Jean, de Camila



Camila sempre foi independente. Saiu cedo de casa para estudar e trabalhar em outra cidade, gostava de festas, de beber, fumar, namorar, tinha fácil trato social. Era feliz assim, até que se viu atraída por um rapaz de ar triste e aparência muito bela, com pele clara que contrastava com olhos e cabelos negros (de fato, tinha mesmo feito alguns trabalhos como modelo). Como sequer passava pela cabeça dela estabelecer um romance àquela época, foi pega de surpresa. Paixão à primeira vista, não teve como negar. E formaram um belo casal, pois Camila também se destacava pela beleza: loura, alta, de olhos azuis, naturalmente tinha muitos pretendentes.

Interessante que Jean pouco fez para conquistá-la. Havia uma certa química imediata entre os dois, conforme logo perceberam no primeiro contato. Não demorou para que ficassem juntos e namorassem firme, de forma que, até então, Camila não estava acostumada. Não podiam ficar um dia sequer sem pelo menos conversar pelo telefone. Camila se via numa situação onde Jean fazia parte constante de seus pensamentos, adorava fazer coisas para agradá-lo e queria saber tudo que se passava com ele, não por questão de ciúme, mas sim por sincero interesse. Sempre eram vistos juntos, de tal forma unidos que se estabelecia um vínculo de cumplicidade que era mais forte que qualquer desconfiança. Raramente discutiam ou divergiam sobre algum assunto.

O tempo, a que tudo muda, foi passando. Por mais que Camila se esforçasse, as coisas não eram mais as mesmas. Momentos havia em que Jean ficava distante, se afastava tanto fisicamente quanto em pensamento. Essas fases de Jean eram uma terrível tortura para ela, que não conseguia entender o que se passava com ele. Descobriu que o jeito triste e melancólico de Jean, que no começo tanto a atraiu, não se tratava de mera particularidade, de charme que combinava com a aparência. O rapaz realmente tinha problemas psicológicos, talvez em decorrência de traumas familiares desde tenra idade (filho de pais separados, problemas com alcoolismo, traições, brigas, etc.), e uma propensão à depressão. Já havia tentado tratamento, remédios, mas não era afeito a tais procedimentos, que logo abandonava. Sentia uma força maior que tudo, que o levava ao isolacionismo, à solidão, ao vazio existencial, um sentimento como que a se contentar em não ser acolhido e querido no mundo. Camila já desconfiava também que Jean tinha problemas sérios com drogas, que não era apenas um consumidor eventual, como era o caso dela.

A independência de Camila não permitia que ela tolerasse grandes períodos em segundo plano. Como era possível que ela, sempre tão requisitada e querida por todos, ficasse como que em segundo lugar na vida de Jean, como se a melancolia dele fosse mais importante? Mesmo que esses períodos fossem temporários, tornavam-se cada vez mais frequentes, e às vezes longos demais para que ela suportasse. Começou a surgir ciúme e desconfiança. Jean não cuidava da relação, não realimentava o amor, não lhe era mais carinhoso. Mera questão de tempo até ela não aguentar mais, situação que já era notada por todos, e decidir romper de vez com Jean. Foi muito doloroso, mas ela tinha que tomar a decisão e voltar a ser feliz.

Sofreu muito por alguns meses. Para esquecer Jean e apaziguar o vazio que sentia em seu coração, como nunca antes havia acontecido, começou a fumar e beber em demasia. Sempre que possível, saía para festas e badalações, mantinha contato com amigos e amigas, procurava retornar à sua vida anterior e ficava com outros homens, consciente que não deveria procurar uma relação estável por um bom tempo. Tinha que recuperar sua independência, libertar-se do sofrimento, ser ela mesma de novo. Era preciso apagar Jean da memória, por mais doloroso que fosse aceitar o fato que não mais teria contato com uma pessoa que foi tão importante e especial em sua vida.

A separação resultou em um fardo ainda mais pesado para Jean. Tinha ocorrido num período muito ruim para ele, que não entendia o porquê de ter sido abandonado. Isso apenas serviu para alimentar sua melancolia profunda, tornando o sofrimento maior que nunca. Chorou muito e retomou pensamentos suicidas com maior intensidade. Ao contrário de Camila, Jean não tinha amigos que pudessem lhe oferecer algum conforto. Curiosamente, porém, não intensificava o uso de drogas como remédio para sua amargura. O sentimento de perda, de rejeição, era mais que suficiente e intenso, suplantava qualquer outra coisa, inclusive sua própria vontade. Só tinha Camila em seu pensamento, nada e ninguém mais.

Apesar do tempo ir passando, e Camila se empenhar em esquecer Jean, ele era constantemente visto perambulando em frente ao prédio onde ela residia, inclusive de madrugada, conforme os porteiros sempre relatavam. Já tentara entrar em contato com ela por telefone antes, mas Camila se recusara a atender e responder suas ligações. Assim, não tinha mais coragem, sequer oportunidade, de tentar um encontro pessoal. Ficava, sempre que podia, ali, na rua, andando a esmo, encostado num poste ou sentado na calçada, olhando para o apartamento dela, qual um animal de estimação abandonado, sem lugar para ir, sem entender o que acontecia. Quando, cansado, voltava para casa, tinha crises de choro e não conseguia dormir. Sua aparência refletia o próprio sofrimento: já não era mais tão belo, era quase que uma caricatura de si mesmo, com profundas olheiras e cada vez mais magro.

Camila resistiu o quanto podia, mas saber que ele estava mal lhe fez surgir certo sentimento de culpa. Teria tomado a decisão certa? Será que ele ainda a amava? Como poderia ter feito isso com alguém que tanto gostara, principalmente se ele ainda a amava? Grande era a dúvida e a angústia que surgia em Camila. Apesar de tudo, e mesmo com o passar do tempo, ela não conseguiu esquecê-lo completamente. Ainda por cima o dilema de Jean era lembrado todo dia, pelos porteiros, quando ela chegava ou saía de casa.

Um dia resolveu ligar e conversar com Jean. Ficaram sem saber exatamente o que dizer, havia um clima de profunda mágoa, de medo e incerteza. Mas começaram a perceber uma certa retomada na confiança, eram pessoas que se conheciam, que foram íntimas, tinham sido importantes uma para outra. Camila sentia a chama da dúvida em seu coração e decidiu, em outra conversa, convidar Jean para ir a sua casa.

O encontro ocorreu poucos dias depois. Conversaram pouco e logo se viram entre abraços e beijos. Mas não era a mesma coisa. Da parte de Jean, havia um certo receio, da parte de Camila, uma curiosidade em tentar descobrir o quanto ainda gostava dele. Acabaram dormindo juntos.

Nunca mais se viram. Camila percebeu que não conseguiria recuperar seu amor por Jean, o que havia restado nada mais era que pena. Passou a ignorar os comentários dos porteiros, mudou de telefone... Com o tempo, acabou mudando de residência também e arranjou outro namorado. Quanto a Jean, nunca mais se teve notícias.

Autor: José Marcelo Rigoni


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