VELHA BARBEIRA



Era 9:30 quando ele acordou e a essa hora era para estar no trabalho a pelo menos uma hora e meia já sentado em sua mesa, levantou, esfregou os olhos e quando os abriu, estava sentado na sua cama. Lembrou da noite passada, não podia ter bebido e nem ter chegado tão tarde.
Quando enfim, já na rua, olhou para a vaga junto ao meio fio para estacionar o carro, avistou outro carro a frente, estacionado de forma estranha, na transversal, ocupando vaga de três carros, fato que para uma cidade grande em horário de pico seria inadmissível.
Com raiva daquelas que só se sente quando estamos cheios de razão e mal humorados, se permitiu xingar, gritar, buzinar e como nada disso adiantou, com um soco no volante e com a cabeça para fora do vidro gritou

-Só podia ser mulher!!!
Ele que não tinha fama de ser "politicamente correto", não hesitou e continuou buzinando.

Não era a toa que estava atrasado, no dia anterior tinha saído com uma garota, daquelas que na sua opinião não merecia mais que uma noite, talvez na opinião dela também ele não fosse digno de mais que isso. Se lembrou do motivo do atraso e disse resmungando:

Mais uma vez atrasado neste mês, e agora essa outra e ainda barbeira..."

Quando saiu do carro para saber porque aquela criatura estacionava daquele jeito bizarro, ao se apoiar na porta do carro, ouviu em forma de eco na sua cabeça:

- Moço, não estou passando bem, por favor me leva para o hospital.

Por causa da ressaca, e da noite mal dormida aquela frase entrou como uma agulha em seus ouvidos
E ele respondeu:

- Por favor senhora, isso é hora de passar mal, estou atrasado, quer fazer o favor de estacionar direito, a senhora está me atrasando mais!

E ela repetiu:

-Me leva.....E desmaiou

Agora as coisas realmente estavam ruins, não podiam ser piores, por um segundo ele desejou não estar lá, e mal ele sabia que esse desejo se estenderia por horas.
Entrou no carro empurrou a senhora para o banco ao lado, ficou ali, por alguns segundos pensando para onde a levaria, afinal não conhecia nenhum hospital por perto, mas mesmo assim disparou com o carro.
E a senhora desfalecida, morta, num instante abriu os olhos e sussurrou:

-Me leva para o Hospital Santa Cruz e se eu morrer, avisa a Márcia...

Suspirou, fechou os olhos e voltou a desmaiar...
Nessa hora ele gritou:

-PELAMORDEDEUS, NÃO MORRE NÃO!!! Não aqui, espera um pouco!!Eu lá sei quem é a Marcia...
E pensou porque estava lá, naquele lugar naquela hora. Colocou a mão no bolso quando se lembrou da carteira.

Gritou desesperadamente:

- MEU DEUS!! A carteira, ficou em casa, esqueci na pressa!!

Não podia prosseguir, com uma velha morta em um carro que não era seu e ainda sem carteira de habilitação e sem documentos, então mudou o rumo do hospital para seu apartamento.


Ao chegar em frente ao prédio, trancou o carro e subiu correndo.

Quando enfim, desceu com a carteira no bolso, havia uma aglomeração de pessoas em volta do carro olhando para a velhinha pálida, com os lábios roxos, com o rosto apoiado no vidro que escorria sua saliva.

E ele disse:

-Gente! Está tudo bem!!Tudo bem mesmo!!

Disparou para o Hospital, mas antes entrou por engano na rua da feira, na contra mão e em uma rua sem saída
Quando finalmente chegou entregou a velha para o médico, foi elogiado pela equipe, pois afinal ninguém "hoje em dia" faz mais isso..
Ele, de uma hora para outra se tornou o herói do dia, conhecido pelos corredores, como o bom rapaz
Quando aliviado por ter entregue a senhora, virou-se para o médico que caminhava na sua direção com um olhar fixo e sério, prestes a dar a fatídica noticia.
E disse:

- Bom, Doutor, preciso ir, estou mais que atrasado...

O médico com aquela serenidade e calma que chega a ser insultante disse:

- Não senhor! Você fica, o caso dela é gravíssimo trata-se de aneurisma!!! Ela precisa operar agora e você terá que assinar a autorização para a cirurgia e ficar com as coisas dela.

A sensação de desespero voltou nesse momento
E ele disse:

-Eu assinar! Eu nem a conheço!
- É isso ou ela morre garoto. Disse o Médico

Quando ele achou que mais nada aconteceria, o médico começou a despir a velhinha na sua frente, não havia tempo para protocolos e cerimonias e ele pensou que não viveria para ver uma cena daquelas
Ali no hospital, com uma pessoa que nem conhecia, atrasado e provavelmente na estatística dos desempregados, olhando em cima de uma mesa a nudez que não conhecia, a nudez senil que na sua descrição se resumia em um par de peitos parecidos com ovos estralados e alguns pelos pubianos brancos, espaçados e compridos, engoliu seco e detestou a frase: "Até que a morte os separe". Decidiu que não queria envelhecer com ninguém!

Depois de algumas horas recebeu a noticia do sucesso da cirurgia, com calma conseguiram localizar a família da senhora e avisa-los do ocorrido

Só não conseguiu melhorar a sua situação de atraso, mas agora, pelo menos tinha uma desculpa digna, politicamente correta...

Claro que no trabalho ninguém acreditou em uma historia tão mirabolante
Ainda no telefone seu chefe disse:

- Fala ai, pode contar, quem é a gostosinha que está com você ?

Percebeu a diferença entre ser bom e ser puro, ele sabia que não era puro, mas já considerava a idéia de ser bom...

A velhinha já recuperada depois de alguns meses, o presenteou e agradeceu, soube da historia completa, agora através da versão dele, pois havia ficado a maior parte do tempo desacordada.
Já podiam rir de tudo. Era como um sonho e ambos estavam acordados.

Mas presentes materiais não simbolizavam e muito menos compensam a gratidão e ela precisava de uma retribuição de igual valor e insistentemente passou a lhe enviar emails para tentar convertê-lo a sua religião, era como apresentar a salvação para ele que a havia salvado. Uma retribuição digna, vida por vida.
Depois de muitas tentativa, ela em um momento de iluminação com um sorriso percebeu que essa tentativa era uma grande ironia, foi invadida de um entendimento que antes não fazia o menor sentido


Ela não podia convertê-lo a nenhuma religião com o mínimo de princípios éticos
pois a lógica de tudo estava obviamente em ele não ter sido politicamente correto.
Entendeu que ao xingá-la de "velha barbeira" ele a achou e a socorreu...
E se não estivesse atrasado justamente por ser tão incorreto não teria passado por lá naquela hora... Era assim que devia ser.
E o último email que lhe enviou estava apenas escrito.

Nada e ninguém é por acaso!

Autor: Daniela Souza


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