A Intervenção da Justiça na vida do adolescente



INTRODUÇÃO Este trabalho de investigação científica tem por objetivo compreender a intervenção da justiça na vida dos adolescentes em conflito com a lei. A primeira legislação que tratou da questão tinha por objeto atender os menores de 18 anos carecedores da proteção do Estado em virtude do estado de abandono. Ao Estado era atribuída a tutela sobre o órfão, o abandonado e aqueles cujos pais fossem tidos como ausentes, tornando disponíveis seus direitos de pátrio poder. Posteriormente, no Ano Internacional da Criança, em 1979, foi promulgado o novo Código, que adotou a doutrina da situação irregular, que, por sua vez, legitimou durante décadas uma intervenção, não raro violenta, do Estado, ao estado perigoso sem delito, verificável dentre os menores de idade. Isto porque esta legislação não distinguia o menor em situação de risco daquele em conflito com a lei, conforme fazia o código anterior. Em 1988, uma das grandes conquistas da Constituição foi criar as condições necessárias para a elaboração do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), rompendo com a doutrina da situação irregular para aderir à doutrina da proteção integral. Em seu artigo 112, dispôs sobre as medidas sócio-educativas aplicáveis aos adolescentes em conflito com a lei. Estas medidas são impostas "levando-se em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários". Contudo, não obstante o Estatuto ter conteúdo pedagógico, não se deve minimizar sua natureza punitiva. Neste aspecto, é possível considerá-las como uma espécie de "pena", haja vista que ora restringem direitos, ora privam a liberdade como ocorre com a medida de internação. Com efeito, a internação é a única medida que priva totalmente o adolescente de sua liberdade. Da mesma forma, tem caráter pedagógico, que, no entanto, mostra-se inviável diante das falhas do Estado ao pretender ressocializá-los. Do adolescente infrator, esculpe-se o adulto criminoso talhado diariamente por quem deveria lhes garantir os direitos básicos: o Estado. Pela lógica, haveria maiores possibilidades de se modificar comportamentos desviantes entre os menores do que em adultos. No entanto, o coordenador de Segurança e Inteligência do Ministério Público, o procurador Astério Pereira dos Santos, ressalta que o índice de 20% de recuperação de menores é inferior ao dos adultos presos no sistema penal, que numa pesquisa empírica feita na Seap, 37% dos apenados conseguiram se recuperar. Outro levantamento, realizado pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), desfaz o mito de que os adolescentes são os principais responsáveis pela criminalidade, haja vista que são responsáveis por 14,7% dos homicídios praticados. Mas, no imaginário coletivo, o adolescente é o principal agente da violência no país, sendo aquele que comete os crimes mais graves, vez que só chegam às páginas da mídia estes casos. No entanto, os delitos praticados por estes, em conflito com a lei, são majoritariamente crimes patrimoniais e não crimes contra a vida, como veremos. 1 CONTEXTO HISTÓRICO 1.1 CÓDIGO DE MENORES DE MELLO MATTOS As maneiras de tratamento dispensadas à criança e ao adolescente dependem em grande medida da época analisada. A primeira legislação que tratou da questão foi elaborada por higienistas e juristas que a denominaram de Código de Menores de Mello Mattos (Decreto n° 17.943-A, de 12 de outubro de 1927), uma homenagem prestada ao primeiro Juiz titular do Juizado de Menores. Tinha por objeto legislar sobre as crianças e adolescentes de 0 a 18 anos , carecedoras da proteção do Estado em virtude do estado de abandono ou delinqüência. Neste sentido, dispunha o art. 26: I, que não tenham habitação certa, nem meios de subsistencia, por serem seus paes fallecidos, desapparecidos ou desconhecidos ou por não terem tutor ou pessoa sob cuja guarda vivam; II, que se encontrem evetualmente sem habitação certa, nem meios de subsistencia, devido a indigência, enfermidade, ausencia ou prisão dos paes, tutor ou pessoa de sua guarda; III, que tenham pae, mãe ou tutor ou encarregado de sua guarda reconhecidamente impossibilitado ou incapaz de cumprir os seus deveres para com o filho ou pupillo ou protegido; IV, que vivam em companhia de pae, mãe, tutor pessoa que se entregue à pratica de actos contrários à moral e aos bons costumes, V, que se encontem em estado habitual de vadiagem, mendicidade ou libertinagem; VI, que freqüentem logares de jogo ou de moralidade duvidosa, ou andem na companhia de gente viciosa ou de má vida. VII, que, devido à crueldade, abuso de autoridade, negligencia ou exploração dos paes, tutor ou encarregado de sua guarda, sejam: a. victimas de mãos tratos physicos habituaes ou castigos imoderados; b. privados habitualmente dos alimentos ou dos cuidados indispensáveis à saúde; c. empregados em ocupações prohibidas ou manifestadamente contrarias à moral e aos bons costumes, ou que lhes ponham em risco a vida ou a saúde; d. excitados habitualmente para gatunice, mendicidade ou libertinagem; VIII, que tenham pae, mãe ou tutor ou pessoa encarregada de sua guarda, condenado por sentença irrecorrivel: a. a mais de dous annos de prisão por qualquer crime; b. a qualquer pena como co-autor, cúmplice, encobridor ou receptador de crime commettido por filho, pupillo ou menor sob sua guarda, ou por crime contra estes. Já os artigos seguintes classificavam os menores abandonados em três grupos: vadios, mendigos e libertinos. Art. 28. São vadios os menores que: a. vivem em casa dos Paes ou tutor ou guarda, porém, se mostram refractarios a receber instrucções ou entre a trabalho serio e util, habitualmente pelas ruas e logradouros públicos; b. tendo deixado sem causa legitima o domicilio do pae, mãe ou tutor ou guarda ou os logares onde se achavam collocados por aquelle a cuja autoridade estavam submettidos ou confiados, ou não tendo domicilio nem alguém por si, são encontrados habitualmente a vagar pelas ruas ou logradouros publicos, se que tenham meio de vida regular, ou tirando seus recursos de occupação immoral ou prohibida. Art. 29. São mendigos os menores que habitualmente pedem esmola para si ou para outrem, ainda que este seja seu pae ou mãe, ou pedem donativo sob pretexto de venda ou offerecimento de objectos. Art. 30. São libertinos os menores que habitualmente: a. na via publica perseguem ou convidam companheiros ou transeuntes para a pratica de actos obsenos; b. se entregam à prostituição em seu próprio domicilio, ou vivem em casa de prostituta, ou freqüentam casa de tolerância, para praticar actos obsenos; c. forem encontrados em qualquer casa, ou logar não destinado à prostituição, praticando actos obsenos com outrem; d. vivem da prostituição de outem. Para Alvarenga Netto , o estado de abandono se evidenciava por duas formas distintas: a primeira se dava por "circumstancias fortuitas, do destino, quando lhe falta a mão carinhosa dos paes, a guial-os na vida" nos casos dos incisos I, II e VIII do art. 26. Já a segunda ocorria quando "tendo paes ou pessoas encarregadas de sua guarda, falta-lhes idoneidade moral para dirigir a sua educação, deixando-o ao léo da vida e a mercê das tentações do vicio e do crime". Explica o mesmo autor que, no primeiro caso, dá-se o abandono moral e material involuntário, o menor é vítima da fatalidade. Tem deante de si a escolha do caminho do bem e do mal. Este, com o seu cortejo de seducções, com seus falsos encantos, é muito mais tentador e fácil de ser trilhado pela crença que não tem a faculdade espiritual do joeirar o bom máo. Do abandono ao crime, a distancia é pequena. Na segunda hipótese, dá-se o abandono moral ou material, ou ambos conjuntamente, mas com a responsabilidade dos pais ou de quem deva zelar pela guarda do menor. Assim, uma vez constado o estado de abandono, seja material ou moral, caberia ao Juiz de menores, no prazo de 30 dias, a contar da entrada em juízo, sentenciá-los como abandonados, dando-lhe o conveniente destino: a internação, ficando, desse modo, o menor às expensas do Estado até os 18 anos. Cumpre observar que, no entanto, em caso que ficasse provado e criança fosse reclamada pelos responsáveis, esta poderia ser restituída: I, que se trata realmente do pai, mãe (legítimo, natural ou adotivo), tutor ou encarregado de sua guarda; II, que o abandono do menor foi motivado por circunstância independente da vontade do reclamante; III, que o reclamante não se acha incurso em nenhum dos casos em que a lei comina a suspensão ou perda do pátrio poder ou a destituição da tutela, IV, que a educação do menor não seja prejudicada como a volta ao poder do reclamante. Somente o artigo 68 do Código disciplinou a questão da inimputabilidade diferenciando os menores de 14 anos daqueles com idades entre 14 completos e 18 incompletos, evidenciando a competência do juiz para determinar todos os procedimentos em relação a eles e a seus pais. O §2º deste mesmo artigo autorizava ao juiz determinar a colocação em asilo, casa de educação, escola de preservação ou a confiança a pessoa idônea, em caso do menor abandonado, pervertido ou em perigo de ser. Ainda referindo aos menores delinqüentes, Vera Batista analisando os arquivos do Departamento de Ordem Política e Social, no estado de do Rio de Janeiro pôde constatar um verdadeiro olhar seletivo da justiça juvenil. "O sistema permanece substancialmente o mesmo: criminalização das crianças e adolescentes pobres pela única razão de serem pobres e de se encontrarem em "situação irregular". Dentre as perguntas formuladas, pelo Serviço de Fiscalização e Repressão da Polícia Civil do Distrito Federal, nos anos trinta, Vera destacou: tem vendido jornais, bilhetes de loteria, doces, engraxado sapatos oudesempenhado alguma ocupação na via pública? Conclui a autora que o desempenho de qualquer dessas funções indica o status que faz destes jovens a clientela natural do sistema de justiça juvenil para menores. Estes são perigosos, sobretudo porque, assim como a dos mendigos e dos vadios, a atividade que exercem denota insubordinação à disciplina que o sistema deles exige. É a estes jovens, e não aos jovens da classe média e das elites, que se dirigem as leis, os tribunais e as instituições menoris; é a estes jovens que se aplica a expressão "menor". Pode se então, concordar com Vânia Silva quando diz: este Código destinava-se somente às crianças e adolescente pobres, ou seja, a pobreza caracterizava o abandono moral. Os filhos das classes populares eram diferenciados e rotulados como menores com conduta anti-social e menores carentes e, por esta razão, deveriam ser tratados separadamente. A pobreza era o bastante para caracterizar o menor como abandonado. Em suma, o Código de menores submetia qualquer criança, por sua simples condição de pobreza, à ação da Justiça e da Assistência, construindo-se a categoria de menor, que retrava a infância e adolescência potencialmente perigosa. 1.2 LEI 6.697/79, DE 10 DE OUTUBRO No Ano Internacional da Criança, em 1979, foi promulgado o novo Código, lei 6.697/79, de 10 de outubro, que dispôs sobre assistência, proteção e vigilância aos menores de até dezoito anos de idade, que se encontrassem em "situação irregular". Segundo art. 2°, considerava-se em situação irregular o menor: I - privado de condições essenciais à sua subsistência, saúde e instrução obrigatória, ainda que eventualmente, em razão de: a) falta, ação ou omissão dos pais ou responsável; b) manifesta impossibilidade dos pais ou responsável para provê-las; II - vítima de maus tratos ou castigos imoderados impostos pelos pais ou responsável; III - em perigo moral, devido a: a) encontrar-se, de modo habitual, em ambiente contrário aos bons costumes; b) exploração em atividade contrária aos bons costumes; IV - privado de representação ou assistência legal, pela falta eventual dos pais ou responsável; V - Com desvio de conduta, em virtude de grave inadaptação familiar ou comunitária; VI - autor de infração penal. Este artigo não fazia distinção entre o menor em situação de risco daquele em conflito com a lei, conforme fez o Código Mello Mattos, ao dispor as situações que caracterizam o abandono no artigo 28, e ao cuidarem dos menores "delinqüentes" no artigo 68. Necessário, neste passo, esclarecer o que significa a "Doutrina da Situação Irregular", segundo Cavallieri citado por Bianca Schubert : "corresponde a um estado de patologia (doença) social, entendida de forma ampla". Bianca, por sua vez, esclarece que na patologia social, se encontram os jovens em situação de risco. Por isso, Cavalllieri faz uma analogia com a medicina, comparando o médico com o juiz que prescreve o tratamento, através do Código. A conduta desviante de certos padrões estabelecidos de comportamento tornava-se a justificativa para a adoção de medidas repressivas, com a prisão em internatos nos quais o adolescente era ainda mais descaracterizado enquanto cidadão. A imposição de normas através de uma rígida disciplina, em que incluíam-se castigos físicos e morais, baseava-se no argumento de que aquele jovem possuía carências que o levavam a uma situação de anomia que deveria ser mudada por um processo "educativo". Contudo, aquela visão acerca do adolescente infrator enfatizava aspectos negativos de sua personalidade, e que muitas vezes eram considerados irreversíveis. Ele era percebido de forma descontextualizada; sua vida familiar, escolar e profissional não era vista em sua realidade, mas sim de maneira ideal. E o ideal, para um Estado centralizador e autoritário como o Brasil dos anos 70, era conservador . Conforme ensina a advogada Bianca Schubert à aplicação dessa doutrina se dá pelo juiz de menores: é quem trata dos problemas assistenciais e jurídicos, sejam de natureza civil ou penal, via sistema judiciário do Estado. O juiz pode tomar decisões sobre a situação (destino) de determinada criança ou adolescente, sem sequer escutá-lo ou até mesmo desconsiderar a vontade de seus pais. O jovem (criança ou adolescente) que cometer algum tipo de delito também poderá não ser ouvido ou não lhe ser facultado o direito a defesa, podendo ser privado de sua liberdade ainda que declarado inocente. No mesmo sentido, Karyna Batista Sposato doutrina que o juiz se convertia em um autêntico médico penal que exercia a cura das almas, e, para tanto, não estava condicionado às exigências legais do contraditório para desempenhar seu papel discricionário. É de se verificar que essa doutrina, segundo a advogada Bianca "legitimava a ação judicial indiscriminada sobre as crianças e adolescentes em situação de dificuldade. Na hipótese de possuírem as necessidades básicas satisfeitas, as normas oriundas da doutrina da situação irregular, não se aplicavam". De fato, ensina de Munir Cury : Embora apresentando-se com a roupagem de tutelar, instrumento de proteção e assistência, o Código de Menores, na realidade, em nada contribuía para alterar na essência a condição de indignidade vivida pelas crianças e adolescentes brasileiros, vez que sequer os reconhecia como sujeitos dos mais elementares direitos. A Justiça dos Menores, por seu turno, colaborava para fomentar a idéia falsa (e extremamente perversa) de serem os carimbados com o signo a situação irregular responsáveis pela sua própria marginalidade. Partindo-se do do pressuposto irreal de que a todos são oferecidas iguais oportunidades de ascensão social, acabava permitindo-se difundir-se ideologicamente o raciocínio de ter havido opção pela vida marginal e delinquencial. No que toca a criminalidade, procurava-se restringir ao campo individual (e psicológico) os questionamentos acerca dos motivos da não integração social de milhões de crianças e adolescentes (ou de sua não reintegração mesmo após a atuação da Justiça de Menores) e, por essa operação, imunizar de criticas a estrutura social injusta imperante no Pais. 1.3 ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE Vânia Silva aponta às décadas de 80 e 90 como o período marcado pela ampla participação da sociedade civil por um Estado Democrático, onde a criança estigmatizada pela pobreza toma grande destaque: Diferentes grupos se organizam em prol da luta pela defesa dos Direitos Humanos, inspirados na normativa internacional a esse respeito. Surgem as Organizações Não-governamentais que apresentam alternativas de trabalhos com as diversas categorias sociais excluídas, sendo portanto, formadoras de opinião pública e geradoras de pressão sobre o governo incompetente em solucionar as mazelas sociais. Neste cenário, é promulgada a Constituição de 1988, que, no artigo 227, determina e assegura os direitos fundamentais de todas as crianças e adolescentes: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Para dar efetividade a este artigo, se fez necessária a criação de uma lei específica, surgindo daí o Estatuto da Criança e Adolescente, aprovado em 13 de julho de 1990. Afastou-se o ECA da doutrina de situação irregular, acolhida pelo Código de Menores de 1979. Em seu artigo 1°, o Estatuto acolheu a doutrina da proteção integral que consiste em garantir legalmente todas as condições para que cada criança e adolescente brasileiro possam ter assegurado seu pleno desenvolvimento físico, moral e espiritual. Outro aspecto relevante previsto no Estatuto é o novo conceito dado aos inimputáveis que passam a ser nominados de criança e adolescente, entendendo-se por criança a pessoa até doze anos de idade incompletos, e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade. A distinção entre criança e adolescente é salutar, eis que em se tratando de criança em conflito com a lei não é aplicável às medidas sócio-educativas. Ao contrário, devem-se ser encaminhadas ao Conselho Tutelar para receber as medidas protetivas, elencadas no artigo 101 do Estatuto. Já o art. 104 do Estatuto, em total conformidade com mandamento constitucional e a legislação penal, respectivamente os artigo 228 e 27, fixa a imputabilidade penal aos 18 anos completos. Ainda, tratando-se da inimputabilidade, muito se discute sobre a possibilidade de se reduzir a maioridade penal por meio de emenda constitucional, nos termos do art. 60 da Carta Magna, para alteração do art. 228 . Para Alexandre de Moraes (2006: p, 232) é impossível essa hipótese: Por tratar-se a inimputabilidade penal, prevista no art. 288 da Constituição Federal, de verdadeira garantia individual da criança e do adolescente em não serem submetidos à persecução penal em Juízo, tampouco poderem ser responsabilizados criminalmente, com conseqüente aplicação de sanção penal. Lembramo-nos, pois, de que essa verdadeira cláusula de irresponsabilidade penal do menor de 18 anos enquanto garantia positiva de liberdade, igualmente transforma-se em garantia negativa em relação ao Estado, impedindo a persecução penal em juízo. Assim, o art. 288 da Constituição Federal encerraria hipótese de garantia individual prevista fora do rol exemplificativo do art. 5°, cuja possibilidade já foi declarada pelo STF em relação ao art. 150, III, b (Adin - n°939-7/DF ). No mesmo sentido, doutrina René Ariel Dotti : a inimputabilidade assim declarada constitui uma das garantias fundamentais da pessoa humana, embora topograficamente não esteja incluída no respectivo Título (II) da Constituição que regula a matéria. Trata-se de um dos direitos individuais inerentes à relação do art. 5°, caracterizando, assim, uma cláusula pétrea. Mas, em sentido diverso do constitucionalista, Guilherme Nucci defende a possibilidade de emenda constitucional para a redução da maioridade penal. Apesar de se observar uma tendência mundial na redução da maioridade penal, pois não é crível que menores com 16 ou 17 anos, por exemplo, não tenham condições de compreender o caráter ilícito do que praticam, tendo em vista que o desenvolvimento mental acompanha, como é natural, a evolução dos tempos, tornando a pessoa mais precocemente preparada para a compreensão integral dos fatos da vida, o Brasil ainda mantém a fronteira fixada nos 18 anos. Pela primeira vez, inseriu-se na Constituição Federal matéria nitidamente pertinente à legislação ordinária, como se vê no art. 228. No mesmo prisma encontra-se o disposto neste cartigo do Código Penal. A única via para contornar essa situação, permitindo que a maioridade penal seja reduzida, seria por meio de emenda constitucional, algo perfeitamente possível, tendo em vista que, por clara opção do constituinte, a responsabilidade penal foi inserida no capítulo da família, da criança, do adolescente e do idoso, e não no contexto dos direitos e garantias individuais (Capítulo I, art. 5.°, CF). Efetuada estes breves posicionamentos doutrinários acerca da possibilidade da redução da maioridade penal, Vânia Silva discorre sobre o Estatuto ensina: Através desta Lei (8.069/90), fica assegurada a proteção integral a todas as crianças adolescentes, sem discriminação de qualquer tipo. Extingue-se o termo menor e, em seu lugar, adota-se a referência criança e adolescente ? integrante de qualquer classe social ? em virtude de ser um instrumento voltado para o conjunto da população infanto-juvenil do País. Fica garantida proteção especial àquele segmento considerado pessoal e socialmente vulnerável. Dessa forma, as crianças e adolescentes são reconhecidos como sujeitos sensíveis e detentoras de direitos, por estarem em condições peculiar de pessoa em desenvolvimento. Garantiu-se ainda a esse segmento o direito à ampla defesa, com todos os recursos inerentes ao processo legal, limitando-se assim, os poderes do Juiz. Desde então, a apreensão das crianças e adolescentes dá-se apenas em duas situações: flagrante de ato infracional e ordem expressa fundamentada pelo juiz. Para sintetizar está breve abordagem acerca das legislações voltadas para a infância e adolescente, Rosemary Ferreira, mestranda em Serviço Social da Puc-SP, estabelece um quadro, permitindo uma visão comparativa que será anexado ao final deste trabalho. Para Vânia Silva , o ECA representa "um avanço no atendimento dado ao adolescente em conflito com a lei, pois institui medidas sócio-educativas que vão da advertência até a internação, que serão objeto do próximo capítulo. 2. DOS DIREITOS INDIVIDUAIS E DAS MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS Antes de discorrer, de fato, das medidas sócio-educativas, em especial à internação, julgo necessário fazer algumas considerações sobre os direitos e as garantias dos adolescentes, bem como definir o que venha ser ato infracional. 2.1 DOS DIREITOS INDIVIDUAIS E DAS GARANTIAS Os Títulos II e III da parte especial do Estatuto da Criança e do Adolescente cuidam dos direitos e das garantias processuais assegurados aos adolescentes. Em primeiro lugar, pode-se observar que o art. 106 é um corolário do art. 5°, do inciso LXI da Carta Maior, pois dispõe que "nenhum adolescente será privado de sua liberdade senão em flagrante de ato infracional ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente". O parágrafo único deste artigo garante ao adolescente o direito à identificação dos responsáveis por sua apreensão, bem como ser informado acerca dos seus direitos. Em seguida, o artigo 107 trata da apreensão do adolescente. Note-se que o legislador deu conotação diferente ao adolescente, eis que não diz prisão, mas apreensão. Desta forma, estabelece o artigo: "A apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinenti comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele indicada". Assim, além da comunicação imediata à autoridade judiciária necessário, seja informado o local onde o adolescente se encontre a fim de evitar-se a incomunicabilidade do mesmo. Outra norma relevante é quanto à possibilidade de internação provisória, cuja natureza é cautelar. Para garantir a excepcionalidade e brevidade da internação provisória, princípios preconizados pelo ECA, o artigo 108 determina que sua duração é de, no máximo, 45 dias, exigindo-se para sua decretação que a decisão seja justificada e fundamentada em indícios suficientes de autoria e materialidade, devendo, ainda, ser demonstrada a sua imperiosa necessidade. A internação provisória, cuja natureza é cautelar, segue os mesmos princípios da medida sócio educativa de internação (brevidade, excepcionalidade e respeito à condição de pessoa em desenvolvimento). Para garantir a excepcionalidade e brevidade da internação provisória, o ECA determina que sua duração seja de, no máximo, 45 dias, exigindo-se para sua decretação que a decisão seja justificada e fundamentada em indícios suficientes de autoria e materialidade, devendo ser demonstrada a sua imperiosa necessidade (artigo 108, "caput" e parágrafo único do ECA). Impõe, ademais, esta Lei a imediata liberação do adolescente em conflito com a lei, especialmente quando houver o comparecimento de qualquer dos pais ou responsável. Existindo o comparecimento, a excepcionalidade será ainda maior, já que só não ocorrerá a imediata liberação (sob termo de compromisso) se a gravidade do ato infracional ou sua repercussão social justificarem a permanência do adolescente na internação provisória. O artigo 109 cuida da identificação criminal. Diz a norma que "O adolescente civilmente identificado não será submetido à identificação compulsória pelos órgãos policiais, de proteção e judiciais, salvo para efeito de confrontação, havendo dúvida fundada". A garantia do devido processo também encontra-se no estatuto, no artigo 110, corroborando com a norma constitucional, que estabelece que nenhum adolescente será privado de sua liberdade sem o devido processo legal. Este princípio tem como corolários a ampla defesa e o contraditório que deverão ser assegurados a todos os litigantes, inclusive as crianças e adolescentes. Quanto à aplicação, execução e atendimento das medidas sócio-educativas, é imprescindível a observância do princípio da Legalidade previsto no artigo 5º, inciso II, da Constituição federal: "ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei". Logo, os agentes públicos não podem suprimir direitos que não tenham sido objeto de restrição imposta por lei ou decisão proferida por juiz competente (decisão esta que também deve respeitar as disposições legais), obviamente. O próprio ECA dispõe de normas que responsabilizam o agente e a administração (entre eles os artigos 230 a 236 e 246 do ECA), caso incidam em posturas autoritárias e contrárias à lei. A existência expressa destas garantias contrapõe-se ao processo autoritário predominante no Código de Menores, onde o juiz podia decidir e construir soluções jurídicas sem, sequer, escutar o adolescente ou até mesmo desconsiderar a vontade de seus pais. Desse modo, o adolescente que cometesse algum tipo de delito não lhe era facultado o direito à defesa, podendo ser privado de sua liberdade ainda que declarado inocente. Em síntese, estes são alguns dos direitos e garantias individuais os quais nada mais são do que uma repetição de garantias individuais prevista na Carta Magna. O legislador, como salientado, teve o zelo de reproduzi-las no Estatuto, a fim de que não se pudesse cogitar a possibilidade, por se tratar de adolescentes, tais normas não fossem asseguradas. 2.2 ATO INFRACIONAL O ato infracional é definido pelo artigo 103 do Estatuto da Criança e Adolescente como sendo "a conduta descrita como crime ou contravenção penal". Vê-se que a criança e o adolescente não cometem crime, mas ato infracional. Isso porque, sob a visão analítica, crime é um fato típico, ilícito e culpável. Contudo, o ato infracional carece de um dos requisitos do crime na acepção legal, qual seja, a culpabilidade. Daí por que a menoridade penal é considerada uma causa de exclusão da culpabilidade. A idéia de que o adolescente resulta impune ou se faz irresponsável é errônea, vez que são ignoradas as medidas sócio-educativas que levam em conta a sua condição peculiar de desenvolvimento e a necessidade de reeducação e ressocialização. Assim, torna-se necessário diferenciar impunidade de inimputabilidade, pois, não raras vezes, tem sido confundida em nossa sociedade. Entende-se por inimputabilidade a impossibilidade de se imputar uma pena prevista no Código Penal Brasileiro a uma pessoa menor de 18 anos, em função de uma legislação específica para esta parcelada da população. Já a impunidade é a ausência de punição. Em verdade não há impunidade, vez que o sistema sócio-educativo proposto pelo Estatuto constrói todo um universo de recursos para dar conta da questão relativa à chamada delinqüência juvenil. 2.3 MEDIDAS SÓCIO-EDUCATIVAS Art. 112. Verificada a prática de ato infracional, a autoridade competente poderá aplicar ao adolescente as seguintes medidas: I - advertência; II - obrigação de reparar o dano; III - prestação de serviços à comunidade; IV - liberdade assistida; V - inserção em regime de semi-liberdade; VI - internação em estabelecimento educacional; VII - qualquer uma das previstas no art. 101, I a VI. § 1º A medida aplicada ao adolescente levará em conta a sua capacidade de cumpri-la, as circunstâncias e a gravidade da infração. § 2º Em hipótese alguma e sob pretexto algum, será admitida a prestação de trabalho forçado. § 3º Os adolescentes portadores de doença ou deficiência mental receberão tratamento individual e especializado, em local adequado às suas condições. As medidas sócio-educativas são destinadas aos adolescentes em conflito com a lei. Estas medidas devem serão aplicadas "levando em conta as necessidades pedagógicas, preferindo-se aquelas que visem ao fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários". (artigos 100 a 113). Não obstante o Estatuto ter este conteúdo pedagógico, não se deve minimizar sua natureza punitiva. Neste aspecto, é possível considerá-las como uma espécie de "pena", haja vista que, ora restringem direitos ora privam a liberdade. Corroborando com este entendimento leciona Karyna Batista Sposato : A medida sócio-educativa tem natureza penal, uma vez que representa o exercício do poder coercitivo do Estado e implica necessariamente uma limitação ou restrição de direitos ou de liberdade. De uma perspectiva estrutural qualificativa não difere das penas. Isto porque cumpre o mesmo papel de controle social formalizado que a pena, possuindo mesmas finalidades e conteúdo. Podemos identificar as doutrinas correcionais com o propósito disciplinar, articulado também com as finalidades de prevenção especial, a positiva ? reeducação do réu, e a negativa de sua eliminação ou neutralização. Ambas não são excludentes e sim ocorrem acumulativamente na definição de fim da pena que será diversificada conforme a personalidade, corrigível ou incorrigível do sujeito. Desse modo, sustenta a autora que o "reconhecimento do caráter penal e sancionatório da medida sócio-educativa não retira a tarefa e o desafio pedagógico que se colocam para a Justiça da Infância e Juventude e para os programas de atendimento sócio-educativo." A imposição das medidas sócio-educativas, pelo juiz, deve pautar-se em provas suficientes da autoria e materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos do art. 127. A única medida que priva totalmente o adolescente de sua liberdade é a internação; as demais primam pela "ressocialização" do jovem infrator em meio aberto, sem prejuízo para o controle externo por parte do Judiciário. A intenção deste trabalho é abordar a medida de internação em estabelecimento educacional; porém, não se pode deixar de esclarecer, ainda que de forma sucinta, o conceito de cada uma delas. 2.3.1 ADVERTÊNCIA A advertência - conforme art. 115 do Estatuto - consistirá em admoestação verbal, que será reduzida a termo e assinada. A advertência é uma repreensão feita ao adolescente em conflito com a lei e a seus responsáveis com o intuito de alertá-los sobre os riscos do envolvimento na prática do ato infracional, visando evitar que volte a cometer outros ilícitos. É cabível em caso de cometimento de infrações de pequena gravidade. Nesta modalidade, não há necessidade do contraditório, mas tão-somente a presença dos pais e responsáveis. 2.3.2 MEDIDA DE OBRIGAÇÃO DE REPARAR O DANO No que se refere ao prejuízo causado por ato ilícito devido a menor, se este tiver menos de 16 anos, responderão pela reparação, exclusivamente, os pais e, se for o caso, o tutor ou curador. Se o menor tiver entre 16 e 21 anos, a lei o equipara ao maior no que concerne às obrigações decorrentes de atos ilícitos em que for culpado. Nesse caso, responderá solidariamente com seus pais, tutor ou curador pela reparação devida . Esta medida visa à possibilidade de impor ao adolescente em conflito com a lei com reflexos patrimoniais, a obrigação de reparar o dano causado à vítima, seja pela restituição da coisa subtraída, seja pelo respectivo ressarcimento, seja através de outra medida compensatória. 2.3.3 DA PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS À COMUNIDADE Para Munir Cury , a medida de prestação de serviços comunitários, é de grande valia, face ao seu sentido altamente educativo, particularmente visando a obrigar o adolescente a tomar consciência dos valores que supõem a solidariedade social praticada em seus níveis mais expressivos. Esta medida possibilita uma inserção comunitária positiva, de modo a avivar o sentido de responsabilidade do adolescente, propiciando uma visão ampla do exercício da cidadania, através da valorização do trabalho e do convívio social. 2.3.4 DA LIBERDADE ASSISTIDA Trata-se da medida mais adequada para o fim de acompanhar, auxiliar e orientar o adolescente em conflito com a lei. A intenção principal é criar condições favoráveis ao reforço dos vínculos do adolescente com a família, a escola, a comunidade e o mundo do trabalho. "A liberdade assistida será fixada pelo prazo mínimo de seis meses, podendo a qualquer tempo ser prorrogada, revogada ou substituída por outra medida, ouvido o orientador, o Ministério Público e o defensor." (art.118 e 119 ECA). 2.3.5 DO REGIME DE SEMI-LIBERDADE Medida sócio-educativa em que o adolescente se divide entre períodos de reclusão e períodos de exercício de atividades externas. Trata-se de uma privação apenas parcial da liberdade nos termos do artigo 120 do ECA. 2.3.6 DA INTERNAÇÃO A internação é uma medida extrema cuja aplicação se orienta pela excepcionalidade e brevidade, princípios preconizados pelo artigo 227, inc. V, da CR/88, e repetido no Estatuto. Dispõe o SINASE ser esses princípios complementares e estarem fundamentados na premissa de que o processo sócio-educativo não se pode desenvolver em situação de isolamento do convívio social. Nesse sentido, toda medida sócio educativa, principalmente a privação de liberdade, deve ser aplicada somente quando for imprescindível, nos exatos limites da lei e pelo menor tempo possível, pois, por melhor que sejam as condições da medida sócio educativa, ela implica em limitação de direitos e sua pertinência e duração não deve ir além da responsabilização decorrente da decisão judicial que a impôs. O atendimento inicial integrado ao adolescente em conflito com a lei, mediante a integração operacional entre o Judiciário, Ministério Público, Defensoria Pública, Segurança Pública e Assistência Social, preferencialmente em um mesmo local (artigo 88, inciso V, do ECA), também visa garantir os princípios de excepcionalidade e brevidade da internação provisória, de modo a impedir que os adolescentes permaneçam internados quando a lei não o exigir ou permaneçam privados de liberdade por período superior ao estritamente necessário e ao prazo limite determinado pelo ECA. Com efeito, verificada a prática de um ato infracional, o juiz poderá aplicar ao adolescente as medidas sócio-educativas dispostas no artigo 112 do ECA. No entanto, a internação somente terá aplicabilidade quando se tratar de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência à pessoa, ou quando houver reiteração no cometimento de outras infrações ou por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta. A internação, assim como as demais medidas sócio-educativas, contém um conteúdo pedagógico consistente na ressocialização do jovem em conflito com a lei. Neste contexto, torna-se necessário refletir sobre seu propósito: a ressocialização mediante a segregação. É viável colocar um adolescente em ambiente inteiramente diferente daquele que vivia para, depois, remetê-lo de volta à origem, que perdura inalterada? Não é antes um procedimento desadaptador? Com efeito, a partir da segregação e da inexistência de projeto de vida, os adolescentes internados acabam ainda mais distantes da possibilidade de um desenvolvimento sádio. Privados de liberdade, convivendo em ambientes, de regra, promíscuos e aprendendo as normas próprias dos grupos marginais, a probabilidade é de que acabem absorvendo a chamada identidade do infrator, passando a se reconhecerem, sim, como de má índole, natureza perversa, alta periculosidade, enfim, como pessoas cuja história de vida, passada e futura, resta indestrutivelmente ligada à delinqüência (os irrecuperáveis, como dizem eles) . Alessandro Baratta , grande criminólogo italiano já falecido, considerava o cárcere contrário a todo moderno ideal educativo: porque este promove a individualidade, o auto-respeito do indivíduo, alimentado pelo respeito que o educador tem dele. As cerimônias de degração no início da detenção, com as quais o encarcerado é despojado até dos símbolos exteriores da própria autonomia (vestuários e objetos pessoais), são o oposto de tudo isso. A educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante. De fato, a cada sucessiva recomendação do menor às instâncias oficiais de assistência e de controle social, a cada sucessiva ação desta sobre o menor; corresponde um aumento, em lugar de uma diminuição, das chances de ser selecionado para uma carreira criminosa. O pai de um adolescente internado no sistema DEGASE relatou ao jornal O Globo, no dia 02 de dezembro de 2007, p. 22 ser a internação "a aprovação no vestibular do crime": - Ele começou pichando. Foi detido por duas vezes por porte de arma e assalto. A partir do momento em que os menores são detidos, entram para uma escola onde não existe qualquer processo de recuperação e ressocialização. Com um mês no Padre Severino, os outros menores já estavam chamando meu filho de "patrão". Pedi à psicóloga para tirá-lo correndo de lá. Corrobora com o entendimento acima, o presidente da OAB/RJ Wadih Damous quando trata da questão dos internatos: "é preciso haver urgentemente a humanização dos internatos, que são, hoje, verdadeiras escolas de pós-graduação em crimes. Enquanto se achar que o problema da criminalidade se resolve tão-somente com a polícia, o quadro tende se agravar". Retornando à degradação ocorrida no início da internação, em verdade, há uma verdadeira desfiguração do adolescente, inicialmente pela perda do nome e com a atribuição de um número de prontuário que passará a ser sua nova identidade. A insatisfação com esta desfiguração é perceptível nos relados a seguir: Ao chegar em 2000 ao Instituto Padre Severino, Otávio (nome fictício) perdeu logo sua identidade. Detido por tráfico de drogas aos 17 anos virou mais um número muna das maiores unidades para menores infratores do Rio. Logo nos primeiros dias, ninguém o chamava mais pelo nome. A situação se repetiu cinco anos depois: o jovem foi assassinado e passou a ser identificado por um outro número, pintado na cruz fincada numa cova rasa num cemitério do subúrbio. Já se passaram sete anos, mas até hoje, quando vê o número de uma determinada linha de ônibus que passa pelo centro do Rio, Jorge , hoje, com 23 anos, comenta que fica arrepiado. ? Era o meu número. Durante dois anos meu nome no Santo Expedito era o número deste ônibus. Histórias reveladas nesta série "Dimenor" contam o drama dos menores nas mãos do Estado, expondo as falhas do sistema ao pretender ressocializá-los por meio da internação. O problema é que, da maneira como esta tem sido aplicada, não a torna eficaz. Os casos foram levantados nos processos da Vara da Infância e Juventude do Rio de 2000 ou relatados em entrevistas com jovens infratores. Anderson (nome fictício), atualmente com 22 anos lembra-se bem das três vezes em que passou pelo Padre Severino, entre 2000 e 2002, por tráfico de drogas e roubo: - Sabe como os agentes batiam na gente? Botavam todos em volta de uma amendoeira e sentavam a madeira. O seu Avalanche, um grandão, pedia para escolher se era para bater na cara ou no peito. Jorge (nome fictício), conta que ao entrar na unidade de triagem do Degase, o tratamento para os suspeitos de homicídio já era diferenciado: - fiquei numa cela e comecei a passar mal. Dali a pouco, os agentes iniciaram a chamada: "Só queremos os matadores." Quem foi preso no 121, dá um passo à direita. Ao nos destarmos, mandaram os outros entrarem em outra cela. Foi a primeira de muitas "coças" que tomei ? lembra o jovem, contando que passou dez horas sendo torturado. Por tudo que passou, Jorge diz que o tratamento recebido nos internatos não recupera, só causa mais revolta: - Eles olham para sua cara e dizem: "você gosta de matar, então tem que gostar de morrer". Ai coloca saco na sua cabeça, do jeito que a polícia faz no morro. Enfiam a cara na água, batem com o cabo de vassoura. A covardia é tão grande que eles fazem questão de tirar seu direito de defesa e algemam você com as mãos para trás. Eles batem na sua cara. Falam que bandido que é bandido não vai parar na cadeia. E que quem toma tapa na cara é otário, vacilão. Vê-se que a Entidade destinada trabalhar a mudança de atitudes socialmente consideradas violentas e inadequadas trata os adolescentes de forma também violenta e violadora dos Direitos Humanos. Do adolescente infrator, esculpe-se o adulto criminoso, talhado diariamente por quem deveria lhes garantir os direitos básicos: o Estado. O art. 125 atribui exclusivamente ao Estado o dever de zelar pela integridade física e mental do interno; isto deve ser entendido como estreitamente vinculado ao caráter sócio-educativo da medida (tal como dispõe o art. 112 do Eca). A partir da medida de privação de liberdade, em nenhuma hipótese poderão resultar, de forma direta ou indireta, outros tipos de privação (de dignidade, identidade etc.), ou seja, não só previstas no Estatuto, mas, inclusive, expressamente proibidas por essa lei . Como nos adverte Evandro Steele, ex-secretário estadual de infância e juventude e procurador aposentado, apesar dos abusos são raras as punições de funcionários. "Os garotos não conhecem os agentes por nomes, mas por apelidos. O ideal seria que todos fossem obrigados a usar crachás. Queremos substituir definitivamente a figura do agente pela do educador." Ao chegar ao Educandário Santo Expedito a tia de Carlos (nome fictício) foi levada para uma sala da direção, onde recebeu um documento informando: o jovem de 17 anos tinha morrido dias antes e já estava enterrado no Cemitério do Caju. A causa foi uma sessão de espancamento a que ele havia sido submetido na unidade Padre Severino. "não me deixaram nem fazer o enterro. Neste sentido, sustenta Karyna Batista Sposato : Embora pareça evidente que a privação da liberdade não é sinônimo da privação ou restrição de todos os direitos dos adolescentes, são sistemáticas as violações de direitos humanos em todos os estados da Federação, e o Estado de São Paulo lidera o ranking de contra exemplo: restrição a visitas familiares, isolamento de 24 horas, regimento interno baseado em castigo e premiação são alguns episódios da história recente da Febem. Tiago (nome fictício) é outro exemplo claro destas violações que constantemente tem se repetido nas varas de infância e juventude pelo país, pois passou um mês e meio no mesmo instituto sem sequer ter cometido qualquer delito: - "Estava na praia, quando um guarda municipal me acusou de roubo. Expliquei que, se eu tivesse feito algo, não ia ficar ali. Mas não teve idéia. Fui para a delegacia e, de lá, para o Padre Severino." Ele conta que, na primeira audiência com o juiz de menores, as vítimas não o reconheceram. Neste caso, percebemos total desrespeito ao mandamento constitucional. É certo que a legalidade é pressuposto necessário para a aplicação de uma pena segundo a fórmula clássica Nulla poena el nullum crimen sine lege, também o deveria de ser para a imposição de uma medida sócio-educativa, contudo, nem sempre tem ocorrido desta maneira. 3 ANÁLISE ESTATÍSTICA 3.1 PARTICIPAÇÃO DOS ADOLESCENTES EM CRIMES VIOLENTOS Um levantamento feito pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), divulgado no final de 2002, mostrou que os adolescentes são responsáveis por 14,7% dos homicídios praticados, desfazendo o mito de que são os principais responsáveis pela criminalidade. No imaginário coletivo, o adolescente é o principal agente da violência no país sendo aquele que comete os crimes mais graves, vez que só chegam às páginas da mídia estes casos. No entanto, os delitos praticados pelos adolescentes, em conflito com a lei, são majoritariamente crimes patrimoniais e não crimes contra a vida. O roubo representa aproximadamente 41,2% do total de delitos praticados por adolescentes que cumpriam medida sócio-educativa de internação. Para Eliane Pereira , promotora da Vara da Infância e Juventude no Rio, "o grande perigo do adolescente consiste no seu despreparo. Não há como negar que há meninos com grande potencial lesivo, mas sem dúvida, eles são uma minoria.". Estudos já feitos pelo ILANUD (Instituto Latino Americano das Nações Unidas para prevenção do delito e tratamento do delinqüente) mostraram que os crimes graves atribuídos a adolescentes no Brasil não ultrapassam 10% do total de infrações. A grande maioria (mais de 70%) dos atos infracionais são contra o patrimônio, demonstrando que os casos de adolescentes em conflito com a lei considerados de alta periculosidade e autores de homicídios são minoritários e o ECA já prevê tratamento específico para eles, ou seja, a internação. Conforme dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) e da Subsecretaria da Promoção dos direitos da Criança e do Adolescente, do total da população adolescente brasileira, a população de adolescentes em conflito com a lei representa 0,1583% (ver gráfico 2). Ou seja, menos de 0,2% de toda a população adolescente do país é responsável pela prática de atos infracionais. 3.2 MAIORIDADE PERDIDA Este tópico, assim como o anterior, baseou-se na série "Dimenor" veiculada pelo jornal O Globo, em dezembro de 2007. Foram analisados 6.079 processos registrados no livro de tombo da Segunda Vara da Infância e da Juventude em 2000, o que representa um universo de 2.363 adolescentes. A maior parte dos jovens pesquisados tem de duas a quatro infrações ou anotações criminais em quase oito anos. A pesquisa revelou que dos 2.363 adolescentes em conflito com a lei atendidos pelo Estado na época, 1.243 (52,6%) já foram flagrados cometendo crimes como adultos ou estão mortos, colocando em evidência o Estatuto: seja quanto à ressocialização não alcançada pela lei, quanto à garantia dos direitos básico, dentre eles, a vida. A pesquisa alerta no sentido de que a porcentagem de 52,6% de jovens mortos ou envolvidos em crimes quando adultos não significa que o restante se recuperou. Pouco mais de 10% (245) dos adolescentes atendidos pelo Estado não aparecem hoje no banco de dados do Detran-RJ. Ou seja, devido à falta de identificação, não é possível afirmar se reincidiram ou sequer estão vivos. Há ainda outros 15% (361) que não foram flagrados cometendo crimes depois de 18 anos, mas reincidiram como menores após o delito de 2000. A certeza é de que só um em cada cinco jovens (pouco mais de 21%) não teve novas passagens ou morreu após passar naquele ano pelo departamento Geral de Ações Sócio-educativas (DEGASE), órgão estadual que atendem infratores. Pela lógica, haveria maiores possibilidades de se modificar comportamentos desviantes entre os menores do que em adultos. No entanto, o coordenador de Segurança e Inteligência do Ministério Público, o procurador Astério Pereira dos Santos, ressalta que o índice de 20% de recuperação de menores é inferior ao dos adultos presos no sistema penal, que numa pesquisa empírica feita na Seap, 37% dos apenados conseguiram se recuperarem. Em verdade, ao analisar os depoimentos dos adolescentes que se envolvem no crime, percebe-se um verdadeiro processo espiral. A reincidência está presente na maioria dos casos. Anderson, 22 anos, hoje está entre os mais de 400 presos na carceragem da 59ª DP (Caxias). Sereno, ele relembra com clareza os seus primeiros contatos com o crime em 2000, quando tinha apenas 14 anos. Naquele ano, foram duas passagens pelo juizado, por tráfico de drogas. Em 2002, mais uma, por roubo. Longe de ter sido reeducado, Anderson, na verdade, está sendo socializado para viver no crime. - Tudo começa quando você ganha o primeiro dinheiro. Ai acabou. Primeiro, compra uma quentinha (para o traficante) e ganha 10 reais. Depois, eles convidam: "Menor, tem como ficar vigiando ali para mim?" Só num final de semana, ganhava cem reais. Aí, perguntaram: "Sabe segurar uma arma?" "Quer dar um tiro?" O primeiro disparo é cheio de medo... Hoje, desmonto pistola, mexo com qualquer fuzil... - garante. A maioridade mudou pouco sua vida. Não mudou nada quando fiz 18 anos. Só pensei: daqui a pouco faço. Preciso fazer um assalto melhor, o último ? diz Anderson. Sobre seu futuro, ele responde abrindo os braços, num gesto de incerteza. Para Joelson a desestruturação familiar foi fator determinante para seu ingresso no mundo do crime: Tinha pouco mais de 11 anos quando decidiu, em 2000, deixar a casa da mãe, no subúrbio do Rio. Para fugir tive que desatar os nós das cordas com que meu padrasto me amarrou em uma cama. Pouco antes, já tinha tomado tapa um na cara, que revidei com uma ameaça. ? E bom você lembrar muito bem do dia de hoje, porque o tapa que você me deu vai ser devolvido um dia com um tiro ? disse a criança ao padrasto. Até aquela data, a vingança de Joelson não se realizou, mas as conseqüências da fuga forçada de casa foram vistas nos últimos sete anos pelas ruas da cidade: o adolescente foi detido em três dos inúmeros assaltos que praticou. Atualmente, com quase 18 anos, ele cumpre medida sócio-educativa num internato na baixada fluminense. Seu futuro é incerto, pois, após cumprir a medida sócio-educativa, não tem para onde ir. Provavelmente, voltará às ruas. David, 17 anos, cinco passagens no juizado por roubo: "- Antigamente, eu pensava que o carro que roubava estava no seguro. Depois a pessoa compra outro, eu pensava. "A situação dela deve ser melhor do que a minha." Havia dias em que minha avó deixava de tomar café para deixar o pão para mim. Felizmente, David é uma exceção do sistema. Depois de concluir a internação, terminou os estudos. Hoje, integra um grupo de pagode e trabalha numa loja. Para David o apoio da família foi fundamental. Talvane Moraes , psiquiatra forense, opina no sentido de que a base é educacional. "Não é só da escola, mas também da família. Costumo dizer que um indivíduo que nasce e cresce sem a assistência pública corre o risco de viver à margem da lei. O comportamento criminoso, muitas vezes, é o resultado de toda uma história de vida." Como bem notou Roberto Lyra citado Munir Cury (2003, p.378) "a verdadeira prevenção da criminalidade é a justa e efetiva distribuição do trabalho, da cultura, da saúde, é a participação de todos nos benefícios da sociedade, é a justiça social". CONCLUSÃO A intervenção estatal, na vida dos adolescentes infratores, se dá via medidas sócio-educativas enunciadas pelo ECA no artigo 112. Dentre elas, como vimos, consta a medida de internação. Importante ressaltar, nesse passo, que da maneira como elas têm sido aplicadas, são ineficazes, que, não obstante, seu caráter pedagógico previsto pelo Estatuto não passam de pena. Reeducar segregando o adolescente nos parece paradoxo. Responder a violência com mais violência, em tese, legitimada, porque em nome do Estado, de fato, não representa qualquer ação reeducativa. Consoante aos ensinamentos do grande criminólogo, Alessandro Baratta , "a educação promove o sentimento de liberdade e de espontaneidade do indivíduo: a vida no cárcere, como universo disciplinar, tem um caráter repressivo e uniformizante". Dessa forma, conclui o mestre a "cada sucessiva recomendação do menor às instâncias oficiais de assistência e de controle social, a cada sucessiva ação desta sobre o menor; corresponde um aumento, em lugar de uma diminuição, das chances de ser selecionado para uma carreira criminosa". Em razão disso, faz necessário repensar as propostas educativas do ECA, em especial, a internação. Importante observar que não se trata de eximir o adolescente de sua responsabilidade tornando-o vítima da situação, embora, o que em muitas situações o é. É necessário respostas mais efetivas por parte do Estado, tratando o problema em sua base, garantindo, efetivamente, o que fora proposto como os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, expressos em seu art. 3° do Estatuto. São eles: direito à vida, saúde, educação, cultura, esporte, lazer, convivência familiar e comunitária, liberdade, respeito, dignidade, profissionalização e à proteção para o trabalho. Assim, o Estado deve priorizar políticas públicas que visem à prevenção da criminalidade, e não à exclusão dos adolescentes. A solução acontecerá, necessariamente, com a transformação social e não apenas pela punição dos culpados. É importante que a justiça seja feita, mas não da forma que vem sendo proposta. BIBLIOGRAFIA BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 3ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 1999. BATISTA, Vera Malaguti. Difíceis ganhos fáceis: Drogas e Juventude Pobre no Rio de Janeiro. 2ª ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. CURY, Munir (coord). 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Juiz de Fora: UFJF, 2005. SPOSATO BATISTA, Karina. Gato por lebre: a ideologia correcional no ECA. RBCCRIM, 2006, n. 58, p. 136 ? 151.
Autor: Mara Cristina De Alcântara Dutra


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