O CASTELO MONTENEGRO
Alberto estava com 16 anos quando o pai veio a falecer depois de ficar acamado por seis cinco dias com febre e tosse. Com a morte do marido, Ester viu-se obrigada a esquecer por algum tempo os planos que tinha para o filho. Precisava se preocupar agora em ganhar o sustento para ambos. A olaria foi fechada. Justino nunca se preocupou em ensinar a profissão de oleiro ao filho e Alberto só queria realizar os desejos de sua mãe.
Túlio, mordomo no castelo Montenegro, amigo de Justino, compadecendo-se com a situação da viúva, pediu ao duque de Montenegro dar trabalho e moradia no castelo para ela e o filho.
O castelo se compunha de algumas construções de alvenaria rodeadas por um muro com ameias e torres e um fosso cheio de água estagnada e suja. O pavimento superior do palácio, residência do barão, continha varias dependências, onde morava Ciro da Veiga, duque de Montenegro e sua mulher Virginia. Num prédios nos fundos do pátio, viviam os criados. Túlio mostrou a Ester o lugar onde ela e Alberto iriam dormir, um quartinho pequeno com dois leitos e uma cômoda. Em seguida o mordomo conduziu Ester para a cozinha onde ela trabalharia como ajudante de Emilia, a cozinheira. A cozinha era espaçosa com dois fogões de pedra, um para assados, outro para ensopados, sobre este havia um caldeirão suspenso por uma corrente de ferro presa numa trave no teto.
Túlio levou Alberto para a cavalariça na parte de trás dos edifícios. Nos fundos do castelo havia outras construções menores, a casa do secretário, o alojamento da guarda, a casa da forja, o herbário, a casa de banhos dos criados, depósitos e outras construções menores que serviam de depósitos.
Alberto passou a trabalhar como ajudante na cavalariça. A tarefa que ele recebeu foi limpar os estábulos. O rapaz retirava a sujeira das baias subia por uma escada até o alto da muralha e dali jogava para o outro lado. Todo o lixo do castelo era jogado por ali e o monte de dejetos já começava a desmoronar para dentro do fosso. Esse era o trabalho de Alberto, limpar as baias alimentar e escovar os cavalos, lustrar e conservar os arreios limpos. Ao entardecer, depois de suas obrigações, Alberto perambulava pelo pátio do castelo até a hora do jantar. Na lateral do prédio principal, havia uma capela, constituída por uma sala pequena com o altar e alguns bancos de madeira. O altar consistia de uma mesa coberta por uma toalha de linho branco debruada com renda dourada, e um crucifixo de madeira. Alberto sentou-se num dos últimos bancos e começou a rezar. Estava de olhos fechados, o rosto inclinado absorto, quando sua atenção foi desviada por um suave ruído de passos e o farfalhar de um vestido. Acabando de rezar, ele abriu os olhos e viu uma mulher ajoelhada sobre uma almofada diante do altar. Pelos longos cabelos avermelhados o rapaz percebeu que era Virginia, a esposa do duque. A duquesa, jovem e bela, lançou um olhar para trás e Alberto, que se propunha sair, desviou o olhar para o chão, encabulado. Fez o sinal da cruz e saiu apressado, temendo que a mulher tivesse se aborrecido com a presença dele ali, sujo e fedendo a cavalo. Naquela noite ele decidiu tomar banho todos os dias depois do trabalho.
Alguns dias depois o duque saiu para caçar em companhia de dois amigos. O jovem Mario, que também era serviçal, e Alberto, prepararam as montarias e os cães de caça. Saiu o barão com seus dois amigos e Mario como pajem. Alberto estava dando ração aos animais quando Virginia aproximou-se dele.
- Como é o seu nome? Perguntou ela.
- Alberto Justino de Miranda, para servi-la. Respondeu o rapaz inclinando o tronco como Túlio o havia ensinado. Virginia lançou um olhar para o portão e voltou a encarar Alberto.
- Mario saiu com meu marido e eu preciso de alguém para encher a banheira...
- Eu posso ir senhora.
- Então venha comigo.
Alberto seguiu a moça aos aposentos dela no segundo pavimento. Na sala de banho havia um armário, uma cômoda com um espelho, um fogão e uma banheira esmaltada sobre um estrado de madeira. Num canto estava um barril com água.
- Esquente a água e enche a banheira. Depois vá ao hortelão e me traga óleo e essências. Eu já volto.
A duquesa saiu e Alberto acendeu o fogo e colocou água para esquentar. Enquanto isso ocorria, ele foi até o horto. Domingos, que cuidava do horto, estava ao lado de sua casinha, colocando ervas sobre uma prancha para secar.
- Senhor, bom dia! A senhora duquesa me mandou buscar óleo e essência para o banho!...
Domingos olhou para o rapaz e acabou o que estava fazendo. Fez um sinal e entrou na casa.
- Como se chama rapaz?
- Alberto. Trabalho na cavalariça.
- A gente ainda não se conhecia. Chamo-me Domingos.
Domingos dirigiu-se para um grande armário com prateleiras onde estavam alguns potes e frascos contendo essências, óleos e cremes. Do lado oposto havia outro armário semelhante, com produtos medicinais. Alberto disse o que Virginia queria e o velhote entregou-lhe dois frascos de vidro.
- Isso é óleo de amêndoas e essência de jasmim. Explicou Domingos. - Cuidado para não quebrar. Diga para a Senhora não jogar fora os vidros usados por que eu preciso deles.
Alberto saiu caminhando com cuidado. Quando chegou à sala de banho, Virginia já lá estava enrolada numa toalha.
- Coloque a água quente na banheira e tempere. Pediu ela olhando-se no espelho. O rapaz hesitou com os frascos nas mãos.
- Vamos, Alberto! Exclamou a mulher. Ele colocou os frascos sobre a cômoda e preparou o banho. Virginia o observava com uma expressão divertida. O rapaz acabou de encher a banheira e se propunha a sair.
- Espere! Pediu Virginia. - Vire-se.
Alberto deu-lhe as costas com o coração aos pulos. Instantes depois, Virginia disse:
- Agora traga a essência, esse líquido mais claro, e coloque dentro da água.
Alberto pegou o frasco e aproximou-se da banheira. Virginia estava imersa na água até o pescoço. Procurando controlar o seu nervosismo, Alberto tirou a rolha do frasco e derramou a essência na água.
- Pegue aquele outro, coloque um pouco nas mãos e massageie os meus cabelos. Instruiu a duquesa soltando um gemido de satisfação. Alberto fez o que ela disse e postou-se atrás da mulher, com as mão untadas em óleo. Arriscou dar uma olhada no que aparecia dos dois seios a flor d, água.
Será que esse era o serviço de Mario? Pensou ele. Pois essa é uma tarefa muito mais agradável do que limpar cocheiras! Com delicadeza, ele começou a massagear os cabelos da mulher. A sua excitação deixou-o embaraçado. Retirou as mãos e Virginia disse:
- O que foi? Nunca tocou numa mulher antes? Ela voltou-se, encarando-o. - Acho que não, você é tão jovem!
Virginia soltou uma risada e puxou-o pela camisa. Alberto tropeçou e quase caiu dentro da banheira. Seu rosto ficou bem próximo dos seios de Virginia, que não parava de rir. Naquele instante soaram latidos no pátio e um cavalo relinchou. Os caçadores estavam de volta.
- Meu marido! Exclamou Virginia. - Saia daqui!
Alberto não esperou nova ordem, saiu correndo, desceu as escadas, passou pela sala, pela cozinha e saiu por uma porta dos fundos. Ficou sentado num banco, longe das vistas do duque. Enquanto se acalmava, ficou a pensar. Mario ainda era um menino, ele quase homem, mas inexperiente nos jogos do amor. A duquesa agira daquela forma apenas para se divertir, colocá-lo em teste. É uma atitude por demais arriscada. Por quê? Estará insatisfeita com o marido? Ela aparenta ter pouco mais de vinte anos e o duque é muito mais velho! Ciro nunca lhe dirigiu a palavra, qualquer assunto com os cavalos ele tratava com o velho Mateus. Conhecia pouco o seu patrão, mas era o suficiente para saber que era severo, orgulhoso e certamente não perdoaria quem o enganasse e se o caso fosse muito sério, talvez chegasse às ultimas conseqüências. Alberto resolveu evitar a mulher dele. Naquela noite dormiu mal, seu sono foi cheio de pesadelos. Acordou na manhã seguinte com Túlio sacudindo-o pelo ombro.
- Vamos lá! Levante-se logo, vais comigo a Santa Maria.
O rapaz sentou-se na beira da cama, calçou as botinas, procurando por Túlio, mas ele já havia saído. Ester entrou naquele momento com um alforje e um casaco de lã.
- Leve o seu casaco, pode ficar frio. Disse ela ajeitando-lhe os cabelos. - Pedi para Túlio te levar ao colégio, já que ele vai para aqueles lados. Ele vai te matricular no seminário.
- Mãe! Mas eu...
- Pois é a hora chegou. Espero que não tenhas feito outros planos! Não me decepcione!...
Alberto ficou calado, pegou o casaco, o alforje, deu um beijo na mãe e saiu. No pátio, Túlio o esperava numa carroça cheia de ferramentas. Rubens Saldanha, o capataz e outro empregado armado com um mosquete, também estavam preparados para viajar. Um cavalo encilhado esperava o quinto viajante. Alberto subiu na boleia da carroça e sentou-se ao lado de Túlio. Logo depois o duque desceu a escadaria ajeitando o jaquetão. Trazia na cintura uma cartucheira com uma garrucha. Alberto sentiu um frio na espinha. Ciro montou em seu cavalo e o grupo partiu. A viajem seguiu sem incidentes. Alberto manteve-se calado, observando os cavaleiros que seguiam a frente. Algum tempo depois ele não se conteve e perguntou a Túlio em voz baixa:
- Aonde o duque vai?
- A capital. Antes nos vamos passar no engenho. Conhece algum engenho?
- Não senhor.
- Pois então vais ficar sabendo como se faz o açúcar...
Por volta do meio dia o grupo chegou a um dos engenhos de açúcar do Duque de Montenegro. Enquanto Ciro se dirigia para a casa do administrador, Túlio conduziu a carroça para um galpão junto à Casa da Moenda. Ali ele descarregou as ferramentas e depois saiu com Alberto para lhe mostrar como se fabricava o açúcar. Na Casa da Moenda as canas eram espremidas entre três tambores verticais acionado por força animal. O caldo obtido na Casa da Moenda passava para a Casa da Fornalha, onde era cozido em grandes vasilhames de cobre. O combustível para as fornalhas era a lenha. Ainda na Casa da Fornalha, o caldo era submetido a um processo de clarificação para eliminar as impurezas. Em seguida, passava pela evaporação, concentrando-se recebia mais três cozimentos diferentes; as duas primeiras forneciam o melado; da terceira, resultava a rapadura. Melado e rapadura eram misturados, sendo o produto transferido para a Casa de Purgar, onde, por meio da drenagem natural, separava-se o melaço dos cristais de açúcar. Feito isso, procedia-se ao branqueamento, dispondo-se camadas de barro nas formas. Toda essa operação era fiscalizada pelo Mestre do Açúcar. A etapa seguinte consistia em mascavar o açúcar, isto é, em retirá-lo das formas, cortando-lhe a parte inferior mal purgada e de cor parda, que constituía o açúcar mascavo. Os tijolos de açúcar eram então quebrados em torrões cada vez menores e expostos ao sol para secagem. Reduzido a pó, o produto era encaminhado a Casa das Caixas, onde era posto em caixas de até cinqüenta arrobas, calafetadas com barro e forradas com folhas secas de bananeira. Em cada caixa registrava-se com ferro em brasa em três lugares, o peso, o nome do engenho e o mercador que faria o transporte para o mercado consumidor.
Depois de examinar o livro contábil do engenho e tratar de outros assuntos com o administrador, Ciro da Veiga partiu para a capital, em companhia de Rubens e do guarda-costas. Túlio seguiu com Alberto para Santa Maria.
Túlio conduziu a carroça por uma alameda que levava ao prédio principal do colégio no alto de uma colina. Deixou a carroça no pátio e conduziu Alberto ao escritório. Frei Vicente já conhecia Túlio de outras visitas.
- Frade, este é Alberto. A mãe dele gostaria muito que ele seguisse a vida religiosa...
Frei Vicente sorriu.
- Muito bem! Então vamos tratar do assunto. Sentem-se!
Os dois tomaram assento e o sacerdote apoiou-se na mesa, entrelaçando os dedos.
- Que idade tens?
- Dezesseis.
- Sua mãe deseja que seja sacerdote, mas e tu? Quer mesmo seguir o ministério sacerdotal?
- Sim, senhor. Se agradar ao Altíssimo!...
Frei Vicente sacudiu a cabeça.
- Sempre agrada ao Senhor as boas obras. Mas, para alguns é difícil renunciar os prazeres mundanos. Si queres ser sacerdote, deves antes estudar muito os preceitos cristãos e preparar o teu espírito, purificá-lo para que possas lutar contra as tentações.
O frei fez uma pausa observando o jovem, que ouvia atento.
- Ele vai ser um bom sacerdote. Disse Túlio sacudindo Alberto pelo ombro.
- Pois bem! Eu vou fazer o registro do Alberto, e segunda-feira ele poderá assistir a primeira aula. Durante o período de estudos e penitencias, o seminarista deve meditar e decidir se quer mesmo ser sacerdote...
Anoitecia quando Túlio e Alberto chegaram à cidade. Túlio alugou um lugar no estábulo para a carroça e o cavalo, e disse ao rapaz:
- Eu vou passar a noite na taverna e você fica aqui, cuidando da carroça.
- Mas, eu queria ir com o senhor!
- Aquilo não é lugar para alguém que deseja ser padre! Fique de olho nas nossas coisas. Durma ali sobre o feno, ou mesmo dentro da carroça. Aqui você estará seguro.
Túlio se afastou, saiu do estábulo, atravessou a rua e entrou na taverna. Alberto subiu para o monte de feno e sentou-se, encostando-se na parede. No silencio da noite ele ouviu a risada dos homens na taverna e a melodia de um alaúde. Olhando para a luz de um lampião pendurado numa coluna de madeira, ficou a imaginar em como seria sua vida de padre.
Estava quase adormecendo quando ouviu a porta do estábulo abrir-se e fechar-se. Uma jovem surgiu, carregando numa bandeja uma tigela com comida e uma caneca.
- Que lugar horrível para alguém dormir! Exclamou ela. - Tome, seu amigo mandou-lhe comida.
Alberto pegou a tigela, a caneca e acomodou-se para comer. A moça sentou-se perto dele, observando-o.
- Como se chama?
- Alberto.
- Meu nome é Lígia, trabalho na taverna.
Alberto bebeu um gole do líquido da caneca e tossiu com o ardume na garganta. Aquilo era vinho e ele nunca tinha colocado bebida alcoólica na boca antes. Respirou fundo, com os olhos cheios de lágrimas.
- O seu amigo mandou lhe trazer leite e eu achei que ele estava brincando! És muito jovem para beber! Jogue fora.
- Não! Eu tenho que me acostumar!
Ligia sorriu. O rapaz observou-a detidamente. Ela parecia ter a sua idade. Seus cabelos eram longos e ondulados, caindo sobre os ombros. Alberto evitou o olhar penetrante dela e examinou a tigela que continha pedaços de carne de galinha assada e arroz com batatas. Com uma colher de pau, começou a comer.
- Acho que vão sentir tua falta na taverna. Disse ele, sentindo-se desconfortável tão próximo da moça.
Ligia sorriu.
- Já terminei o meu serviço por hoje, e vou para casa...
Alberto bebeu devagar mais um gole de vinho. Não estava acostumado a beber, mas queria que a moça o considerasse adulto e dono de si.
- Ouvi Túlio dizer que vocês trabalham e moram no castelo Montenegro...
- Sim, mas não por muito tempo, pois eu vou estudar no colégio de padres.
Ligia admirou-se.
- Vai ser um homem santo?
- Santo? Não! Padre.
- Que interessante! Mas, és tão jovem!
- É melhor começar cedo. É necessário ter bons pensamentos, ser caridoso, puro de coração. Foi o que o frade disse...
Alberto calou-se. Ele achava que havia pecado ao sentir-se atraído por Virginia e sentia-se culpado por isso. Bebeu o resto do vinho, sentindo-se tonto. Tentou erguer-se e caiu sobre os joelhos de Ligia. A moça soltou uma risada e segurou-o pelos ombros.
- Estás bêbado!
- Que nada!... Ainda posso beber uma jarra de vinho!...
Ligia puxou-o para si.
- Mentiroso. És muito bonito!...
- Vós sois também! Respondeu o rapaz com o rosto colado no busto dela. Sentia-se bem nos braços da moça. Era a segunda vez que caia nos braços de uma mulher. Se isso é pecado, não posso ser sacerdote, pensou ele e beijou o colo de Ligia.
- Vai desistir de ser padre? Perguntou ela num sussurro.
- Não sei....
Quando Alberto acordou já estava amanhecendo. Ele olhou para os lados e não viu Lígia. A jovem tinha se ido sem que ele tivesse notado. Sentia-se feliz, com os acontecimentos da noite que passou. Agora se sentia realmente um homem. Estava apaixonado por Ligia e queria vê-la novamente. Decidiu procurá-la na taverna. Quando estava saindo do estábulo, encontrou Túlio, que chegava naquele momento.
- Vamos embora. Disse Túlio.
- Preciso antes falar com uma moça...
- Que moça?
- Preciso falar com Ligia, a moça da taverna!...
Túlio observou a expressão aflita do rapaz. Acabou sorrindo.
- Dormiram os dois juntos? Quando pedi para ela te levar comida, nunca pensei que isso pudesse acontecer! Esqueça a moça e vamos embora.
- Mas...
- Não queres ser padre? A tua mãe vai se decepcionar se souber o que se passou!
- O senhor acha que não posso ser padre agora?
- Isso não sei. Deves falar com frei Vicente. Vamos embora.
Ester não gostou da decisão de Alberto de desistir do sacerdócio, mas conformou-se e obrigou- a aprender uma profissão. Alberto revelou que gostaria de ser marceneiro e Túlio prontificou-se em matricular o rapaz na escola de Artes e Ofícios, de São Salvador.
Felipe dos Carvalhos era admirado e respeitado como Mestre Carpinteiro. A sua escola consistia em três prédios ligados entre si por varandas e sacadas e rodeado por amplos jardins. Um dos edifícios era as oficinas, o segundo, alojamento e no terceiro ficava a administração e gabinetes para estudos e lazer. Túlio ajudava Ester a pagar os estudos de Alberto, pois o salário que ela ganhava como cozinheira era muito pouco.
No oitavo mês, quando Túlio chegou ao colégio para pagar a mensalidade, levava uma má noticia para Alberto. Ester havia falecido. Naquele dia Alberto não conseguiu trabalhar e com o consentimento de Felipe, ele permaneceu em seu alojamento, triste, com a morte da mãe.
Depois de três anos Alberto completou os estudos e a partir de então, passou a ganhar um salário. Certo dia chegou à oficina, um homem da Corte recrutando jovens para trabalhar no estaleiro do Vice-Rei. Alberto e seu colega Henrique da Rosa aceitaram o convite e partiram para o litoral. O estaleiro ficava a trinta quilômetros de São Salvador, próximo de uma aldeia de pescadores, onde moravam os mestres e operários com suas famílias. Os trabalhadores contratados ganhavam um salário fixo e trabalhavam seis dias por semana. Alberto trabalhou nove anos no estaleiro como ajudante e durante esse tempo, graças a sua dedicação ao trabalho e facilidade de aprendizado, tornou-se Mestre Construtor de Embarcações. Manoel Ramiro, Marquês de Campo Belo, almirante da Frota Real, pretendia construir dois navios de combate para a defesa do litoral e o único lugar onde ainda restava madeira de lei, era no vale Do Rio Verde, mas o vale fora vendido pelo vice-rei, ao duque de Montenegro. O marquês não gostou da atitude do Governador Geral se desfazer daquelas terras e conversou com ele a respeito. O único jeito que acharam, foi desapropriar a madeira do vale, tomá-la como imposto. O Vice-Rei aceitou a sugestão e assinou o decreto de desapropriação. Manoel Ramiro ordenou que um procurador do reino partisse para São Luiz das Palmas para levar ao duque de Montenegro, copia do decreto e providenciar a retirada da madeira. O homem escolhido foi Alberto, que foi nomeado Procurador do Estado do Interior.
Quando Alberto chegou ao castelo Montenegro, foi recebido por Túlio.
- Alberto, que alegria voltar a vê-lo!
- Como vai, Túlio?
- Bem, com a graça de Deus. Veio para ficar?
- Gostaria, mas agora tenho outros compromissos. Fui nomeado pelo marquês de Campo Belo, Procurador do Estado do Interior com a missão de desapropriar a madeira do vale do Rio Verde. Preciso falar com o duque.
- A vida não está boa por aqui. Disse Túlio. - Ciro tem aumentado os impostos daqueles que moram ou trabalham em suas terras. Ele não aceita reclamações e usa até de violência para com seus empregados. Mateus foi embora e o Bento, que era cobrador de impostos agora é secretario geral.
- E por que ainda estás aqui?
- Não tenho família e nenhum lugar para ir... Vou ficando por aqui mesmo!
- Vou falar com Ciro.
- Acho que ele não vai gostar disso. O barão está usando a madeira para construir barcos.
- Bem, gostando ou não, preciso realizar a minha missão.
Alberto entregou a Bento as suas credenciais. O homem voltou logo depois e conduziu Alberto a sala de reuniões. Ciro estava sentado numa cadeira de espaldar alto, ao lado de uma cômoda onde havia um castiçal de ouro. Seus cabelos começavam a branquear nas têmporas. Estava mais magro, tinha envelhecido, mas mantinha a mesma expressão dura, severa. Alberto recordou-se do medo que tinha daquele homem, agora, no entanto, Ciro lhe parecia fraco, indefeso, frágil e seco como um graveto. Alberto entrou e fez a saudação de praxe. Ciro esboçou um sorriso e acenou para uma cadeira próximo dele.
- Bento me disse que és Alberto, filho de Ester a cozinheira, e que eras meu cavalariço!...
- Sim, senhor.
- Então, progredis-te bastante! Mestre Carpinteiro e Procurador do Estado do Interior. A que devo a sua visita?
- Trago um decreto para o senhor, do Vice-Rei. Respondeu Alberto, entregando o documento. Ciro pegou o papel e começou a ler. E à medida que lia, sua expressão foi ficando cada vez mais dura.
- Isso é um insulto! Exclamou. - O Governador não pode fazer uma coisa dessas comigo!
- O Marquês de Campo Belo já mandou equipamentos e lenhadores para o vale.
- Droga! Ciro ergueu-se e postou-se diante da janela. Ficou calado, olhando para fora. Alberto ergueu-se.
- Se o senhor me der licença, preciso ir.
O duque voltou-se.
- Espere. Disse ele. - Não posso fazer nada para anular esse decreto. Mas, eu gostaria de lhe fazer uma proposta. Seus documentos dizem que és um construtor de barcos e eu estou precisando de um bom mestre carpinteiro. Eu desconfiava que o Vice-Rei pudesse voltar atrás quando me deu as terras do vale do Rio Verde e por isso mandei tirar de lá tanta madeira quanto pudessem. Tenho um bom estoque e estou construindo navios para minha frota particular. Se trabalhar para mim, além de um bom salário, lhe dou algumas braças de terras e ainda mando construir uma boa moradia para o senhor, onde preferir. Não precisa me dar a resposta agora. Durma no palácio esta noite e amanhã voltamos a conversar.
- Eu vou pensar e amanhã lhe darei uma resposta. Respondeu Alberto.
Saindo da sala, ele foi direto aos aposentos de Túlio e contou-lhe sobre a proposta do barão.
- E o que pretendes fazer?
- Não sei. É uma boa oferta.
- Podes ter uma vida melhor servindo à Coroa...
- Acho que o cargo que me deram é provisório. Posso voltar a ser apenas um mestre carpinteiro. Vou deixar para decidir amanhã. Posso dormir aqui esta noite? Gostaria que o senhor me falasse de minha mãe...
- É claro! Mas, não está com fome? Desça a cozinha, Emilia vai gostar de vê-lo!
- Emília ainda é a cozinheira?
- Sim. Vá, enquanto isso eu lhe arrumo um leito.
Alberto saiu e desceu para a cozinha. Estava anoitecendo e os criados começavam a acender as lamparinas nos corredores e salas. Emilia recebeu Alberto com alegria.
- Está de volta?
- Apenas de passagem.
- Sente-se aí para comer e enquanto isso me conte o que tem feito.
A cozinheira preparou um prato e Alberto começou a comer. Nisso entrou uma moça na cozinha. Usava um vestido longo e um lenço na cabeça. Trazia alguns gravetos nos braços. Alberto reconheceu-a de imediato. Era Lígia, a moça da taverna! Lígia largou a lenha ao lado do fogão e tirou o lenço da cabeça. Olhou para Alberto com curiosidade. O rapaz ergueu-se.
- Ligia! Não me reconhece? Será que mudei tanto assim?
A moça levou as mãos ao rosto, sorriu. Aproximou-se de Alberto com as mãos estendidas. O rapaz pegou-lhe as mãos.
- Nunca me esqueci de você... Disse ele.
- Eu vim trabalhar no castelo, por que pensei que você ainda morava aqui!...
- Você veio... Por minha causa?
- Sim, e todo esse tempo esperei notícias tuas.
- E eu não sabia de nada!
- Enquanto estavas estudando, eu julgava que voltarias para cá e eu pedi a Túlio para não falar nada sobre mim, para não atrapalhar os teus estudos. Depois, você partiu do colégio e não mandou mais noticias...
- Pois é, e agora me arrependo por isso! Disse Alberto e abraçou-a.
- Não quero atrapalhar tua vida!
- Não pense assim! Se você ainda me quer, não vou deixar-te.
- Sim, quero-te.
Quando Alberto entrou no quarto, Túlio arrumava um leito no chão.
- Você dorme na cama. Disse ele.
- Não senhor! Não vou deixar você dormir aí! Fique na sua cama e não discuta! Amanhã mandarei uma carta ao Marquês de Monte Belo, pedindo dispensa do cargo de Procurador do Estado do Interior e voltarei a morar aqui.
- Você se encontrou com Ligia?
- Sim
- E vai aceitar a proposta de Ciro?
- Acho melhor. Vou me casar com Lígia. O que você acha?
- O que for bom para você, é bom para mim.
- Obrigado Túlio. Disse Alberto, dando um abraço em seu amigo.
Na manhã seguinte, Alberto foi visitar o túmulo de sua mãe na companhia de Túlio. Quando voltava, encontrou o duque, que se preparava para sair. Alberto parou para conversar com ele e Túlio entrou no palácio.
- Então, qual é a sua resposta? Perguntou Ciro.
- Eu aceito, desde que tudo seja documentado. Posso escolher as terras?
O duque sorriu, montou em seu cavalo e respondeu:
- É claro!
Ciro partiu em companhia de um guarda-costas e Alberto entrou no palácio, dirigindo-se para os aposentos de Túlio. No corredor encontrou Bento.
- A duquesa quer falar com o senhor.
- Virginia?
- Quem mais?
Alberto olhou para Bento. Eles nunca foram realmente amigos. Imaginou que Virginia usaria de seus encantos para conseguir qualquer coisa que satisfizesse os seus desejos e Bento devia estar apaixonada por ela, e com ciúmes, é claro. Logo depois ele bateu na porta dos aposentos da duquesa. Estava curioso para saber o que ela queria e preparado para enfrentá-la. Virginia abriu a porta, ele entrou e ela voltou a fechar a porta e ficou encostada nela. Os dois se olharam por breves segundos. Virginia continuava tão bonita quanto antes.
- Sente-se. Pediu ela num sussurro.
- Obrigado, prefiro ficar de pé. O que a senhora deseja? Disse Alberto num tom seco. Virginia sentou-se num divã.
- Eu queria lhe contar uma coisa. Disse ela com uma expressão triste. Fez uma pausa e continuou: - Me casei com Ciro por que passava dificuldades. Sou de uma família pobre, vendia na feira, cestos de vime e outros objetos que meu pai fabricava. Ele morreu e fiquei sozinha. Ciro me encontrou certo dia na feira e resolveu se casar comigo, não sei se por amor ou por capricho. Nunca o amei, só queria conforto e posição social. Algum tempo depois, me senti prisioneira neste castelo e me arrependi por ter casado com ele. Pensei deixá-lo, mas não tenho nenhum outro lugar para morar, ninguém para me ajudar...
Virginia fez nova pausa, olhou para Alberto que permanecia impassível, ouvindo-a. Continuou: - Detesto Ciro, ele mudou muito.
- Por que a senhora está me dizendo isso?
- Por que eu sempre gostei de você e quero que me leve embora daqui.
Alberto ficou calado por um momento. Não queria se envolver com aquela mulher e estragar os seus planos.
- O duque quer contratar os meus serviços e eu pretendo morar na província. Já tenho planos para o meu futuro e não posso ajudá-la. A expressão de Virginia suavizou-se, mas ela continuou preocupada.
- Então esqueça o meu pedido, mas fique atento, Ciro pode ter más intenções. Ele é dissimulado e mau. Já me bateu por diversas vezes por motivos fúteis.
- Nesse caso a senhora deve pedir auxilio a um legista para anular o casamento!
Virginia sacudiu a cabeça e ergueu-se.
- Não, se eu puder ir embora levando o que me pertence, tudo se resolverá. Eu vou esperar talvez você mude de idéia...
- Não tenha esperanças.
- Terei paciência.
Alberto resolveu não continuar com aquela conversa, despediu-se e saiu. Naquele mesmo dia ele mandou um mensageiro levar uma carta ao Marquês de Campo Belo, relatando que havia entregado o decreto a Ciro e pedindo demissão de seu cargo como Procurador do Estado do Interior.
O duque voltou à tarde em companhia de dois homens. Logo que chegou mandou um criado chamar por Alberto a sala de reuniões. Quando Alberto entrou, Ciro conversava com os homens, sentados a uma mesa onde estavam alguns papéis.
O duque fez um gesto para que o rapaz tomasse assento.
- Senhores, este é o senhor Alberto, mestre carpinteiro e construtor de navios. Alberto estes senhores também são mestres de carpintaria, senhores Afonso Duarte, e Pedro de Albuquerque. Eles vão trabalhar para mim no estaleiro.
Alberto cumprimentou um a um e sentou-se.
- Estou precisando de mais um construtor de navios. Explicou Ciro. - Tenho duas naus e preciso de mais.
Ciro fez uma pausa e olhou para Alberto.
- Quero saber se você entende mesmo de barcos. Desculpe se estou agindo de uma forma inconveniente, é que o investimento é grande e eu não posso perder tempo e, principalmente dinheiro. Pretendo construir três navio de trezentas toneladas e mais dois barcos de carga. Mestre Afonso já tem o desenho de uma nau que vamos construir.
Afonso pegou uma folha de papel e estendeu em frente a Alberto.
- Descreva para nós este desenho. Pediu o duque. Alberto pegou o papel e examinou-o. Passou um dedo sobre o desenho.
- Proa, popa, velas latinas, porão divididos em três aposentos, podendo ser cozinha, dormitórios e compartimento de carga. É um barco bem constituído, mas de pouca velocidade, próprio para rios e estuários.
- Para rios! Exclamou Pedro. - Concebemos este navio para navegar em alto mar!
- Isso mesmo. Concordou Afonso.
- Pode ser. Respondeu Alberto. - Mas, acho que o senhor está desatualizado. Existem navios com três ou mais mastros e velas mistas, latina e redonda que lhe dá maior velocidade, tem leme fixo e dois porões. Posso construir um navio desse tipo com setecentas toneladas, para alto mar, é claro.
Os quatro homens trocaram um olhar, admirados.
- Vamos construir um e verificar sua capacidade. Disse o barão.
No estaleiro, Alberto começou a dirigir a construção do navio. No extremo oposto da baía, pedreiros construíam a sua casa no alto de uma elevação, próximo de um riacho, de onde se via a praia sombreada por altas palmeiras. Logo que a moradia ficasse pronta, Alberto levaria Ligia para morar com ele.
Um mês depois, Alberto recebeu uma carta de Ciro, onde o duque pedia a sua presença no castelo. Alberto partiu imediatamente, pois estava com saudades de Lígia, que continuava trabalhando no palácio. Chegando ao castelo, notou que havia barracas no campo e homens branco, índios e mestiços se movimentando de um lado para outro, erguendo um acampamento. No pátio do castelo também havia gente estranha, de aspecto rude. O duque estava almoçando com um grupo de homens no salão de festas. Ciro ergueu os braços ao ver Alberto chegar.
- Meu amigo, aproxime-se!
Alberto acercou-se da mesa repleta de comida e jarras de vinho. Os sujeitos eram antipáticos, barulhentos e de maus modos.
- Este é o senhor Vasco Murici. Disse Ciro, apoiando a mão sobre o homem a sua direta.
Vasco era um mulato de cabelos compridos, sorriu para Alberto, mas era um sorriso frio e o olhar desconfiado. Ciro ergueu-se um pouco lerdo, tonto pela bebida, fez um sinal para Alberto acompanhá-lo ao seu gabinete. O duque apoiou-se na mesa e olhou para o rapaz com o semblante preocupado.
- Quando fica pronta a nau?
- Dentro de três meses, talvez dois.
- Não dá para terminar antes?
- Talvez, se tivermos mais homens trabalhando...
- Vá a vila e contrate mais operários, tantos quantos precisar. Quero os navios prontos antes do inverno.
- Sim, senhor. Gostaria de falar com Túlio e Ligia antes de partir.
- Esteja à vontade. Quer almoçar conosco?
- Não, obrigado, já almocei.
Alberto saiu e perguntou a um serviçal onde se encontrava Túlio e ficou sabendo que ele havia ido à vila, comprar mais vinho. Quando descia as escadas, encontrou Virginia.
- Preciso conversar com você é importante. Disse a mulher com uma expressão aflita. Alberto achou melhor ouvi-la e seguiu-a até a capela.
- Quem são aqueles homens? Perguntou Alberto em voz baixa. No mesmo tom, Virginia respondeu:
- É sobre isso que eu quero lhe falar! Ciro e aquele sujeito de cabelos compridos estão recrutando homens para uma expedição. Foi o que Ciro me disse, mas eu ouvi a conversa dele com o homem que se chama Vasco. Eles fazem planos para atacar e tomar a capital da província, tanto por terra quanto por mar. É por isso que ele quer os navios!...
- Tem certeza disso?
- Claro que sim. Acha que estou mentindo? Quero que você me leve daqui!
- Agora não posso Virginia. Preciso pensar o que fazer!
- Vai me ajudar?
- É claro que sim se você estiver em perigo. Falo com você mais tarde.
Alberto saiu rapidamente e no pátio encontrou Túlio, descarregando barricas de uma carroça. Alberto pediu a ele para conversarem nos aposentos. Chegando ao quarto de Túlio, Alberto fechou a porta e falou com ar grave.
- Virginia me disse que Ciro pretende atacar a capital e tomar o poder. O que você acha disso?
- É possível. Eu já estava desconfiado de alguma coisa desse tipo. Ciro está estocando muito armamento, inclusive canhões que estão escondidos na adega. Vieram desmontados dentro de barricas como se fosse vinho. Desconfiei do peso, abri uma delas e encontrei um fundo falso que contém, além de peças de artilharia, pólvora. Porque o duque me mandaria comprar vinho se havia o suficiente na adega? É por que naquelas barricas tem armas!
Túlio calou-se e perscrutou o semblante de Alberto.
- O que acha que devemos fazer?
- Ciro é louco se acha que pode tomar o governo. De qualquer maneira, se é essa mesmo a intenção dele, vamos ter guerra e muita gente vai morrer. Eu vou a São Salvador conversar com o marques de Campo Belo. Ele há de avisar o governador. Antes vou falar com Ligia. Sabe onde ela está?
- Eu mesmo ia lhe contar, Ligia desapareceu há dois dias!
- Desapareceu? Saiu do castelo e não voltou?
- Ninguém sabe. A ultima vez que foi vista, levava um chá para a condessa.
Alberto ficou pensativo por alguns momentos. O sumiço da noiva era estranho.
- Escute Túlio. Você poderia ir a São Salvador no meu lugar? Escreverei uma carta ao marquês relatando o que está acontecendo aqui.
- Naturalmente, escreva a carta, eu a levarei. Com esta confusão de gente aqui, o barão não dará por minha falta. Amanhã estarei de volta.
Alberto escreveu a carta e Túlio partiu as escondidas. Alberto voltou e entrou na cozinha para falar com Emilia.
- Não sei o que aconteceu. Disse a cozinheira. - A ultima vez que a vi, foi quando ela foi levar um chá para a senhora duquesa. Será que Ligia foi embora?
- Não creio. Obrigado Emilia, eu vou encontrá-la.
Saindo da cozinha, Alberto passou no salão de festas. O almoço já tinha terminado e os criados faziam a limpeza. Indagando a um dos serviçais, Alberto ficou sabendo que o barão tinha ido para o campo em companhia de seus convidados. Subindo para o andar superior o rapaz bateu nos aposentos de Virginia. A mulher abriu a porta e ao vê-lo, puxou-o pela mão. Fechou a porta e abraçou Alberto.
- Pensei num meio de nos livrar de Ciro. Disse ela num sussurro. - Podemos matá-lo e jogar a culpa nos índios!
Alberto desvencilhou-se dos braços dela.
- Deixe disso! Eu quero saber o que aconteceu com Ligia!
Virginia deu-lhe as costas e aproximou-se da janela, olhando para fora.
- Não sei do que estás falando.
- A ultima vez que foi vista, foi quando se dirigia para cá! Ai de ti Virginia se fez algum mal a ela!
- Não sei de nada! Respondeu a mulher e voltou-se encarando Alberto. Ele olhou-a por um momento e depois saiu. Examinou todos os aposentos daquele andar e depois desceu até o pátio, indagando a todos que encontrava se tinha visto Ligia, se sabia o paradeiro dela. Ninguém sabia de nada. Alberto muniu-se de uma lamparina e desceu aos porões do palácio. Passou pela adega, que estava trancada por cadeados e desceu mais uma escada até uma sala úmida, sem utilidade alguma. Talvez Ciro tivesse a idéia de usar aquele local como prisão para seus inimigos. Alberto voltou a subir as escadas, quando viu um corredor estreito que não tinha notado antes. Seguindo por ali, chegou a uma porta estreita,
gradeada e trancada. Ele ergueu a lamparina mas não conseguiu ver ninguém, a luz da chama não chegava até o canto mais distante do aposento.
- Lígia! Lígia?
Um gemido soou em algum lugar lá dentro. Alberto jogou-se contra a porta por diversas vezes até que a fechadura enferrujada cedeu e a porta abriu-se. Ele entrou e encontrou Ligia encolhida num canto. Carregou-a semi-inconsciente para fora. Entrou por uma porta lateral, e procurando ocultar-se, chegou ao quarto de Túlio. Deitou a moça na cama. Lígia abriu os olhos.
- Como se sente? Perguntou Alberto acariciando o rosto dela.
- Fraca, com dor de cabeça. Pensei que ia enlouquecer naquele lugar escuro!
- Fique calma, agora estás em segurança. Vou pedir para Emilia cuidar-te.
Alberto beijou-a e saiu apressado. Logo depois voltava com a cozinheira. Emilia deu um banho na moça e fez um chá para ela, colocando-a para dormir.
- Ela vai descansar agora. Quem pode ter feito uma coisa dessas? Disse Emilia para Alberto que esperava do lado de fora do quarto.
- Não sei, mas vou descobrir. Não comente com ninguém sobre isso, Emilia.
- É claro que não! Disse a cozinheira. Ela segurou as mãos dele como que para dar-lhe confiança e voltou para a cozinha. Alberto entrou no quarto, observou por um momento o rosto da amada que dormia e preparou um leito para si, no chão, junto à cama.
Acordou na manhã seguinte quando Lígia passou a mão pelo rosto dele.
- Como se sente? Perguntou ele sentando-se na beira da cama.
- Agora muito melhor.
- Quem fez isso com você?
Ligia passou as mãos pela cabeça, ajeitando os cabelos.
- Não sei. Eu subi para levar uma caneca de chá para a duquesa e antes de chegar ao quarto, senti que alguém me agarrava por trás e depois não vi mais nada!...
- Não pode ter sido Virginia, ela não tem forças suficientes para carregá-la até o porão.
- Porque desconfias de Virginia? Perguntou a moça, intrigada.
- Ela precisa de um aliado para abandonar Ciro e deixar o castelo e me escolheu. Diz que me ama e é por isso que quer ver-se livre de ti. Talvez pensasse que eu julgaria que tinhas ido embora.
- E o que vais fazer agora?
- Logo que puderes caminhar, nós iremos embora daqui. Agora vou buscar um desjejum para nós, está bem?
Alberto beijou a noiva e saiu. No saguão encontrou-se com o duque.
- Alberto, espere-me, eu vou acompanhá-lo ao estaleiro, já mandei selar os cavalos. Só vou pegar um agasalho. Disse Ciro e subiu as escadas. Alberto ficou contrariado, não estava nos seus planos sair do castelo naquele momento. De qualquer maneira, não poderia se recusar a sair com Ciro. Dirigiu-se rapidamente para a cozinha e deu instruções para Emilia cuidar de Ligia até ele voltar.
Ciro se fez acompanhar de dois guarda costas e do mestiço, chamado Vasco. No estaleiro, o duque vistoriou a construção do navio, conversou com Afonso e Pedro e dispôs-se a partir antes que anoitecesse. Alberto examinou o trabalho executado, deu algumas instruções aos marceneiros e quando o duque partiu, ele esperou por cerca de uma hora para também voltar ao castelo. Chegaria durante a noite e Ciro não notaria sua presença lá. Precisava tirar Ligia do castelo o quanto antes.
Uma sentinela interceptou Alberto quando ele chegou ao portão do castelo e ao reconhecê-lo, deixou-o entrar. Alberto deixou o cavalo na estrebaria e dirigiu-se para o quarto de Túlio. A porta estava entreaberta, a luz acesa, ele entrou e deparou-se com Mario, ajudando Ligia a vestir um abrigo.
- O que está acontecendo?
Surpreendido, o rapaz afastou-se da moça, olhando para a porta. Alberto percebendo a intenção dele ficou no seu caminho. Ligia olhou para Alberto, sorrindo com alivio.
- Mario me disse que estavas me esperando na estrada....
O rapaz procurou fugir, mas Alberto segurou-o fortemente por um braço.
- O que pretendias? Está seguindo ordens de Virginia?
Mario permaneceu calado, temeroso. Alberto insistiu:
- Vocês dois prenderam Ligia no porão? Vamos, fale! Vou te entregar ao barão, tenho certeza de que ele vai gostar de saber o que estavas fazendo no quarto da mulher dele enquanto ele estava fora.
- Eu não queria fazer nada, ela me obrigou! Respondeu o rapaz, aflito.
Alberto deu-lhe um tapa no rosto e empurrou-o em direção da saída.
- Vá embora, deixe o castelo antes que aconteça o pior para ti! Fuja!
Mário saiu correndo. Alberto voltou-se e abraçou Lígia.
- Eu pedi para Emilia ficar aqui contigo!
- Ela estava, mas saiu por que ficou com dor de barriga!
- Ah! Virginia tramou tudo muito bem! Como se sente? Acha que consegue cavalgar?
- Sim, estou bem.
- Vamos embora, para um lugar seguro. Acabe de se vestir.
Ligia vestiu uma capa e logo depois os dois deixaram o quarto. Emilia surgiu no corredor.
- Está melhor, Emilia? Perguntou Ligia em voz baixa.
- Sim, tomei um chá forte. Vocês vão sair do castelo? Cuidado, ouvi gritos lá fora.
- O que está acontecendo? Perguntou Alberto.
- Não sei. Respondeu a cozinheira.
- Fiquem vocês duas no quarto, vou ver o que está acontecendo.
Alberto dirigiu-se para o saguão e encontrou a porta aberta. As tochas do pátio estavam acesas e ele pode ver Ciro no portão conversando com dois homens. Bento estava ao pé da escadaria, e ao ver Alberto subiu até onde ele estava.
- O que está acontecendo? Perguntou Alberto.
- Os homens de Vasco capturaram um soldado imperial que estava espionando o acampamento. O duque acredita que tropas imperiais estão acampadas perto daqui. Ele ordenou aos guardas para impedir que ninguém entre ou saia do castelo.
Alberto ficou decepcionado e apreensivo. Não podia tirar Ligia do castelo. Voltou ao quarto e explicou para a moça o que havia acontecido. Teriam que permanecer no castelo e esperar que o marquês de Campo Belo tomasse alguma atitude. Ligia voltou a dormir e Alberto recostou-se ao lado dela e acabou adormecendo. Acordou ouvindo gritos ao longe e galopes de cavalos. Alberto correu para a janela e verificou que já estava amanhecendo. Uma nevoa pairava sobre os campos. Cavaleiros surgiam da bruma e investiam as montarias sobre o acampamento dos mercenários. Do lado oposto corria a infantaria fazendo um círculo para cercar os rebeldes que procuravam fugir.
Ligia surgiu ao lado de Alberto e ele abraçou-a.
- O que está acontecendo? Perguntou a moça.
- Tropas imperiais estão atacando os bugres. Os planos de Ciro falharam.
Os dois acompanharam em silencio a batalha que durou pouco tempo. Soldados imperiais entraram no castelo a procura de inimigos. Os serviçais foram reunidos no pátio. Soaram batidas na porta do quarto de Túlio e Alberto foi ver quem era. Dois soldados se apresentaram.
- Sou o capitão Abelardo, soldado do exercito imperial. Estamos pedindo a todos que se reúnem no pátio para identificação. Alberto e Ligia acompanharam os homens. Dois outros acompanhavam Virginia. O pessoal do castelo foi reunido no pátio. Túlio juntou-se aos serviçais. O marquês de Campo Belo chegou acompanhado de um legista que passou a anotar num livro, o nome de todos e a ocupação de cada um. Como já conhecia Alberto, o marquês pediu para o rapaz acompanhá-lo até um lugar onde não pudessem ser ouvidos.
- Recebi a sua carta e custei a acreditar nas suas denuncias, mas pelo que vejo, tinhas razão!
- E o duque?
Manoel olhou para a fachada do palácio.
- Os chefes rebeldes foram presos e serão levados para a capital. Ciro não foi encontrado. Alguns soldados estão revistando os outros prédios, será uma questão de tempo. Não acredito que ele tivesse tempo de escapar. Se não o encontrarmos, mandarei afixar cartazes de acusação e aprisionamento e estabelecerei recompensa para quem der informações sobre o paradeiro do Duque de Montenegro. De qualquer maneira ele já está condenado. O castelo ficará sob custodia do estado até que a Câmara julgue o caso.
O marquês estendeu a mão despedindo-se de Alberto. Depois do censo, os serviçais foram dispensados. Alberto reuniu-se a Ligia, que estava acompanhada de Túlio. Alberto abraçou-o agradecendo pela ajuda.
- Ciro deve ter fugido. Disse ele.
- Talvez tenha pulado o muro nos fundos do castelo. Por ali é mais rápido chegar à floresta...
- E Virginia, não revelou o paradeiro dele? Perguntou Ligia.
- Ela disse que, ao ouvir o ruído da batalha, Ciro saiu dos aposentos e não foi mais visto. Bem, com licença, preciso tomar algumas providencias.
Alberto colocou uma mão no ombro do amigo.
- Túlio, não se importa se ficarmos em seu quarto?
- Não, claro que não. Ficarei com Bento.
- Nós temos que esperar pelo fim do processo contra Ciro, para podermos tomar posse de nossa casa. Não sei quanto tempo isso demora...
- Fique tranqüilo. Pediu Túlio e se afastou. Alberto levou Ligia para o quarto. Emília chegou com o desjejum para eles e Alberto pediu para a cozinheira ficar um pouco com Ligia.
- Aonde vais? Perguntou a moça.
- Vou ver como está Virginia.
Ligia ficou indignada.
- O que queres com aquela víbora?
- Virginia é perturbada, insegura. Ciro a atormentava. Fico preocupado e gostaria de saber o que ela está fazendo, ou pretende fazer. Apesar de ser frágil, é uma mulher perigosa.
Ligia sacudiu a cabeça.
- Está bem. Vá vê-la.
Alberto saiu, subiu as escadas e logo chegou ao quarto da duquesa. Quando ela abriu a porta, tinha os olhos úmidos de lágrimas.
- O que quer?
- A senhora está bem? Precisa de alguma coisa?
A mulher sentou-se num divã e respondeu com amargura:
- Sinto-me perdida sem saber o que fazer!
- Ciro vai ser preso e perderá o título, além de alguns privilégios. Provavelmente vai ficar alguns anos na cadeia e a senhora poderá pedir anulação do casamento e refazer sua vida aqui, ou em outro lugar.
Virginia ergueu-se, se aproximou de Alberto e abraçou-o.
- Fique comigo, farei o que está dizendo e nos poderemos nos casar...
A porta abriu-se de súbito e Ciro entrou, empunhando um florete. Estava com as roupas amarrotadas e sujas de fuligem. Virginia soltou um grito de surpresa e se afastou de Alberto.
- Vim pedir ajuda para a minha esposa e encontro ela nos braços de outro homem!
Disse o duque e suas faces pálidas ficaram rubras. Ergueu o florete e avançou contra Alberto. O rapaz esquivou-se, no mesmo instante em que Virginia tentava protegê-lo.
- Não! Gritou ela, recebendo no flanco direito a estocada. A mulher cambaleou e caiu com um gemido. Ciro olhou para ela, espantado. Aproveitando a distração dele, Alberto tentou desarmá-lo, mas Ciro empurrou-o contra a parede. Alberto desviou a mão dele, armada, e deu-lhe um murro no rosto. O duque ficou tonto, caiu para trás, largando a arma. Alberto deu um chute no florete, jogando-o para longe. O homem ergueu-se rápido e fugiu. Alberto alcançou-o no corredor, segurando-o pela camisa. Ciro rodopiou, a camisa rasgou-se e ele perdeu o equilíbrio, caiu, rolou pelos degraus da escada e ficou lá embaixo, numa posição grotesca. Alberto ignorou-o e correu para ajudar Virginia.
O Duque de Montenegro foi sepultado sem nenhum aparato. Apenas alguns serviçais compareceram a cerimônia de sepultamento, além de Alberto, Ligia, Túlio e Virginia. Virginia recuperou-se do ferimento e casou-se no ano seguinte com Bento. Alberto casou-se com Ligia e naquele mesmo ano foi nomeado pelo governo, diretor administrativo da Companhia Real de Comércio Marítimo e Terrestre de São Luiz das Palmas.
Fim
Autor: Antonio Stegues Batista
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