O NAZISMO E O PROCESSO DE DESUMANIZAÇÃO DOS JUDEUS



* Tereira parte do artigo "O processo de desumanização dos judeus como facilitador do Holocausto", elaborado como conclusão do curso de pós graduação em História Contemporânea no Centro Universitário Geraldo Di Biase. A tarefa de analisar as características do regime nazista está muito além do que este curto espaço permite. No entanto, parece essencial que alguns aspectos deste período da história alemã sejam apontados para contextualizar o nosso objeto. O nazismo é visto como a versão alemã do fascismo e incluído na tipologia de governo denominado totalitário, visto que se caracterizou como um regime que controlava os aspectos público e privado da sociedade, extrapolando a autoridade legítima de um Estado.1 O ambiente que o gestou foi peculiar: um governo democrático frágil, polarização entre a esquerda e a direita nacionalista, crise econômica e, por fim, a figura de um líder incorporando os símbolos nacionais. Muitos autores argumentam que uma das chaves do êxito, neste momento, do nazismo foi transformar um contexto completamente desanimador em trampolim para a construção de um mito da grandeza da nação. Ao forjar o Volks alemão - uma unidade cultural e sobretudo da raça ariana ? este movimento mascarou os conflitos internos e fez o país acreditar que faria parte de um Império de mil anos ? o II Reich.2 Uma boa parte do ideário nazista consistia no culto à personalidade do Füher. As referências que se fazia a Hitler passavam por "um líder sábio e onisciente.", "gênio" e chegava ao ponto de ser descrito como "um novo e mais poderoso Jesus Cristo" ou "o verdadeiro Espírito Santo". Ele próprio se considerava um salvador. Algumas mulheres escreviam pedindo para ter a honra de ter um filho dele.3 Já na década de 1930, por onde passava Hitler era acompanhado por uma multidão.4 O encontro com o Füher era uma experiência impactante para muitos. Um alto magistrado alemão, diante do carisma daquele pequeno austríaco, confessou: "Sobreveio, então, o grande arrepio de satisfação. Fitei-o nos olhos, ele fitou os meus e depois disto só tive um desejo, voltar para a minha casa, a fim de ficar só com aquela imensa impressão que me esmagava."5 Não foram poucos os que entraram no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães (NSDAP) deslumbrados pela figura de Hitler.6 Não obstante, qualquer menção sobre o nazismo que não leve em conta no seu cerne a questão racial se configura como incompleta. Para Hitler, este assunto não estava na pauta e sim era o grande objetivo. A fonte mais extensa sobre o ideário do Füher é o famoso Mein Kampf (Minha Luta), escrito em meados dos anos 1920, quando ele esteve preso após uma tentativa de golpe fracassada. A leitura atenta desta obra, somado às inúmeras manifestações de Hitler ao longo de sua vida, revelam que o seu antissemitismo era obsessivo.7 Os judeus passaram por um processo longo de assassinato. Na visão de Georges Bensoussan, antes mesmo da morte física, o nazismo primeiramente forçou os judeus a uma "morte civil", excluindo-os de funções públicas e dos meios culturais. Em seguida, com as Leis de Nuremberg8, segregou os judeus dos "verdadeiros" alemães, foi a "morte política". E depois, ainda imprimiu uma série de medidas que levaram à ruína os negócios e os empregos daquele povo, configurando uma "morte econômica".9 E não podemos esquecer que estes objetivos eram abertamente divulgados. Quem apoiou o nazismo devia saber que esta posição também implicava a exclusão dos judeus. Já em 1920, quando foi escrito o programa do partido, o item de número 4 dizia que "somente os membros do povo podem ser cidadãos do Estado. Só pode ser membro do povo aquele que possui sangue alemão (...) nenhum judeu, portanto, pode ser membro do povo."10 Uma intensa operação de propaganda antissemita foi desencadeada após a ascensão do nazismo. Jornais, livros (inclusive infantis),revistas e o cinema foram utilizados para reforçar a imagem negativa dos judeus. O aparato educacional foi direcionado para multiplicar esta rejeição.11 A luta contra o judaísmo ganhou contornos apocalípticos, uma batalha entre o bem e o mal. Hitler via o Diabo com um trejeito judeu e dizia que Cristo, ariano para os nazistas, foi o primeiro antissemita.12 Para o Füher, lutar contra o judaísmo era realizar obra de Deus.13 Apesar desta conotação religiosa, a questão racial, na expressão utilizada por Richard Overy, ganhou status de "biologia política", sendo necessário limpar o corpo da nação alemã das ameaças biológicas.14 Os nazistas se transformaram em verdadeiros "soldados biológicos". 15 Este foi o caminho que levou à desumanização dos judeus. Ao utilizar uma linguagem médica para justificar o ódio aos judeus, o nazismo pegava emprestado algumas noções da eugenia e conferia um caráter científico à questão judaica. A sociedade alemã era vista como o corpo e como tal sujeito à vários tipos de doenças. Para manter este organismo saudável era preciso eliminar o perigo do contágio diante de "parasitas", "bacilos", "vermes", "tumores cancerosos", "bactérias" etc. Nenhum grupo foi tão identificado com estes nomes do que os judeus.16 Nas palavras de Saul Friedlaender, "a identificação do judeu com a contaminação representou o móvel autêntico e fundamental para sua aniquilação."17 Não havia escolha: era preciso eliminá-los, pois como bem observou Bauman, mesmo fora da Alemanha "os judeus continuariam a produzir erosão e desintegração da lógica natural do universo.18 Para Hitler, o grande papel do Estado era a sua conservação racial.19 O judaísmo é visto como "fermento de decomposição dos povos e raças e, em sentido mais vasto, de ruína da cultura humana."20 No Mein Kampf, são inúmeras as referências ao judeu como seres desprovidos de humanidade. Seguindo a analogia com o corpo, ele diz: "quem abrisse o tumor haveria de encontrar, protegido contra as surpresas da luz, algum judeuzinho. Isso é tão fatal como a existência de vermes nos corpos putrefados." Em seguida, os judeus são culpados pela Peste Negra medieval e visto como seres "portadores de bacilos da pior espécie". Mais adiante, Hitler avança nesta visão ao dizer que o judeu "é e será sempre o parasita típico, um bicho, que, tal como um micróbio nocivo, se propaga cada vez mais, assim que se encontra em condições propícias (...) o povo, que o hospeda, vai se exterminando mais ou menos rapidamente." Ainda podemos ver outras referências como "uma verdadeira sanguessuga" e "piolheira judaica" nesta obra que se tornou um manual para os nazistas.21 Já durante a Segunda Guerra, o Füher afirmou que "o combate que travamos é da mesma natureza que o combate travado no século passado por Pasteur e por Koch."22 A noção de higiene racial não era difundida apenas pelo líder nazista. Vários outros membros importantes também faziam referência à necessidade da Alemanha fazer um favor ao mundo, como diria o Ministro da Propaganda Goebbels: "Nossa tarefa aqui é cirúrgica, incisões drásticas, senão algum dia a Europa perecerá da doença judia."23 Em outra oportunidade ele disse: "não podemos tolerar as bactérias, os vermes e a peste. O asseio e a higiene nos obrigam a torná-los inofensivos, exterminando-os."24 Pode-se até pensar que tais textos fazem parte da manipulação nazista. Mas os mesmos argumentos eram expostos no âmbito pessoal e não somente nos discursos públicos. O mesmo ministro fez registro em seus diários lembrando dos judeus como "eczema peçonhento no corpo de nossa nação enferma" e afirmou: "os judeus podem nos destruir se nós não nos defendermos contra eles. É uma luta de vida ou morte entre a raça ariana e o bacilo judeu."25 Outro ministro de Hitler, Himmler, teria dito que o antissemitismo é a mesma coisa que a eliminação de piolhos, desembaraçar-se das pulgas não é uma questão de filosofia, é uma questão de higiene."26 Talvez o mais radical dentre os oficiais nazistas tenha sido Julius Streicher, que publicava o jornal antissemita "Der Stümer" e escreveu o famoso livro infantil "O Cogumelo venenoso" (o judeu, evidentemente, era o personagem principal da obra). Ele dizia que "um único coito de um judeu e de uma ariana basta para envenenar o sangue desta." Proibições como a de aceitar leite de mães judias ou compartilhar fontes de água, até mesmo para tomar banho numa piscina, demonstravam o medo que se possuía de uma contaminação. Chegou-se à situações no mínimo bizarras, como de uma resolução na Baviera que proibia o cruzamento com gados comprados de judeus afim de evitar uma epidemia.27 O próprio Zyclon B, utilizado nas câmaras de gás, era um produto fabricado para matar insetos parasitas. Este processo de desumanização dos judeus explica, em parte, a ausência de bloqueios morais e éticos na utilização destes indivíduos como ratos de laboratório em experiências bizarras. Uma passagem do depoimento de Rudolf Höss, comandante de Auschwitz, durante o Tribunal de Nuremberg28, é salutar para compreendermos como funcionava a moral do nazista. Se defendendo da acusação de furtar pertences dos judeus que entravam naquele campo, Höss afirmou: "Mas isso teria sido contra os meus princípios (...) não teria sido honesto."29 Claro! Assassino de judeus com muito orgulho, mas ladrão não, aí já é demais. Retirar a humanidade dos judeus foi uma das tarefas fundamentais para o projeto de morte sistemática deste povo. E, ao que tudo parece, os nazistas tiveram sucesso nesta operação. Relatos de sobreviventes mostram como foi dura esta realidade. Uma delas, que não passou pelos Campos30, escreveu em suas memórias: "Durante a guerra aprendi uma verdade que geralmente preferimos não enunciar: que a coisa mais brutal da crueldade é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E que a luta mais árdua de todas é permanecer humano em condições desumanas."31 Em Auschwitz, os prisioneiros se transformavam em números, que eram tatuados em seus braços de modo semelhante ao que se faz com o gado. Militares alemães se referiam aos judeus como peças. Primo Levi, químico e judeu italiano, que passou por este campo e deixou obras memoráveis de suas experiências, conta a história de um Kapo32 que foi repreendido quando se referiu aos prisioneiros como "homens". Ele conta ainda que no Campo, "alimentar-se" se indicava com a palavra fressen, verbo que em bom alemão só se aplica aos animais. Levi continua falando que todas as humilhações (falta de higiene, nudez, alimentação) por quais eles passavam, mesmo que indiretamente os transformavam em bichos. 33 1 Interpretação baseada em JOHNSON, Allan G. Op. Cit., p.25. 2 STACKELBERG, Roderic. A Alemanha de Hitler. Origens, interpretações, legados. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2002, p.37. Cf KONDER, Leandro. Introdução ao Fascismo. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1977, p. 11. 3 Informações retiradas de STACKELBERG, Roderic. Op. Cit, p. 201; DAVIDSON, Eugene. A Alemanha no banco dos réus. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1970, p.396; OVERY, Richard. Os Ditadores: a Rússia de Stalin e a Alemanha de Hitler. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009, pp.44,138,147. 4 Certa vez, disse ao colega e ministro Speer: "Até agora, só um alemão foi recebido assim antes de mim: Lutero." Ver SPEER, Albert. Por dentro do III Reich: os anos de glória. Rio de Janeiro: Editora artenova, 1971, p. 66. 5 CARVALHO, Pedro Conceição. O Fascismo e o Nazismo. CIARI ? Centro de Investigação e Análise em Relações Internacionais. Universidade Lusófona. 2007. Disponível em: Acessado em: 20/10/2010. 6 Albert Speer escreveu em seu livro: "Não escolhi o NSDAP e sim aproximei-me de Hitler, cuja figura me impressionou (...) Hitler apoderou-se de mim, antes de eu ter compreendido o alcance do seu movimento." SPEER, Albert. Op. Cit., p. 21. 7 Fala-se em "teorias psicológicas" para explicar esta espécie de neurose de Hitler. Uma delas diz "que ele culpava o médico judeu de sua mãe por ela não conseguir se recuperar do câncer." Evidentemente, por falta de fontes, seguimos ignorando esta hipótese. Vide STACKELBERG, Roderic. Op. Cit., p. 128. 8 Também conhecida como "Lei de proteção do Sangue e da Honra alemã", a principal medida foi a proibição dos casamentos mistos, bem como qualquer relacionamento entre alemães e judeus. Para uma visão completa das leis antissemitas no período nazista, ver SCHILLING, Voltaire. A política da morte do Nazismo. In: MILMAN, Luis; VIZENTINI, Paulo Fagundes (orgs). Op. Cit. Após o maior progrom da Alemanha nazista ? A Noite dos Cristais -, 3 homens que estupraram moças judias foram presos, não pela violência em si mas por ter se contaminado com a sub-raça judia. Vide OVERY, Richard. Op. Cit., p. 168. 9 BENSOUSSAN, Georges. História da Shoah. Biblioteca Virtual de literatura universal em galego, 2005. Disponível em: Acessado em: 23/12/2010. 10 MARQUES, Adhemar; BERUTTI, Flávio; FARIA, Ricardo. História Contemporânea através de textos. São Paulo: Contexto, 1994, p. 150. 11 No Brasil, o maior especialista desta propaganda audiovisual nazista é Wagner Pinheiro Pereira. Vide Nazismo: Política de massas e ideologia. In: Nunca Mais. Educando para a cidadania e a democracia. Op. Cit. e O Terceiro Reich em cena: história e memória audiovisual do nazismo e do Holocausto. In: LEWIN, Helena (coord.). Op. Cit. 12 Todas as ligações religiosas do nazismo foram brilhantemente estudadas em STEIGMANN-GALL, Richard. O Santo Reich: Concepções Nazistas do Cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Ed., 2004. 13 HITLER, Adolf. Minha Luta. São Paulo: Centauro, 2001, p. 53. 14 OVERY, Richard. Op. Cit., p. 194. 15 CYTRYNOWICZ, Roney. As formas de lembrar e a história do Holocausto. In: MILMAN, Luis; VIZENTINI, Paulo Fagundes (orgs). Neonazismo, Negacionismo e Extremismo Político. Porto Alegre: Editora da Universidade ? UFRGS, 2000. Disponível em: . Acesso em: 23/09/2010. 16 OVERY, Richard. Op. Cit., p. 262. 17 FRIEDLAENDER, Saul. O significado Histórico do Holocausto. In: Holocausto: um tema em debate. Análise Shalom. (n.3). São Paulo, Editora Shalom, 1979, p. 244. 18 BAUMAN, Zygmunt. Op. Cit., p. 90. 19 HITLER, Adolf. Op. Cit., pp. 75; 300; 307. 20 Idem Ibidem, p. 334. 21 O livro de Hitler de modo a torná-lo acessível a todos. Chegou a vender milhões de exemplares e era distribuído aos casais alemães de casamento marcado. As referências citadas podem ser encontradas em Idem Ibidem, pp. 47-48; 226; 230; 297. 22 Apud POLIAKOV, Leon. Op. Cit., p. 305. 23 OVERY, Richard. Op. Cit., p. 263. 24 FONTETTE, François de. Op. Cit., p.84. 25 GOLDHAGEN, Erich. Pragmatismo, Função e Fé no anti-semitismo nazista. In: Holocausto: um tema em debate. Op. Cit., p. 230. 26 Apud Holocausto: um tema em debate. Op. Cit., pp. 25-26. 27 FONTETTE, François de. Op. Cit., pp.82; 91. 28 Após o fim da Segunda Guerra, um Tribunal Internacional se reuniu e julgou dezenas de nazistas e seus colaboradores. Recebeu este nome por se reunir na cidade alemã de Nuremberg. 29 OVERY, Richard. Op. Cit., p. 313. 30 Sempre utilizamos a palavra "Campo" como modelo genérico, uma vez que existiam inúmeros tipos. Uma especialista neste assunto é Ania Cavalcante. Vide Os Campos de Concentração ? Konzentrationslager ? KZ: fundamento do sistema nazista. In: Nunca Mais. Educando para a cidadania e a democracia. Op. Cit. e O universo concentracionário nazista de 1933 a 1945 e a implementação da "Solução Final da Questão Judaica, 1941-1945. Aula do curso "Panorama Histórico do Holocausto", USP, agosto de 2008. Disponível em: Acessado em: 29/10/2010. 31 BAUMAN, Janina. O Inverno na Manhã: uma jovem no gueto de Varsóvia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2005, p. 8. 32 Prisioneiros que trabalhavam para os nazistas dentro dos Campos. 33 LEVI, Primo. É Isto um Homem? Rio de Janeiro: Rocco, 1988, pp. 14; 25; e, do mesmo autor, Os Afogados e os Sobreviventes. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990, pp. 53-54; 58.
Autor: Luiz Eduardo Farias


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