agosto por toda a área descampada. Agora era só tocar fogo no tempo certo. Com mais um mês, pelo fim de setembro, era o tempo; Bem acerado como estava, o fogo não haveria de passar para lado nenhum.
No final de setembro o compadre Careca tocou fogo na sua roça. O primo Vicente, o Chico da Zélia, o Manoel Torquato e o Benedito Montoeira lhe ajudaram naquela tarefa, combinados de o compadre Careca lhes ajudar na queima das suas roças também. Depois de queimado, o trecho ficou quase que somente o chão, limpo de toda a ramaria, permanecendo somente os paus mais grossos, que era um aqui e outro acolá.
? É, primo, ficou uma beleza. Aqui tem tudo pra dar um milhão danado de bom. Um arroz de doze sacos por linha. Se os macacos não atentarem...
No outro dia, primeiro de outubro, caiu um aguaceiro danado, varrendo as cinzas que cobriam a terra queimada. O compadre Careca, que estava na vila naquele dia, foi logo lá na venda do Lourenço e aumentou mais um tiquinho a sua conta, comprando uma lata de milho para o plantio.
? Mas já, compadre? ? Indagava o Lourenço com um ar de surpresa no semblante ? o tempo de começar a plantar não é no final de outubro para o começo de novembro?
? Eu sei, compadre. Hoje vou lá plantar só o dos macacos. O meu mesmo vou guardar pra plantar só no final do mês.
? E os macacos vão lá saber qual a é a diferença do deles para o seu, compadre?
? Deus queira que sim, compadre.
E o compadre Careca plantou duas carreiras de milho abeirando os aceiros, nos quatro lados da roça, uma cova bem próxima uma da outra. Um mês depois plantou o restante, em filas, menos de uma braça uma da outra, no meio do arroz viçoso, plantado uns vinte dias atrás. As primeiras filas de milho plantado no início de outubro já passavam de metro de altura, viçoso, de um verde escuro e brilhante, com os troncos robustos, dava gosto de ver.
Quando o milho mais velho começou a embonecar, o compadre Careca fez uma gaiola de varas, bem firme, amarradas com cipó-de-escada, e em uma de suas laterais colocou uma porta corrediça de cima para baixo, feita com um pedaço de tábua, e na entrada da gaiola colocou uma armadilha sensível ao peso de poucas gramas, de forma que quando acionada, qualquer bicho que pisasse dentro da gaiola, a porta descia e deixava trancado o infeliz ali dentro.
A chuva caía no tempo certo. O plantio crescia viçoso de dar gosto só de ver. O milho mais velho já tinha rebentado espigas robustas e o compadre sempre na vigília, para dar fé do primeiro ataque dos macacos. A qualquer dia eles viriam. Ainda com o escuro da madrugada o compadre começava a rodear a roça, na expectativa do flagra. Foi quando numa manhã, bem cedinho, quando o compadre enrolava um cigarro, ouviu o farfalhar das folhas dos galhos, um pouco mais a frente, beirando o aceiro. Vários macacos pulavam para os pés de milho. Com pouco por todos os lados se via só as palhas do milho se balançando, cada pé com um macaco atrepado nele. Todos em silêncio, como se estivessem se precavendo das vistas do compadre. Daquele jeito aquelas filas de milho só daria para aquele dia, e olha lá. Então o compadre pegou a lazarina e deu um tirão para cima. A gritaria foi geral, os assovios vinham de todos os lados, o farfalhar de folhas perdia-se mata adentro.
O compadre voltou para o barraco e pegou a gaiola, uma penca de banana trazida da bom jardim, somente para aquele fim, e colocou a armadilha bem no meio do aceiro onde os primeiros macacos apareceram na hora daquele ataque voraz. Deixou ali a armadilha com a penca de banana dentro, convidativa, irresistível para um macaco. Com certeza um deles se deixaria levar pela atração daquela oferta, caindo direitinho naquela armadilha.
Não foi uma hora para o compadre ouvir o barulho farfalhante dos inimigos que se aproximavam lá para o lado onde estava a armadilha. Com pouco um grito estridente e agudo, desesperado e repetitivo. O compadre correu para lá e quando se aproximou viu um macaco preso na gaiola, em extremo desespero, com o couro da testa repuxado, olhos esbugalhados, dentes arreganhados, gritando e debatendo-se feito louco. Pegou a gaiola e levou para o barraco. Enquanto caminhava segurando a gaiola, falava para o bichinho que gritava e se debatia em desespero:
? É você mesmo, compadre! É você quem vai expulsar todos os seus companheiros, viu? Vão comer o milho da puta que pariu vocês, viu? Espera aí, viu?
Chegando ao barraco, depositou a gaiola no chão, abriu a boroca e tirou dali de dentro um pequeno macacão listrado de vermelho, preto e branco, que a dona Altina tinha costurado sob sua encomenda.
? Mulher, ? Dizia ele quando foi encomendar aquela peça ? dá pra tu fazer um macacão que sirva num macaco-prego?
? Ôxente, homem, e pra que tu quer isso?
? Mulher, dá pra tu fazer o que tôu te pedindo ou não?
? Se tu me der as medidas...
? E como é essas medidas?
? Comprimento e largura das pernas.
? Mulher, eu acho que uns doze por seis centímetros mais ou menos...
? Comprimento e largura das mangas.
? Acredito que uns oito por quatro dá.
? Largura dos ombros.
? Mais ou menos uns dez centímetros, mulher.
? E o rabo?
? Ôxente, mulher, deixa um furinho de uns quatro centímetros bem nu lugar da bunda, viu? Que é pra passar o rabo, e também para deixar passar as fezes dele. Deixa também um furinho na frente, que é pra ele não se molhar de urina.
? E o tecido?
? Ôxente, mulher, desmancha uma dessas camisas de meia que tem por aí por casa. Vai ficar bom danado, bem coladinho nele, sem perigo de enganchar nos garranchos.
? Agora, ? Continuou dona Altina depois de ter anotado todas as medidas em um pedaço de papel de embrulho ? tu compra dois vidros de tinta pra tecido lá no Lourenço, um preto e um vermelho, que chama mais a atenção. O branco é o da camisa.
Naquela mesma tarde dona Altina concluiu a encomenda do compadre careca.
? É, ficou bom danado. Se servir...
? Ôxente, mulher, vai servir sim, viu?
Agora havia chagado o dia de fazer uso daquilo, botar em prática a sua intenção. O diabo era vestir aquele bicho de dentes afiados. Como ia fazer isso sem machucá-lo e sem sofrer mordidas dolorosas?
Olhando para o macaco que pinoteava dentro da gaiola, tentando desesperadamente sair de dentro daquela prisão, mordendo as varas, gritando e assoviando, com pouco lhe veio uma idéia; Pegou o facão e foi La na mata, tirou uma forquilha de meio metro. Voltou para o barraco e enfiou a forquilha por entre as varas da gaiola. Tentava pacientemente pressionar com o gancho da forquilha o pescoço do bicho contra a lateral da gaiola. Com muito trabalho, por fim conseguiu o seu intento.
Preso pelo pescoço o bicho gritava ainda mais, um grito sufocado, de pavor, os olhos quase saltando para fora das órbitas, esperneando e com as mãos tentava livrar-se daquela forquilha.
O compadre Careca segurou a forquilha com a mão direita e com a esquerda abriu a porta da gaiola, introduzindo-a na direção do bicho, pegou-o pelo pescoço e o tirou para fora. Seus gritos chegavam a doer nos ouvidos, de tão agudos que eram. Com a mão livre pegou o macacãozinho e principiou a peleja para vesti-lo no bicho, com bastante cautela para não deixá-lo escapar. Depois de muita luta, por fim conseguiu vestir o bichinho. Devolveu-o para dentro da gaiola e encarando-o dizia:
? Até que o compadre ficou simpaticozinho com esse macacão, viu?
O bichinho agora estava quieto, sentado no fundo da gaiola, olhando-se curioso, estranhando aquela coisa listrada sobre o seu corpo. Com pouco já estava comendo uma banana. Agora era só esperar o resto do bando voltar para o milharal.
O compadre Careca estava amolando o cutelo para dar continuidade a capina da roça, sempre de olhos voltados para o milharal, em alerta para quando o bando voltasse ao ataque. Com pouco ouviu o farfalhar de folhas e viu os primeiros invasores pularem dos galhos rentes ao aceiro para os pés de milho. Ouvia-se somente o barulho do mexer de galhos. Vinham em silêncio, matreiros, para não dar nas vistas do compadre. É agora.
Pegou a gaiola e saiu em ponta de pé, agachando-se por baixo das fileiras do milho mais novo, até chegar mais próximo do aceiro. Colocou a gaiola no chão e abriu a porta deixando o macaco sair. O bichinho saiu correndo meio de banda, equilibrando-se nas duas patinhas inferiores e em uma das mãos, pois na outra ia levando uma das bananas da penca que havia ficado dentro da gaiola. Foi direitinho misturar-se aos parceiros. Quando o primeiro do bando o enxergou, deu um grito agudo de alerta, estranhando aquela coisa listrada se mexendo e vindo de encontro à comunidade.
Era o líder do bando que dava a ordem de retirada mediante ao perigo que se aproximava. Num piscar de olhos todo o bando saltou dos pés de milho para os galhos mais próximos do aceiro e adentraram na mata, emitindo gritos e assovios de pavor. O macaquinho de macacão, com a intenção de juntar-se aos seus irmãos, empreendeu na mesma fuga, só que um pouco mais atrás, tornando-se assim, para o bando que fugia, um predador desconhecido em uma perseguição ferrenha.
Quanto mais o bichinho tentava se aproximar do bando, muito mais o bando se distanciava dele, apavorado, agora já na dispersão, na condição de cada qual por si e deus por todos, no salve-se quem puder.
O macaquinho, fazendo uso da sua natureza sociável, tentava voltar a habitar em sua sociedade. O bando, por outro lado, fazendo uso do instinto de preservação da própria vida, fugia desesperadamente daquele ser desconhecido e perseguidor, adentrando cada vez mais na mata.
? Onde será que vão esbarrar? ? Perguntava em voz alta o compadre careca para si mesmo, satisfeito com o resultado da sua inovação ? Aqueles ali não voltam mais; Aqui que voltam!
Voltou para a labuta. Tinha que terminar aquela capina ainda naquela semana. O resto daquele dia transcorreu sem nenhuma novidade. Os macacos sumiram. Não apareceram mais. Somente de tardezinha, quando a jaó piava no seu choro triste, se despedindo do dia, quando os guaribas emitiam o seu gorgolejo lá para os fundos da mata, confundindo-se com o suave reboar dos trovões ao longe, anunciando chuva para aquela noite, foi que toda essa sinfonia selvagem quebrou-se com um assovio tímido, que era a voz de macaco-prego.
O compadre procurava com os olhos, tentado ver as palhas de algum pé de milho se balançar com o peso de algum macaco. Nada. Somente o assovio agudo que ele não sabia de qual lado vinha. Por fim, depois de aguçar bem as vistas, divisou por entre os pés de arroz, próximo ao barraco, em cima de um tronco caído, um vultozinho listrado. Era o macaquinho que solitário, não conseguia sobreviver naquele meio. De lá de onde estava fazia mungangas, assoviando baixinho, gaguejando a sua voz aguda, de olhos fitos na penca de banana lá dentro da gaiola.
O compadre Careca levantou-se da rede e foi até a gaiola, tirou uma banana e colocou-a um pouco afastada do barraco, bem em cima de um tôco que havia no terreiro. Com aquele seu movimento brusco o macaquinho fugiu para mais longe, arredio.
O compadre deitou-se novamente e ficou na espera, pitando o seu cigarro, se balançando na rede, até que com pouco ouviu novamente os assoviozinhos. O macaquinho vinha se aproximando, cabreiro, andando meio de quatro, meio em pé, fazendo caretas, repuxando o coro da testa, arreganhando os dentes, até que pulou para cima do toco, pegou a banana, começou a descascá-la, escritinho gente e começou a comer com mastigadas ligeiras, olhando para um e outro lado. Em pouco tempo devorou aquela banana. Permaneceu sentado em cima do toco, encarando o compadre Careca, tentando se coçar, mas a roupa não deixava suas unhas terem contato com o corpo.
? Agüenta a coceira, compadre ? Gritou o compadre Careca para o macaquinho, o qual se assustou com aquela voz grave e sumiu-se por entre os pés de arroz. O compadre Careca colocou outra banana lá em cima do tôco e voltou para a rede.
Concentrado em enrolar um cigarro, quando terminou de acendê-lo, levantou os olhos em direção ao tôco, e lá estava o bichinho já quase terminando de comer a outra banana.
? Hêê, parceiro, ? Falou o compadre Careca ? queira Deus que tu vai ser meu companheiro de barraco, hem?
E assim aquele bichinho ficou. Banana não faltava. Quando acabava, o compadre ia buscar mais lá na bom jardim. No dia seguinte, o primeiro dia de convívio com o novo companheiro, o bando tentou voltar ao milharal, porém antes mesmo de chegar ao aceiro, o macaquinho o pressentiu e saiu em disparada ao seu encontro. Ao avistarem-no, empreenderam numa fuga ainda mais desesperada que da primeira vez. O macaquinho perseguiu o bando até muito dentro. Vendo que não o acompanhava, desistiu e resolveu voltar para junto do barraco.
A tentativa de invasão do milharal se repetiu ainda por uma semana, mas o seu desfecho era sempre o mesmo; Sempre o macaquinho tentava se juntar ao bando, e sempre o bando fugia dele, aos gritos e assovios mata adentro, até que não voltaram mais.
? Se mudaram de área ? Dizia o compadre Careca ? deve ter ido tudinho lá pras bandas do cuxiú. Que fiquem por lá mesmo.
Com o tempo o macaquinho se adaptou ao barraco, já andando por dentro de casa, atrepado nas travessas, nos punhos da rede, malinando aqui, mexendo ali e dormindo em sua própria redinha feita por dona Altina, sob encomenda do compadre Careca, armada quase rente à cumeeira do barraco. Mas vez por outra, quando algum pequeno, tímido e passageiro bando de macaco-prego resolvia passar por ali, o macaquinho corria em sua direção, pulando de galho em galho, para saudá-lo, todavia o que conseguia era afugentá-lo, pondo-os em retirada aos gritos estridentes.
No ano seguinte o compadre Careca fez uma boa colheita, ainda melhor do que se esperava. Pagou a dívida que tinha com o Lourenço, plantou capim no lugar da roça antiga, construiu um barracão de verdade, uma casa, para ser mais preciso; As paredes de taipa, o teto de cavacos tirados dos paus grossos que o fogo não deu conta de queimar na primeira roça. Com quartos, cozinha e sala, muita muda de frutas no terreiro. Comprou uma mula arriada com uma cangalha e dois jacás, mandou a dona Altina costurar um novo macacão para o Chico. É, foi com esse nome que o compadre batizou o bichinho companheiro seu.
Naquele ano ia brocar agora era um alqueire. Já tinha condições de pagar diárias para dois ou três lhe ajudarem na empreitada. E quando o milhão tivesse viçoso, soltando boneca, na hora em que algum bando de macaco-prego aparecesse, era só gritar: "Espanta Chico", que o Chico corria de encontro ao bando. O resto era como das outras vezes.
Hoje em dia o compadre Careca é dono da Fazenda bagaço grosso, situada na beira dos veados, com os seus duzentos alqueires de terra, cento e cinqüenta só de pastos, cinqüenta de mata virgem, preservada somente para as suas caçadas. Com moradia de tijolos e telhas, mais de quinhentas cabeças de gado, animais de montaria, residência na rua, automóvel para ir e vir de São Domingos, que hoje já é uma cidade com mais de vinte mil habitantes.
Todos os dias de finados, o compadre vai até ao fundo do quintal de sua casa lá na fazenda, e acende uma vela bem em cima do pequeno tumulo de uns cinqüenta centímetros de comprimento. É o túmulo do Chico, que morreu de velhice, quinze anos depois do primeiro dia de convívio com o compadre Careca.
Foi ele, o Chico, que com a sua persistência e força de vontade de voltar a conviver com os irmãos, nunca desistindo de correr atrás de algum bando que por ventura vinha a passar beirando a roça, lhe ensinou um ditado: QUEM DESISTE COM FACILIDADE, VIVE COM DIFICULDADE.
Autor: Ronaldo Almeida Nogueira
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