MAQUIAVEL E A POLITICA DOS HUMANISTAS DA RENASCENÇA
No sentido formal, não há inovação nas obras de Maquiavel, pois pertencem a gêneros literários conhecidos, difundidos e consolidados no pensamento político do final do século XV. Porém, quanto ao tratamento dos temas, percebe-se que o florentino subverte as lições que a tradição consagrou .
No Príncipe, percebe-se o ataque de Maquiavel às teorias políticas de seus contemporâneos. Em primeiro momento, o florentino critica as teorias vigentes por não conseguirem enfatizar a importância da força bruta na vida política. Para os humanistas contemporâneos de Maquiavel, se o príncipe tivesse uma vida virtuosa, estaria capacitado a alcançar as metas supremas da honra, glória e fama. Maquiavel considera essa perspectiva ingênua, pois ela não leva em conta que a manutenção de um governo bem-sucedido depende de uma disposição ao recurso da força militar efetiva. Porém, seria um equívoco considerar que Maquiavel tenha sido o primeiro a introduzir essa idéia no campo do pensamento político humanista, pois a disposição de lutar pela pátria, a possibilidade de usar a violência para defendê-la, sempre foi afirmada pelos humanistas predecessores de Maquiavel, como um elemento indispensável do autêntico cidadão.
Não resta dúvida quanto à afirmação que Maquiavel confere grande importância à força bruta na administração de um governo. No Príncipe, encontram-se três capítulos dedicados a análise dos assuntos militares, afirmando que os principais fundamentos de todo Estado consistem em "boas leis e boas armas" e "havendo boas armas, inevitavelmente haverá boas leis". Também discute um assunto que sempre mereceu interesse dos humanistas do início do século XV, ou seja, a insensatez e os riscos que há no recurso a tropas mercenárias. Propõe, como regra, que se um príncipe basear a defesa de seu Estado nos mercenários, jamais haverá de alcançar estabilidade ou segurança . A solução que o florentino propõe, fazendo lembrar o espírito humanista, consiste que todo príncipe deve empenhar-se na constituição de uma milícia formada de cidadãos, a qual também deve comandar em pessoa.
Um ponto que Maquiavel contesta das teses que prevaleciam entre os autores humanistas, refere-se ao papel da virtú na vida política. Havia duas idéias centrais quanto a virtú, que emergiam da tradição humanista de pensamento moral e político. A primeira era que a virtú é a qualidade que capacita um príncipe a realizar seus mais nobres fins; a segunda era que se pode identificar a posse da virtú com a posse do conjunto das principais virtudes. Em conseqüência, predominava entre os autores humanistas um conselho em comum, ou seja, se um governante pretendesse manter seu Estado e alcançar as metas da honra, glória e fama, deveria acima de tudo, cultivar o conjunto mais completo das virtudes cristãs. E é justamente essa conclusão que Maquiavel rejeita .
O florentino concorda que as metas adequadas para um príncipe consistem em honra, glória e fama. Mas rejeita a convicção reinante de que o meio mais seguro de realizar esses fins consistirá sempre em agir de modo convencionalmente virtuoso.
Por vezes Maquiavel apresenta-se com certa obscuridade, pois leva-nos a entender que se os príncipes têm a obrigação de pautar seus atos pela virtude, devem, contudo, dar-se conta de que para agir o mais virtuosamente possível, terão de desistir da pretensão de agir, sempre, virtuosamente. Por vezes encontra-se nas exposições de Maquiavel certa ironia no sentido de ser cruel apenas para ser bondoso.
Ao tratar da virtude da liberalidade, o florentino afirma que o desejo de aparentar generosidade leva os príncipes a impor desnecessária tributação a seu povo, um governante que não receie agir com parcimônia pode descobrir que no devido tempo, haverá de ser reconhecido como sendo liberal .
Quanto à virtude da clemência, Maquiavel escreveu que César Bórgia era considerado cruel, mas acrescenta que essa crueldade reergueu a Romanha, conseguindo uni-la e devolver-lhe a ordem e a obediência. Um governante que tenha firmeza o bastante, "dando um exemplo ou dois" no devido tempo "se provará mais compassivo" do que um príncipe que deixe de reprimir "as desordens que levam ao assassinato e a rapina" apenas a fim de não ser chamado de cruel .
Sobre o papel que as virtudes convencionais podem desempenhar na obtenção da honra, glória e fama almejadas pelos príncipes, Maquiavel afirma que nada é tão importante quanto manter as aparências. A meta do príncipe é "ser considerado pessoa honrada" e conquistar o louvor universal. O príncipe não precisa necessariamente ter todas as boas qualidades, mas certamente deve aparentar possuí-las, em todas as circunstâncias .
A razão para Maquiavel atribuir importância à dissimulação encontra-se no segundo momento de sua crítica a tradição humanista, sobre o papel das virtudes na vida política. O florentino argumenta que é importante os príncipes aparentarem serem virtuosos na forma convencional, mas muitas vezes se torna impossível eles se portarem de um modo convencionalmente virtuoso. A razão que ele propõe para esse fato é que o príncipe "perceberá que algumas das coisas que parecem ser virtudes haverá, se ele as praticar, de arruiná-lo, ao passo que algumas das coisas que parecem viciosas haverão de proporcionar-lhe segurança e prosperidade".
No capítulo XV do Príncipe, ao discutir "Por que os homens, e em especial os príncipes, são louvados ou insultados" Maquiavel expõe sua mais singular tese. No início enuncia a conclusão que pretende demonstrar, ou seja, "o abismo entre como se vive e o modo por que se deveria viver é tão vasto que quem desdenhar o que de fato se faz, para se preocupar com o que se deveria fazer, aprende antes o caminho de sua ruína que o de sua conservação" .
Para ilustrar sua tese, lança ataque contra as virtudes que os autores humanistas apresentavam como as mais adequadas para os governantes cultivarem. Maquiavel continua a empregar todas as convenções humanistas quando expõe sua própria doutrina das supostas virtudes principescas. Ele recorda que sempre se discorre acerca dos homens e especialmente dos príncipes, expondo as várias qualidades que lhes acarretam louvor ou rejeição . O florentino enfoca as três virtudes principescas que sempre receberam o maior destaque em tais discursos: a liberalidade, a clemência e a lealdade.
Depois de estabelecer as virtudes principescas, Maquiavel passa a demoli-las uma a uma. A primeira virtude que analisa é a liberalidade, afirmando ao príncipe que "se tuas ações forem influenciadas pelo desejo de teres a reputação de liberal terás muitos problemas" . A segunda é a clemência, mostrando que no caso de Cipião ela se revelou uma característica fatal, que até mesmo teria maculado sua fama e glória, se o senado romano não o contivesse ainda a tempo. Discorre por fim, sobre a virtude da fé à palavra dada, concluindo que um príncipe que siga a risca essa obrigação descobrirá em muitas ocasiões que ela o coloca em posição desvantajosa.
Maquiavel também insiste que se um príncipe desejar manter seu Estado, perceberá, com freqüência, o quanto é essencial e positivamente vantajoso à utilização daqueles vícios que os autores humanistas aconselhavam os príncipes a evitar a qualquer preço. Começando pela avareza, ele afirma que esta é inevitável se o príncipe pretender conservar seus súditos unidos e leais . Finalmente destaca o valor da fraude e da mentira, insistindo que "a experiência de nossa época mostra que os príncipes que maiores feitos realizaram foram aqueles que deram a palavra com ligeireza, que souberam enganar pela astúcia e que, afinal de contas, triunfaram daqueles que se pautaram pelos princípios da honestidade" .
Maquiavel está de completo acordo com os autores mais tradicionais quanto às metas que os príncipes devem visar. Como ele mesmo afirma, o objetivo do governante deveria ser o de manter seu Estado e realizar grandes feitos e, assim, aspirar à honra, glória e fama. A diferença entre Maquiavel e seus contemporâneos está na natureza dos métodos que considera adequado para realizar seus fins. O ponto de partida dos autores humanistas da época era que, para o príncipe alcançar tais metas, deveria estar certo de seguir as normas da moralidade cristã, sob qualquer circunstância.
Maquiavel, diferentemente, parte da idéia que se um príncipe agir virtuosamente em todos os casos logo descobrirá o quanto "há de padecer, em meio a tantos que não são virtuosos". A crítica fundamental que o florentino dirige aos pensadores de sua época diz respeito ao fato de não perceberem aquilo que a seu ver, define o dilema que caracteriza o príncipe.
Segundo o florentino, esses autores querem ter o direito de expressar sua admiração por um grande condutor de homens como foi Aníbal . Mas ao mesmo tempo pretendem condenar o que tornou possíveis suas façanhas, em especial, a crueldade desumana, na qual Maquiavel vê a chave para o sucesso e a glória de Aníbal. A saída do florentino consiste em aceitar sem nenhuma reserva que, se um príncipe estiver empenhado seriamente em manter seu Estado, terá de renunciar às exigências da virtude cristã.
Portanto, a diferença entre Maquiavel e seus contemporâneos não pode ser corretamente avaliada como a diferença entre uma visão moral da política e uma concepção da política que estaria divorciada da moralidade. A diferença reside em duas moralidades distintas, do que em última análise se deve fazer.
Autor: Mauricio Bueno Da Rosa
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