Os (Outros) Donos Da História



Num determinado momento de minha vivência como professora universitária, lendo o artigo de Edgar de Decca, Cidadão, mostre-me a identidade !, senti-me absolutamente próxima do texto, uma vez que o que ele ali dizia, casava profundamente com minhas inquietações sobre a história de Itaituba, município paraense, às margens do rio Tapajós. Para ele a memória histórica nacional constrói-se através do apagamento das outras memórias e mais, ela dissimula as contradições existentes entre cidadãos diferentes, quer seja pelas condições econômicas, produtivas, sociais ou culturais.

Não para aí, a história e memória oficial passam a idéia da igualdade, da oportunidade igual para todos, elevando a pluralidade à condição de igual, mas no cotidiano da história as memórias nos dizem outras coisas e são justamente estas outras coisas que me inquietavamfazendo com que eu me propusesse a desenvolver algumaspesquisas com meus alunos do curso de História da Faculdade de Itaituba – FAI, para que se pudesse construir, interpretar, trazer à tona uma outra prática historiografia, onde nela aparecessem os mais diversificados construtores da história, diferente da chamada história oficial.

Assim, foi-se construindo uma historiografia. Foi-se construindo uma história, onde as memórias dos moradores de Itaituba se transformaram emimportantes sustentáculos para um novo olhar sobre a cidade e região.

Na história oficial, por exemplo, muito se fala das quinhentas toneladas de ouro que foram extraídas do município em função do ciclo do ouro, na década de setenta, oitenta e meados de noventa, ou então dos grandes proprietários de garimpo que fizeram fortuna. Ainda deles, um novo comportamento nascido justamente da posição emergente advinda do ouro, possibilitando fretes de avião apenas para passar um fim de semana no Rio de Janeiro, ou então da compra de carros importados com sacolas de ouro in natura nos escritórios de grandes concessionárias paulistas; por outro lado, do número de aviões e vôos, fazendo do aeroporto de Itaituba um dos mais movimentados do mundo.

Pois bem, como era na realidade a condição de vida e trabalho do garimpeiro, como era seu cotidiano, suas inquietações, suas angústias ou então os desejos de prosperidade? Estas questões fazem parte dahistória, estão na memória dos personagens e pela oralidade, podem e devem ser interpretadas, para que se componha um novo cenário, deixando os garimpeiros, da mesma forma os soldados da borracha, os pescadores, de serem coadjuvantes, passando àprincipais intérpretes desta nova história, sem vácuos de silêncio, como é aprática ideológica da história oficial.

Para melhor elaborar esta história social e cultural que é um projeto de busca pela memória, outros personagens passaram a incorporar esta procura, o homem que cotidianamenteelabora o pequeno trabalho, aquele que parece não ter tanta importância pelo fato de não compor a lista dos associados das entidades que representam o glamour empreendedor.São eles os pequenos comerciantes que numa outra época vierampara assegurar um bom lugar no ciclo do ouro, no entanto, por razões diversas tiveram que reinventar a própria vida, e assim, acabaram por compor um cenário de grandes dificuldades econômicas, contornando-as através da procura por outras oportunidades.

Nos utilizamos da descrição densa para melhor falar não só sobrenossos entrevistados, mas também nos descrevermos diante das emoções, das ansiedades, das descobertas, afinal, na proposta de uma nova história, o pesquisador é realmente parte dela. Alguns trabalhos se utilizaram da técnica do diário de pesquisa, que permite uma convivência maior com os entrevistados, participando mais de suas vidas, reconstruindo fatos importantes das histórias, aqueles quetrazem os atos de significação cultural mais expressivos.

O universo feminino ajuda a colorir este importante documento que agora é colocado à disposição de todos aqueles que desejam conhecer e conviver, através dos relatos, com vitoriosas mulheres que a despeito das veias abertas de uma cidade que ainda engatinha em sua cidadania enquanto bem coletivo, demonstram sergrandes desbravadoras e parceiras na luta pelas condições de justiça, solidariedade, trabalho, renda, arte,cultura, acomodando à estessubstantivos eadjetivos, seus sonhos, necessidades e desejos.

Assim, muitas histórias estão sendo contadas e interpretadas sobre homens, mulheres, trabalhadores desse legado amazônico. Também estão presentes outros intérpretes, vindos de lugares longínquos como o Nordeste, Centro-Oeste, Canadá, Alemanha, são atores históricos que trazem na bagagem processos culturais diferentes dos daqui, mas que ao longo dos dias se misturam numa interessante e mágica alquimia, uma mistura de pluralismo, de diversidade, reafirmando a verdade de que uma única história não é mais possível.

É comum encontrarmos mulheres saídas da agricultura familiar em busca de outras oportunidades, uma delas, o garimpo, durante o auge do ouro, ora como cozinheiras, ora como prostitutas,participando da organização do garimpo apenas em uma destas funções, sempre tendo como meta principal a melhoria da situação financeira como trampolim para um novo status sócio cultural. Outras, de menor sorte, foram transformadas em presas fáceis da prostituição forçada, ainda em tenra idade, variando dos treze aos vinte anos, fazendo parte das estatísticasdo tráfico de mulheres –escravas.

Ainda outras, dispondo-se a contribuir com as crianças e adolescentes de Itaituba, transformaram-se em abnegadas professoras, mesmo sem a titulação adequada, ensinando a geografia do lugar, a matemática para ser usada nos mercados e nas lojas da cidade, e quando não havia classe disponível, o aprendizadoficava embaixo das mangueiras, os alunos estirados ao chão, conhecidos como alunos-jacaré.

Os primeiros escribas da história se preocuparam em registrar a necessidade do uso do avião para percorrer as milhas amazônicas no encontro de fazendas, garimpos, madeireiras, mas se esqueceram de dizer que este meio de transporte muitas vezes era o divisor de águas entre a vida e a morte , no socorrode doentes, levando-os para um município melhor equipado na área da saúde, uma vez que em Itaituba ela,como política pública, demorou muito a acontecer.

Conhecer o soldado da borracha é descortinar a vida de imigrantes, principalmente do Nordeste que também vieram para a Amazôniapara fugir da pobreza. Nos seringais, uma mão de obra farta e fácil, enfrentando os perigos desconhecidos da mata, a febre amarela e a malária, não havendo nenhuma preocupação, por parte dos donos dos seringais, com o padrão de vida e saúde dos seringueiros. Plantação desordenada, a distância entre os seringais, o pouco ganho, a queda da produção nos períodos de chuva, a solidão, fazem parte do cotidiano desse trabalhador. Ver os filhos crescendo, imitando o pai na labuta, sem perspectivas de melhoria, envelhecendo bem antes do tempo.

Ao lado do comércio que se desenvolveu a custa do extrativismo, e do dinheiro que foi empregue em outras regiões do país em fazendas e imóveis, a história deixou de contar sobre a difícil vida dos moradores das palafitas, do lixo invadindo as ruas, das invasões em busca da moradia, assim como do mercúrio no rio, dos altíssimos índices de analfabetismo, das mortes de famílias inteiras por conta das disputas de poder e de terra.

O belo está visível, não precisa ser dito, é declamado em prosa e verso, está nasmúsicas dos fazedores de arte do lugar. O Tabuleiro Monte Cristo, abrigo da desova de tracajás, São Luis do Tapajós com suas cachoeiras,corredeiras e sua gente pesqueira, o caudaloso e bom Tapajós com suas praias e belas caboclas, está tudo ai para ser visto e cantado, e mais dia, menos dia entrará para os folhetos e páginas de publicações especializadas em turismo. Mas o que será da memória , da outra página, se não começar a ser escrita agora? E mais do que escrever sobre as memórias coletivas, antes, é preciso refletir acerca delas, entender a disputa existente entre memória oficial e as silenciadas, marginalizadas, encontradas nesta cidade urbana, rural, tapajônica, ribeirinha, aldeada, garimpeira. Desnudando-se à cada significativo olhar, à cada imagem, nascida, toda, dos passos, do trabalho e da boca de quem a edifica.


Autor: Jussara Whitaker


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