As Receitas Que Nunca Criei, As Estórias Que Contei



Tornou-se um traço de cultura se dizer que na "casa da vovó tudo pode". As crianças, no caso, aquelas com status de neto, sem nenhum limite, vasculham geladeiras sem se preocuparem em fechar as portas; comem as guloseimas que querem em qualquer momento, mesmo queseja há poucos minutos antes de uma refeição; acabam combatons,derrubam perfumes, desfilam pela casa com os sapatos da avó; destroem plantas em vasos e jardins, derrubam leite no sofá, enfim, são senhores absolutos do espaço que nem delas é.

Na medida em que são repreendidos pelos pais, é no colo da avó que encontram o abrigo aconchegante contra as "injustiças" paternas, e assistem de camarote sem nenhuma cerimônia, lá do meio do colo macio, os pais receberem uma bronca enorme por terem ousado restabelecer uma certa ordem no emaranhado de netos e avós.

Na casa da vovó tudo pode, parece ser o tema preferido da Giovanna, minha neta, pois as coisas necessariamente mudam de lugar quando ela aparece. Nada deixa escapar, tudo está ao alcance de suas mãos. Pensando bem, este é um traçoaté que interessante, tirando o lado da criança serelepe, ela se acostumará a brigar por tudo o que deseja, não vê obstáculos, pois os escala, derruba, sacode até que atinge os objetivos propostos. Não é só isto, ela é muito curiosa, os olhos nada perdem. São olhos que completam o ar de atrevimento necessário para escalar este mundo que tanto ainda precisa mudar.

Estes mesmos avós desejam, lá no fundinho da alma, deixar alguma coisa para os netos, algo para ser lembrado por todos os tempos, que entre no rol das heranças, ou talvez que possa ser dito " no tempo da minha avó, era assim que ela...". Este desejo também é meu, sou uma avó assumidíssima, onde os netos estão, inegavelmente, acima de qualquer suspeita. São os mais bonitos, os mais amorosos, os mais inteligentes, os mais engraçados, enfim, crianças além de seu próprio tempo. Meus olhos de avó assim os interpretam.

Mas voltando àintenção de deixar algo que se eternize através da vida, que transcenda o tempo conhecido, que possa fazer parte do legado desses pequenos cidadãos, pensei primeiramente em deixar como herança um livro de receitas, por mim escrito, para meus dois netos Yuri e Giovanna. Quem sabe um dia Yuri não poderia se tornar um chef de cuisine, igual a estes que aparecemem programas de televisão, famosos nas cozinhas derestaurantes finos, ganhando gordos salários. Quanto a Giovanna, o uso do livro de receitas parece-me mais fácil de ser aproveitado, principalmente se ela optar por ser uma tradicional rainha do lar. Mas pode ser que abrace a causa como profissão, se tornando tão famosa quanto o Yuri.Ou então que nada disto aconteça, que eladescubra outros universos, pois tem garra para isto e muito mais

Deparo-me com um enorme problema, como escrever um livro de receitas, para ser lembrado como as "receitas da minha avó", se pouco sei da arte? Não posso deixar impresso apenas como se faz o arroz, ou então uma macarronada, um chá com limão, abrir uma lata de atum ou um vidro de palmitos. É preciso ser mais, muito mais, do contrário meus netos não chegarão a chef de cuisine. Pode parecer, de minha parte, um sentimento de rejeição à cozinha, mas na verdade não o é, apenas que esta magia de combinar alimentos levando-se em conta a nutrição, a beleza dos pratos, as cores, o sabor, os mais diversificados temperos e uma grande dosagem de criatividade, não é para qualquer um, realmente não faz parte do meu dia a dia, e nem sei o por que disso, foi simplesmente acontecendo. Nada tenho contra a cozinha, gosto muito de comer e encaro como arte as invenções maravilhosas que homens e mulheres realizam em seus espaços culinários.

Diante do fato, restou-me pensar em uma outra alternativa. Teria que ser algo bem próximo do que penso saber fazer, e assim, optei por deixar como herança algumas reflexões acerca da vida, temas que estão presentes no cotidiano de homens e mulheres, uma fala aos meus netos, na intenção de ajudá-los a se construírem como cidadãos planetários. Se não pelas receitas, talvez assim eu possa fazer parte de suas vidas, mesmo quando não estiver mais nesta vida.

Será que estaria eufugindo da tradicional roupagem de avó? Contar estórias talvez se constitua emmedida certa da oralidade entre avós e netos.Não caberia apenas aos pais esta fala sobre as coisas da vida? Pode ser que seja uma intromissão,mas não me importo, se minhas opiniões e interpretações são diariamente passadas para quase duas centenas de pessoas, através da função de professora, por que não dizer um pouco sobre a humanidade, o universo feminino, o preço do feijão, ou da Amazônia, esta mesma que andam querendo transformar em pedaço de todos, claro que os Estados Unidos estão na liderança da proposta.

Voltando à questão das estórias, de contá-las aos netos, eu as conto sim, mas os tradicionais personagens acabam por se envolver em outros roteiros. Jogo fora o scriptoriginal para recriar os fatos próximos ou pertencentes ao universo das crianças. Faço assim também com as músicas, pois que sentido tem hoje, para meus netos,cantar a briga do cravo com a rosa e dizer que eles brigaram debaixo de uma sacada? Prefiro trocar a sacada pela janela, afinal janela existe nas casas que fazem parte de suas vidas.

Ainda sobre as cantigas infantis, já repararam que a maioria, traz embutida uma série de desgraças, desavenças, diria até que uma certa violência? A exemplo: "... sambalelê tá doente, tá com a cabeça quebrada, sambalelê precisava, é de umas boas palmadas". Doente, quebrada, palmadas, definitivamente não a canto assim, meus netos merecem conviver com palavras mais otimistas, menos agressivas. Outra então nos diz: "... eu sou o lobo mau, lobo mau, lobo mau, eu pego as criancinhas pra fazer mingau." Isto sem me esquecer do boi da cara preta que pega os meninos que têm medo de careta.

Quero falar um pouco mais das estórias, creio que a justiça feita pela própria mão, a inveja, a maldade, a tristeza, e outros substantivos, estão encravados na pele dos personagens. Alguém conhece a estória da madrasta que matou a enteada por ciúme e a enterrou no quintal? Como a menina tinha longos cabelos loiros,exatamente no local em que o corpo estava, nasceu uma roseira de enormes rosas brancas, em uma segunda versão a roseira foi substituída por um majestoso pé de milho. É claro que a criança desde cedo aprende a temer as fatídicas madrastas, além de cultuar o loiro, o branco como sinônimo da pureza, da bondade, sei lá mais o que. Fico preocupada comminha neta Giovanna que tem os cabelos loiríssimos, imaginando-se transformada em uma espiga de milho.

Acredito que a pior das estórias é a da Moura Torta, parece-me que migrou de Portugal para o Brasil e não sei que adaptações foram feitas neste processo migratório, mas o texto tem uma boa dosagem de maldade, de ciúme, vingança, além, é claro, da figura da princesinha bobinha e desprotegida, espelho da futilidadee da inoperância.

Se bem me recordo, a Moura era obrigada a pegar água no rio todos os dias, tendo, portanto, que carregar pesadose enormes potes de barro. A tal princesa estava escondida no galho de uma árvore e seu belo rosto refletido nas águas, claro que a Moura acabou por achar que tal imagem à ela pertencia e não se conformava em ser tão bela e ter que carregar pesados potes.

No desenvolvimento da estória a bruxa feia, ou seja, aMoura Torta, acaba descobrindo a verdade e por vingança enterra um alfinete mágico na cabeça da princesa que vira uma bomba, ao sons de terríveis gargalhadas de vingança que brotam da boca da maldita. É de se pensar, com tristeza, sobre a princesinha no galho da árvore de uma bucólica paisagem, a espera do príncipe que por ummotivo que não aparece na estória, ali a tinha deixado enquanto fazia não se sabe o que.

Claro que no final a verdade acaba aparecendo e a Moura é condenada a entrar numa espécie de barril repleto de enormes pregos, que vão furando seu corpo durante uma infindável descida de uma montanha, pois o requinte do castigo foi completo, o príncipe ordenou que o barril fosse levado, com a Moura dentro, no cume da mais alta montanha e de lá empurrado para baixo.

Dá para imaginar a cena, e pior, repeti-la paracrianças que desde cedo vão recebendo informações pesadas sobre castigo e crueldade, depois de alguns anos será bem provável que estas mesmas crianças assustadas com o castigo daMoura, que teria tido seu corpo completamente perfurado por terríveis pregos, acabem por defender a pena de morte. Não é exagero, a construção ideológica começa bem cedo, dentro de casa, diante dos fatos e dos objetos comuns.

Meu neto Yuri não gosta da estória do casamento da baratinha, ele acha um absurdo que o ratinho acabe se afogando na panela de feijão. Claro que já mudamos, juntos, o final da estória, nada de rato morto e afogado, afinal a baratinha merece um final menos trágico. Pois bem, o rato recebeu o castigo pelo fato de ser guloso, a gula é um dos pecados capitais, está aí, portanto, mais uma vez, o peso da ideologia repassada à uma "inocente" estória infantil. Todo aquele que tem um comportamento adverso das regras estabelecidas acaba por receber o seu castigo, e olha só a tragédia, o rato morreu pela gula.

É tão intensa certas figurações na construção cotidiana das crianças, que certo dia Yuri me perguntou se alguém da família tinha caído na panela de feijoada, acho que ele anda reparando em como todos nós gostamos de feijoada e deve ter ficado preocupado.

Outra coisa que comentou foi o fato da baratinha passar horas e horas na janela, de fita nos cabelos,esperandopassar um noivo que dela fosse digno.Claro, sua observaçãonão foi em relação a fita nem ao noivo, mas sim em relação a postura da baratinha. Numa das vezes em que a baratinha estava na janela, ele interrompeu a estória e me perguntou se ela não trabalhava. Para mim tal questionamento foi extremamente significativo, ele está acostumado a ver o trabalho como um acontecimento normal, desempenhado por homens e mulheres da família,ao trabalho está agregado um valor social e cultural que lhe é transmitido diariamente, portanto, uma baratinha tão desocupada é alguma coisa no mínimo estranha. A extraordinária observação está repleta de significação, coletada no cotidiano de sua vivência e experimentação.

Giovanna mora em outro estado, no Amazonas, portanto nossa relação não é tão próxima, gostaria de estar mais perto, de ouvi-la e acompanharseu desempenho no mundo. É mulher, e assim gostaria de lhe dizer certas coisas, contar de como foi difícil a escalada feminina num universo de machos, e ainda o é, não fosse pelas lutas diárias desempenhadas por milhares de donas de casa, que fazem verdadeiros milagres para manter a família unida diante de tanta diversidade econômica, ou então pela árdua escalada profissional recheada de preconceitos, salários mais baixos, violência doméstica, eticétera e eticétera.

Talvez a saída para falar mais com Giovanna seja mesmo através das estórias, e para Yuri, traçar novos enredos em algumas de nossas noites, antes da hora de dormirmos.

As estórias para crianças são antigas, Platão, no século V a.C. já dizia da necessidade das mulheres as contarem aos filhos, normalmente aparecendo o bem como opositor ao mal, a desavença entre os irmãos deuses Anúbis e Bata que apesar das confusões dependem um do outro para existirem, acompanhou infindáveis gerações.

A divisão entre o bem e o mal mais clássica é aquela onde príncipes e fadas são o bem, os monstros e as bruxas ficam por conta do mal, e olhe que esta representação vem aparecendo bem antes daIdade Média, com a preocupação de transmitir e sedimentar valores e normas de conduta e convício social. Para bem lembrar, não podemos nos esquecer da Branca de Neve, da Cinderela, cuja origem não está na Europa e sim nos contos orientais, embora tenham sofrido modificações através das interpretações dos europeus, adequando-seàs manifestações e significações culturais européias.

Pois bem, se a Cinderela pode se adaptada, porque a nossa boa e velha baratinha que espera pelo noivo também não pode ser feliz no final da estória, amandoum ratinho que não seja tão guloso?

Assim, caminhando pela Idade Média, pelo Renascimento, as estórias e os contos populares vão adquirindo novas almas, ora enfocando as fadas como personagens dos enredos de cavalaria, antes como seres mitológicos celtas, chegando em nosso mundo pela fala de nossas avós, de acordo com os valores morais de cada época.

Esta flexibilidade histórica me ampara no meu desejo de subverter as estórias que conheço, e escolher os caminhos que mais acredito para repassá-los aos meus netos, portanto me dou o direito de elaborar outros roteiros, mudar os personagens,se isto for bom para que eles tenham um entendimento melhor do mundo, das pessoas, crescendo com mais solidariedade, acreditando numa proposta de humanidade que seja um bem coletivo.

Ao invés de receberemum tradicional livro de receitas, deverão, no presente e no futuro sentirque nem todo o cravo está com a cabeça quebrada, que nem toda bruxa é malvada, muitas delas fazem parte do legado de sábias mulheres conhecedoras de alquimias que nada mais são do que ungüentos e garrafadas encontradas em nossa contemporaneidade.

Na casa da vovó tudo pode. Pode sim, além de mexer e remexer nas coisas, sentar num bom colo e desfrutar de preciosos tesouros transformados em importantes ensinamentos através das estórias e contos infantis. Esta sim, é a principal herança, e aindahaverá quemsubstitua "no tempo da minha avó..." peloo tempo da minha avó é o agora.


Autor: Jussara Whitaker


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