Coração Amargurado



Coração Amargurado
O dia amanheceu claro. Sentado num banco à beira-mar, aproveitando por recomendação médica, o sol da manhã, um ancião, vestindo uma camisa abotoada nas mangas, olhava através das grossas lentes dos óculos, o horizonte que se perdia na imensidão do mar. Acompanhava com o olhar o lento mover de um minúsculo barquinho de pesca, que se perdia por entre as ondas. Sua face sem emoção denunciava que sua alma padecia de um tédio profundo e incurável.
Aquelas manhãs de primavera à beira-mar, ensolaradas e cheias de promessa de vida, funcionavam como um sutil antídoto, um contraponto de indulgencia, à desolação que era sua vida interior. A luz do sol refletida pelo azul intenso do céu, envolvida pela suave brisa que vinha do mar, atravessava as brechas do seu ser e mergulhava na palidez da sua alma, aquecendo e iluminando por breves instantes, a friagem e desolação da sua consciência... Contudo, esta, feito um morcego surpreendido pela intensidade de uma rajada de sol forte, reagia afundando-se ainda mais em si mesma, descendo para as profundezas dos seus abismos onde luz alguma é capaz de penetrar e iluminar, tal a densidade das trevas e culpas que reinam ali... E lá, na escuridão mais absoluta e abominável, ele passava os seus dias, e também as suas noites...
Segurando sobre as pernas cruzadas, marcando a página com um dedo, ele mantinha fechado um velho livro de poesias. De tempos em tempos ele desviava os olhos do barquinho, abria o livro e lia um ou outro verso, depois fechava novamente o livro e tornava olhar na direção do barco, a alma cheia dos mesmos sonhos, vergonhas e recordações de sempre... Não havia novidades nem fora nem dentro da alma. O azul suave do amanhecer, e ainda mais a profundidade lírica dos versos, ao invés de iluminar a sua alma, só fazia desnudar e revelar suas vergonhas e arrependimentos mais secretos; como no dizer de Byron: "Assim raia o passado, à luz de tanto dia...". Talvez essa fosse a única razão dele se sentar ali, de frente para o sol da manhã, ruminar ainda uma vez mais os arrependimentos do seu passado...
O corpo envelhecia, mas a alma permanecia no mesmo vazio e estagnação de sempre, e esse vazio e estagnação, ele melhor o sentia nas primeiras horas da manhã, quando tudo ao redor dele parecia ser mais feliz e mais cheio de vida. Estar ali era uma forma de ascese, um tipo de expiação, uma maneira pavloviana de ser constantemente chicoteado por seus arrependimentos e culpas imperdoáveis do passado... Não se pode negar que encontrava certo alívio naquele sofrer de novo as dores das saudades perdidas nos recessos da alma... Eram suas únicas alegrias, aquelas dores. Quase nada restava ainda nele do homem que ele fora um dia. Nas profundezas da sua alma, o dia de hoje era exatamente igual ao dia de ontem e ao de antes de ontem. Sua alma era feita de água suja e estagnada... Uma dor asfixiante no peito, a única novidade. Novidade no sentido de que aumentara de intensidade, porque aquela dor já estava alojada ali fazia uns quarenta anos.
Deitado a seus pés estava um cão vira-latas. Não era dele, o cão. Apenas um fazia companhia ao outro. Ele respirou fundo. Então mais uma primavera havia chegado? Mais um ano havia se passado? Era engraçado, enquanto passavam os anos escoavam com uma lentidão insuportável, as horas carregavam o peso dos dias, os dias viravam meses, os meses anos, e os anos eram feitos de eternidade... Mas agora que a vida se aproximava do seu fim, o tempo parecia ter voado e passado num piscar de olhos. De fato, os anos voaram. Ele estava agora com quase oitenta anos. Oitenta anos! Exclamou. Oitenta anos! A face até então apática, repuxou e deu lugar a profundas rugas de uma agonia sem fim. Então é assim que se acaba uma vida? Balançou a cabeça, desgostoso do seu destino. Ele sabia que tudo podia ter sido diferente, se não tivesse desertado do amor, quando o amor o chamou, mas agora já era tarde demais para saber essas coisas, a vida já escoava rápido para seus derradeiros instantes.
Não era um velho simpático nem falante, desses que as crianças gostam... Não havia qualquer traço de beleza, espiritualidade ou gentileza nele. Era um velho, só isso. Detestava crianças, e as crianças por sua vez tinham pavor dele. Ninguém gostava dele, e, ele retribuía a gentileza não gostando de ninguém também. Coisas de velho rabugento. Não sorria nunca, nem respondia quando alguém lhe dava um bom dia. Vivia como se não existisse mais ninguém no mundo... Jamais pedia ajuda a quem quer que fosse. Só muito raramente estendia a mão a alguém. Era tido pelos vizinhos como um homem estranho, e de fato era...
Contudo, ainda que enxameado de falsas memórias, possuía dentro de si um mundo de recordações. E era nesse reino interior que ele passava a maior parte do seu tempo... Às vezes, movido por essas recordações longínquas, ele fechava os olhos e passava horas sonhando acordado, às vezes ria, muitas vezes chorava... E seus dias duravam uma eternidade, e suas noites, cada uma delas, tinha a duração da imortalidade... Houve um tempo que gostava de escrever, sobretudo poesia, mas agora não escrevia mais, perdera o gosto... Na verdade perdera sua musa inspiradora, mas isso já fazia muito, muito tempo.
Ah, que arrependimentos ferviam em sua alma! Tivera a mulher da sua vida em suas mãos, e a deixara escapar... Covarde! Mil juras de amor escapavam fácil de sua boca, mas assim que escureceu, assim que os inimigos sitiaram a cidade da sua alma, antes que o calor da batalha arrebentasse, sua alma se revelou fraca e despreparada para o amor, e ele fugiu em desabalada correria, deixando para trás, entregue só, nas mãos dos inimigos, aquela a quem jurara amor eterno. Oh Deus, como ele pode ser tão baixo!
Foi a quase quarenta anos que tudo acontecera, e terminara... Pela clepsidra da vida, escoara quarenta anos num piscar de olhos. Mas os arrependimentos fazem cada ano valer por dez mil. Num dia, à meia-noite, um pouco mais de madrugada, talvez, no mais improvável dos lugares, ele a conhecera. Um anjo, linda, inteligente, incomparável, esplêndida, divina... Um perene e suave raio de luz na escuridão. Um jardim florido nas manhãs de uma eterna primavera. Um rio de águas mansas e transparentes a correr para o mar, onde ele mergulhou de roupa e tudo, tal a urgência do mergulho.
Ah, ainda agora, tantos anos depois, ele conservava frescas as memórias daqueles dias de incontáveis epifanias, quando as profundezas do seu espírito lhe foram abertas e reveladas... Dias em que viveu mais no céu que na terra. Que coisa misteriosa e memorável é o amor. Que magia sublime! Do nada, deu-se um encontro místico de uma alma perdida com outra alma perdida, e os dois, ainda que separados pelo abismo de infinitas distâncias e impossibilidades, se fizeram um. Ele viveu pela primeira vez na vida, depois nunca mais...
Do encontro das águas de dois rios chamado solidão nasceu a felicidade. Um olhou dentro da alma do outro e viu a si mesmo como que refletido no mais límpido dos espelhos. Rir, dançar, cantar, correr, sonhar, pular e voar pelo limites do céu ficou tão fácil para eles. Eles viviam nas nuvens. Ah, como a vida é muito mais fácil e bela para quem ama.
Sabe aquelas histórias de almas gêmeas, de amores à primeira vista, de sinos tocando e estrelas brilhando, e de labaredas do sol que descem sobre as almas no meio da noite, e as incendeiam de surpresa, e as embriagam de paixão, e faz da vida uma coisa semelhante a essas árvores que a gente vê no meio da rua, na época do natal, cobertas de lâmpadas coloridas que piscam sem parar no meio da madrugada fria e escura? Pois é, são verdadeiras... Aconteceu com ele.
De repente a alma era uma orquestra sinfônica tocando as composições de Vivaldi. De repente a alma era pura satisfação diante da epifania dos nenúfares de Monet. De repente a alma era uma estrela na noite estrelada de Van Gogh... Em pleno inverno deu-se a primavera da alma, e ela floresceu, e suas flores pareciam labaredas de estrelas cadentes, e seu orvalho o mais doce e puro mel; e a pele, antes pálida, agora brilhava como que recoberta pelo ouro mais puro. E os olhos... Ah, os olhos, esses tinham a pureza e a transparência do cristal...
Um encontro sagrado e espiritualmente numinoso, como sagrado e numinoso é a chuva que cai no deserto e faz florir os jardins da alma... Num instante, uma chama de fogo consumidor se ascendeu dentro dele, e o coração de pedra derreteu formando caudalosos rios de lava incandescente, que fizeram ferver o sangue, até que as profundezas do seu ser entraram em ebulição, e seus olhos começaram a brilhar como uma noite de festa, iluminada por flamas caleidoscópicas de fogos de artifício...
Oh, o azul do céu tornou-se mais azul, as rosas do jardim eram brasas e chama de fogo carmesim, lâmpadas na escuridão, reflexo das brilhantes estrelas do céu profundo acendendo dentro do peito a chama da vida, até então apagada. Todas as coisas incandesceram e tudo na terra refletia vividamente as coisas do céu... E o mundo, dentro e fora de sua alma, ardia em suave luminescência e fosforescência. A vida era macia e suave como o seio de uma mulher jovem. E na loucura e no calor da magia do momento, não havia tempo para pensamentos e arrependimentos, ou tormentos... Dois corpos se fundiam em um, sob a luz do luar à beira-mar. Hoje, olhando para os anos perdidos, ele sabe que aquilo era felicidade, mas agora é tarde demais para saber essas coisas...
***
O som das ondas arrebentando na praia hipnotizava a alma... A cabeça curvada sobre o peito, olhos cerrados, como se dormisse; ele permanecia completamente imóvel... Finalmente um riso tímido ameaçou escapar da sua boca de lábios enrugados. É que ele se lembrou de que certa vez, muito antes de se aposentar - professor de Filosofia -, uma aluna lhe perguntou num de repente: Professor, o que é isso, a felicidade? E ele respondeu também num de repente, fazendo gestos com as mãos, como se declamasse um poema: Felicidade são fagulhas de relâmpagos misturadas com perfume de rosas brancas e vermelhas, feito a brisa suave do mar, num amanhecer de primavera.
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Claro que aquilo que ele sentia era felicidade. Surpreendida pela alegria inesperada daquele amor impossível, a sua alma incandescia cada vez mais, e todo seu ser entrou num estranho e permanente estado de erupção de alegria e leveza.... Pelos corredores da faculdade ele passava cantando e dançando...
Todos olhavam boquiabertos. O sisudo e excêntrico homem de quarenta anos foi subitamente consumido pelo fogo do amor, e metamorfoseado num vigoroso rapaz de no máximo dezoito, vinte anos, vinte e três no máximo. De um instante para outro, o estranho, inquieto e mal educado professor de filosofia, perdera sua rabugice e podia ser visto ora dançando uma música imaginaria, ora saltitando ao caminhar, ora rindo e falando sozinho... Quem o via assim, em estado de graça, podia sem medo dizer que dentro dele a sua alma era feita de brilhantes e quentes faíscas do sol, tal era a termoluminescência da sua contagiante alegria. Ele ardia feito fogo na floresta. E o que é amor, professor? Perguntou outra aluna. E ele respondeu sem titubear: É uma sensação agradável, maravilhosa, plena, divina, acompanhada do medo de perder. Depois pensou melhor, franziu o cenho, e corrigiu: O amor é a chama de uma vela, que bruxuleia diante de uma corrente de ar frio.
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Os boatos corriam e aumentavam... De todo lugar as pessoas vinham ver se era verdade mesmo, que o inveterado ateu do amor tinha finalmente sido subjugado pelos encantos de Afrodite... De fato era verdade. O homem agora era outro. Não demorou pára que todos compreendessem as razões dessa metamorfose. A alma inacessível e irascível tornou-se mansa e acessível.
As pessoas passavam e olhavam para aquele homem que de repente ficara misteriosamente numinoso e agradável, sorriam e perguntavam: O que foi? Que cara boa é essa? E ele ria, e o seu sorriso era uma luz que contagiava todo mundo. E elas balançavam a cabeça, e rido iam dizendo: Ta amando, ta amando. Depois perguntavam: Quem é ela? E ele ria de novo. Eis que ali estava um homem puro e extremamente contagiante. Alguns colegas chegaram mesmo a lhe dar os parabéns... Uma vez apenas ele teve um pressentimento ruim. Lembrou-se de dois passos da vida de Jesus que o deixaram pensativo por alguns instantes. Como pode que as mesmas pessoas que gritava para o Cristo, enquanto ele entrava em Jerusalém: Hosana ao filho de Davi! Bendito o que vem em nome do Senhor! Fossem as mesmas que poucos dias depois gritassem: Crucifica-o! Crucifica-o!
Ele estremeceu. Definitivamente o povo não merecia confiança. Daquele dia em diante a apreensão começou a entrar em sua vida, e os dias transcorriam ora com a rapidez dos minutos e segundos, ora com uma moleza insuportável... Foi ali, naquele instante que ele começou a temer. Daquele dia em diante andava sempre com a certeza crescente de que não deveria ir tão longe... Uma noite sonhou que estava diante de um abismo de quarenta metros de largura por quase dezoito metros de profundidade, e acordou apavorado, pressentindo que lá longe no horizonte azul, começava formar uma horrível e devastadora tempestade.
No rastro de Ágape e Eros, vem babando e rilhando os dentes, foice na mão, lábios jamais beijados destilando ameaças para tudo que é lado, thanatos e Neikos, a morte e o ódio. A mão que afaga hoje, amanhã dará um soco na cara; a polenta com queijo hoje prometida, amanhã será negada, e as boas palavras de agora, dias depois serão tornadas em palavrões e ameaças de morte... Que se dane! Ele disse para si mesmo. Tudo normal, tudo previsível. É da natureza dos cães balançarem o rabo e rosnar... Que se dane! Amor fati. A vida não para porque um cão rosna... Amor fati.
De fato, a vida não pára quando um cão rosna, mas pára quando um homem age como um cão e coloca o rabo entre as pernas e foge ganindo daquilo que é sua mais importante missão na vida, ser homem.
De longe ele ficou um tempo olhando aquelas pessoas que lhe sorriam; e o velho homem renasceu nele. No fundo da própria alma, ele foi trancado num quarto escuro e sem ventilação, e foi sentado à força num banco de réu, e o ar se encheu de vozes, gargalhadas, guizos e sibilações de serpentes. Os acusadores se enroscavam entre si e se estapeavam uns aos outros, para ver quem iria acusar primeiro. Finalmente as acusações choveram de todos os lados. Bocas desdentadas que esguichavam saliva e babavam, falavam e rilhavam sem parar. Olhos injetados de sangue foram postos sobre ele, e os dedos foram apontados sem piedade. (Como se ele necessitasse da piedade de alguém).
Acusaram-no de ser um debochado servo da lascívia, um obsceno discípulo do Marquês de Sade. Ele reagiu com brutalidade e escárnio às acusações que lhe pinchavam. Depois se aquietou e não disse mais anda. Idiotas! Querem me acusar de ser feliz? Acusam-me de dissimulação? Ora, vão para o inferno! Ouviram bem? Acaso são surdos? Olhem para mim, aqui nos meus olhos, quando falo com vocês... Porque não me olham nos olhos? Ah, quer saber... Que se dane! Vão para o inferno! Mas se querem mesmo me acusar, deixe-me facilitar as coisas para vocês. Deixe-me mastigar a comida e vomitar a papinha em vossas bocas desdentadas. Venha! Acheguem-se mais, raça de cães, filhos de Neikos, discípulos de thanatos. Vermes! Querem roer as raízes da árvore da vida? Que roam então. Quantas vidas vocês já mataram, além da vossa própria vida? Acusam-me? Certo, certo, é isso que querem ouvir, ok, sou culpado de tudo que me acusam. Assumo as conseqüências dos meus atos. Mas quais foram os meus atos?... Qual é a minha pena? Qual a minha condenação? Quer seja grande, quer seja pequena, eu a cumprirei na íntegra. Gente nojenta! Acabaram? Assumo tudo. Isso mesmo, eu agi de caso pensado... Sou um crápula! Satisfeitos? Estão felizes agora? Ok. Podemos já seguir nossas vidas? Mas que vida temos ainda para seguir depois disso? Mas enfim, qual é o meu crime? Qual é a minha pena? Digam!!
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Ainda hoje ele via a face dela. Não envelhecerá um nada nesses quase quarenta anos. Era ainda a mesma menina-mulher que o encantara tanto com sua beleza exterior, quanto, ou, sobretudo, com sua delicada beleza interior. Ah, que inteligência sutil, ágil e incomparável! Que prodígio! Certamente que ela não era apenas humana... Tinha também alguma coisa de anjo... Alguma coisa de deusa. Seus longos cabelos cor de ouro brilham, reluzem e seduziam... Sua pele branca e sedosa irradiava uma luz mais brilhante e suave que a luz das estrelas... Havia nela muito daquela ingenuidade que nós todos já perdemos, faz tempo. Uma menina desvairada, senhora dos seus próprios caminhos, perdida, libertina, inconseqüente, devassa, vulgar, voluptuosa, impudica, cruelmente impudica, docemente impudica, deliciosamente impudica, contudo, pura, divinamente pura, santificada na inocência da perversidade e da solidão... Uma poetisa de incomparável talento, que conhece e fala fluentemente a língua dos anjos. Adjetivos quiméricos, esses, todos eles. Uma tentação tenra e impossível de ser resistida. A Serpente lhe entregou nas mãos uma maçã vermelha e suculenta, pronta para ser mordida... Ninguém mais a conhecia tão bem como ele a conhecia. Raça de víboras! Do que o acusam?
Deus sabe que ele resistiu o quando pode, mas por fim, cedeu... Quem não cederia? Aquele que resiste feche a boca e não acuse, pois só resiste porque seu desejo e tentação são fracos demais para serem resistidos... Até os anjos caem quando a tentação é forte demais. A imaginação cedeu aos maus (bons) pensamentos, e ele caiu... Oh, como foi doce e suave a sua queda. Cairia ainda mil vezes, não fosse a desabalada fúria dos filhos de neikos, que veio sobre ele com a força de uma enxurrada de pedras e lama. Viveu intensamente por alguns instantes os inigualáveis prazeres de sua queda, depois morreu (assassinado), para nunca mais renascer. Eu já disse uma vez, mas não custa repetir: Sabem aquela história de alma gêmea? É verdadeira mesmo.
Às vezes, no meio da madrugada ela lhe aparecia em sonhos, ora era anjo, ora era súcubo (ah, que belo súcubo ela era), e no calor do sonho ele acordava com os olhos marejados de lágrimas. A saudade ainda hoje lhe arrebentava o coração e esfarelava os ossos. Outras vezes, do nada uma lembrança lhe chegava de surpresa à superfície da mente, e imediatamente seus olhos brilhavam de contentamento, e o canto de sua boca se esticava num sorriso discreto e sereno...
Que fim ela terá tido? Casou? Teve filhos, netos e bisnetos? Morreu? Matou-se? Overdose? Forca? Escreve ainda? Vive ainda? Virou uma velha feia e rabugenta? Perdeu-se de vez naquela sua estranha e divina solidão intelectual? Enfurnou-se num convento e virou freira? Crê em Deus? Será que ela o reconheceria agora se o visse caminhando a passos trôpegos pelo meio da rua? Será que ainda o amaria? Ainda lhe devia um abraço forte e demorado... Outras vezes meio que sem querer, escapava dos seus lábios um risinho triste, e ele balançava a cabeça para os lados.... Não, ela não o reconheceria, se o visse passar embaixo da janela dela, nem ele a reconheceria...
***
O sol caminhava rápido para o meio do céu e a manhã de primavera já tinha se diluído quase toda no calor de mais um daqueles terríveis dias ensolarados. Ele guardou o livro no bolso, firmou-se na bengala, levantou-se e começou a retornar para casa. Caminhava com passos curtos e lerdos.... Gotas frias de suor lhe banhavam a face carcomida pelo tempo.
O cão ergueu as orelhas e ficou olhando seu amigo ir embora. O pobre cão parecia ser tão velho e solitário quanto ele. A aparência dos dois era tão decrépita que eles pareciam existir desde o princípio do mundo... Era um cão magro, as costelas aparecendo de fome, as orelhas infestadas de bicheiras, onde bandos indomáveis de moscas e mosquitos não paravam de pousar e lamber as secreções das feridas... Um cão com cheiro de cão que nunca tomou banho, daqueles que as pessoas, por puro divertimento, jogam pedras ao ver passar. Um cão escadeirado pelas dores que o destino lhe reservara... De tempos em tempos ele sacudia a cabeça numa tentativa desesperada, porém inútil, para se livrar das insaciáveis moscas que lhe lambiam as feridas. Às vezes num golpe de sorte, num movimento rápido da cabeça, abocanhava uma ou outra mosca, mas não engolia, ficava raspando a línguas nos dentes até se livrar daquilo. Ao ver seu "dono" ir embora, incapaz de suportar a solidão da sua vida de cão, o bicho se levantou, ganiu, e foi de pouco em pouco seguindo de pertos os passos trôpegos do velho... Ambos andavam com dificuldade, respirava com dificuldade e viviam com dificuldade. À sua maneira, aquele velho era também um cão sem dono...
Curvado pelo peso da idade, o velho andava em silêncio meditativo, mas dentro da alma dele, florescia um mundo inteiro de recordações. Ele recordava as inúmeras noites que virara a madrugada namorando ela... Arrepiava ainda a pele envelhecida ao se lembrar da maneira sutil com que ela foi chegando de mansinho, aninhando em seu colo, e lhe declarando seu amor... Que ousada!
Ah, ele se lembrava de tudo, como se fosse ontem... Na verdade seu corpo seguira o inexorável curso ditado pelo tempo, mas sua alma ainda estava lá, voluntariamente presa àqueles dias de epifania e numinosidade. Seu corpo vergava sob o peso de muitas décadas, mas sua alma ainda era jovem, psicoticamente, desgraçadamente e miseravelmente, jovem... O fogo que animava o corpo, tal qual o fogo de uma vela consumida, já ia se findando para sempre. Em breve a vida do corpo apagaria sem possibilidades de ser reacendida. Mas o fogo sagrado que naqueles dias se ascendera em sua alma, ainda era o mesmo fogo. Embaixo daquela carcaça corroída pelo tempo e pela doença, sua alma ainda estava em chamas... Velho safado.
Parou em frente ao portão, o pobre cão abaixou as orelhas feridas como que intuindo que sua jornada matinal ao lado do seu amigo findara ali... Contudo, o velho abriu o portão e convidou o miserável animal a entrar. O cão hesitou por um instante, mas logo tomou coragem e entrou... Caminharam juntos através de um jardim vazio, até a porta da casa, onde ele disse ao cão: Voce fica aqui. O cão obedeceu, rodou sobre si mesmo, e deitou no velho e sujo capacho da porta... Algum tempo depois ele voltou com uma tigela de sobras e deu ao cão, que morto de fome, devorou tudo num instante, mostrando os dentes, de tanta alegria.
Então ela se tornara poetisa? Sim, tornara-se o que nascera para ser. Assim como é natural aos pássaros voarem, os peixes nadarem e as cerejeiras darem cerejas... Assim como é natural a natureza florescer na primavera, nada era mais natural para ela que ser poetisa. Ele sentou no sofá e abriu novamente o livro. Era dela. Um livro dela, escrito por ela, palavrinha por palavrinha dela... Um livro de poesias que ele carregava para baixo e para cima, como se fosse um livro sagrado, e de fato era... Era a única lembrança real que ele tinha da alma dela. Não era um livro, era um diálogo. Um dia, passeando displicentemente, pelos corredores de uma livraria, dera de cara com o livro. O coração pulsou forte, o sangue encheu as veias e estufou as artérias. Comprou o livro e nunca mais o largou. Através das poesias escritas ali, ele falava com ela, e ela falava com ele... Namorava o livro, e era como se namorasse ela. Fechou o livro e riu. É que se lembrou que uma vez um amigo lhe pedira para contar a história desse estranho e miserável amor. Ele recusou. Porque contaria? Olhou para o amigo e disse: Só disso eu me lembro; afora isso não me lembro de mais nada. Um fogo acendeu em mim, só isso que posso dizer. Como acendeu, porque acendeu? Não sei dizer. E se soubesse não diria. Quem me acreditaria se eu dissesse? Foi ontem que tudo aconteceu, mas parece que foi há séculos, tal a saudade que sinto daqueles dias repletos de epifania... Depois de dizer essas palavras, ele abaixou a cabeça reverente, os olhos marejados, e nunca mais tocou no assunto.
Às vezes, se pegava falando sozinho: Foi assim que tudo começou... Começou? Mas que digo? Acaso essas centelhas da eternidade têm começo, meio e fim? Depois silenciava para si mesmo, e punha-se a soluçar e chorar. Às vezes a angustia era tanta que ele puxava os cabelos, beliscava os braços e dava pequenos socos na cabeça, ao mesmo tempo em que repetia sem parar: Burro! Burro! Não devia ter aceitado a cruz com tanta resignação, devia ter rosnado também, devia ter mostrado os dentes, enfrentado, ameaçado, apontado o dedo na cara dos acusadores, cuspido se fosse o caso de cuspir....
***
Finalmente a luz iluminou a escuridão, e a "verdade" foi revelada. (Mas o que é a verdade?) O Professor de filosofia estava de caso com uma aluna, e ela era menor. Oh horror! Oh escândalo! As chibatadas comeram deliciosamente a carne devassa... Lúcifer! Monstro! Cão dissimulado! Vamos te denunciar para a polícia! Vamos te matar! Vamos beber seu sangue e comer a sua carne! Vamos te linchar! Belzebu! E não adianta fugir que te caçamos até num oco de árvore! Fora! Xô! Passa! Sai daqui!Não pode mais dar aulas aqui! Ela é menor, faz dezoito na semana que vem! Não, faz dezoito amanhã! Velho devasso! Porco!Filho de uma égua!Filho de uma cadela! Vamos te matar!
Os rosnados se multiplicavam pelos corredores. Então ela era menor? O que eles sabiam dela? Não, não era. Eles eram. Eram menores de alma e de espírito. Ela era um gigante, eles uns anões mal nutridos. Ele os conhecia a todos, sabia dos seus podres, conhecia um a um os seus casinhos. Não eram eles que o procuravam desesperados no meio da noite para aliviar a alma a um passo do suicídio? Ah, ele os conhecia muito bem. Santinhos do pau oco. Devassos! Sim, isso mesmo: Devassos! Que segredos eles escondiam. Ele nunca tocara um dedo na moça, conversava com ela apenas. Então não havia paixão? Sim, havia, mas platônica, porém furiosa, terrivelmente furiosa. Ele era um filosofo platônico, esqueceram? Mas ele sabia dos casos deles, nada platônicos, completamente dionisíacos, repletos de orgias, vícios e doenças do corpo e da alma. Todos doentes, e quer saber? Mereciam cada uma de suas doenças. Gente vulgar, suja, que jurava amor aqui e traia ali. Devasso, ele? Dissimulado? Era uma piada? Tivera duas mulheres em toda sua vida, as duas levadas pela inclemência e violência do destino. Então agora o pai da pequena Sofia era um devasso? Mas que loucura sem pé nem cabeça era essa? Fosse ele um deles, teria voado na garganta deles e os esganado ali mesmo. Cretinos! Falam do que não sabem. Ele vivia na mais completa solidão e escuridão. Quem desses que o acusavam já o tinham visto em qualquer outro lugar, que não a sala de aula? Quem deles suportaria por um minuto as dores, as lembranças, e as privações sensoriais que ele suportava anos a fio? Não raciocinais?! Devasso! Lúcifer! Ele sorriu ao passar no meio da turba que latia, rosnava e gritava sem parar: Crucifica-o! Crucifica-o! Crucifica-o! Dias depois ele foi delicadamente convidado a se retirar da faculdade... Todos se afastaram, e ele ficou lá, caído à margem do deserto, com um bando de urubus sobrevoando sua vida entregue às traças. Tudo acontece como tem que acontecer, e a sociedade não descansa enquanto não encontra um bode expiatório dos seus pecados ocultos. A vida segue. Amor fati. Quiseram expulsar o demônio, tornando-se eles mesmos demônios... Muito inteligente isso, muito inteligente. Atiraram no que viram, acertaram no que não viram. Muito inteligente. Quando o demônio vem, vem direto naquilo que voce ama. Então num instante ele foi lançado para um abismo além da redenção... Mas sorria. Quem poderia agora sarar a ferida tediosa que se abriu na alma dele?
***
Ah, o amor... Dele só falamos para não ficarmos calados. Não é prático querer definir o amor, prático é vive-lo até o esgotamento total das forças do corpo e da alma. É lindo morrer de amor, mais lindo ainda é viver dele... Mas ele, pobre miserável, jamais fora um homem prático. Dentro de si a razão digladiava com o coração, e a razão era um leão que devorou o coração, e depois fugiu feito cão sem dono, orelhas baixas e rabo entre as pernas... Pobre do leão que se deixa metamorfosear num cão vira-latas, pois essa maldição jamais será desfeita, de modo que o leão será cão para sempre.
O amor é como a morte, acontece de repente, de improviso. O ordinário filho de Afrodite, fingindo-se de anjinho loiro e inofensivo ? que ninguém nunca se esqueça que o demônio também é um anjo ? vem e crava sua flecha envenenada de paixão no coração de quem encontra pela frente... Não faz considerações, não mede as conseqüências, não olha idades, distâncias, ou desníveis sociais, raciais, intelectuais ou espirituais. Não faz perguntas, simplesmente crava a flecha no coração do outro, e um mundo de coisas inexplicáveis e extraordinárias começa acontecer na alma dos assim chamados pelo amor... Ah, se as coisas do coração pudessem ser explicadas! Não podem... Se pudesse, poderiam também ser profetizadas e evitadas, mas não podem, por isso mesmo se chamam coisas do coração. O reino do amor não se rege pelas leis desse mundo... O amor pertence ao reino do imponderável e do indizível.
Um dia o telefone toca e alguém diz: Olha sabe fulano, pois é, morreu. Morreu? Como assim, morreu? Era tão jovem, tão cheio de saúde e futuro. Pois é, morreu. E a gente fica perplexo, queixo caído... Mas nunca imagina que aquilo poderia acontecer com a gente, mas pode. Outro dia alguém torna ligar e diz: Lembra de fulano? Pois é, vai casar. Como assim vai casar? Sei lá. Apaixonou-se. Como assim, apaixonou-se? Sei lá, só sei que vai casar... Eu hein, entendi nada. O casamento será no mês que vem? No mês que vem? Ta louco? Quem é ele? Quem é ela? Não sei, só sei que vai casar. Casar?! Pois é, foi paixão à primeira vista. E a gente ri assombrado do absurdo, achando ridícula essa coisa de paixão à primeira vista. Depois nos deitamos e dormimos o sono dos justos, sem sequer imaginar que a morte e a paixão bem que pode acontecer com qualquer um, a qualquer hora do dia ou da noite... Até que um dia acontece com nós! Assim é o amor, uma visitação do imprevisível... Às vezes ele chega sem preliminares, entra sem pedir licença impregna nossa alma com o gosto e o perfume da alma do outro, e vai embora sem dizer uma palavra de explicação...
Não existem preliminares nem para o amor nem para a morte, simplesmente acontece, e pronto, doa a quem doer, ofenda quem ofender. E sempre dói esse amor que acontece selvagem e indomável, sem respeito às normas e sem preliminares, que não reverencia convenções sociais, diferenças de idades ou distâncias, que não se rege pelo preconceito das leis dos homens... Porque o amor, o verdadeiro amor é divino, e o que é divino é fogo consumidor e indomável... Feito criança mimada ele chega, instala-se em nosso coração e diz: Eu quero! Eu quero agora! E é assim que tem que ser... Quem alguma vez já disse não para ele, e escapou ileso?
Mas olhemos as pessoas ao nosso redor, sobretudo aquelas que vivem bem ao nosso redor, aquelas que tropeçam com nós em nossa própria casa, essas pobres alma secas que nunca foram tocadas pela magia incandescente da paixão, e que por isso mesmo nada sabem nem do amor, nem da vida, nem da morte. Ouviram dizer que ele existe, mas por nunca o terem visto com seus próprios olhos, duvidam que alguém perto delas, mais novo ou mais nova que elas, tenha recebido essa graça que em segredos elas anseia para si mesmas. A princípio zombam, depois agridem, preparam coleiras, gaiolas, armadilhas, prendem e matam...
Cartesianas que são, mais por instinto que por sabedoria, não reconhecem nada que não tenha nascido direto de uma causa certa, conhecida e previsível... É só mais um prisioneiro que arrasta suas correntes pelo corredor, é criminoso. Olhem como ele sorri. Coincidência. É riso de deboche, dissimulação, ri da gente. Dissimulado... O vento sopra o tempo todo, vai e vem sem parar, descontrolado... Coisas de marionete. É só coincidência... É tudo teatro, teatro de marionetes. Mas não é um riso simples; veja como os olhos brilham. Não parecer deboche. Esquece, é nada não... Marionete. É só o vento. Daqui a pouco passa. Não entendem nada das coisas do coração... Que pena. Assim, na visão dessa gente que tem olhos mais não vêem, tanto a morte quanto o amor, precisam, para serem fenômenos compreensíveis e aceitáveis, de preliminares que os anunciem um pouco antes de chegarem. A surpresa os apavora, por isso vivem a olhar para os lados em busca dos mensageiros e dos sinais do amor, e da morte. Geralmente nunca vêem o amor, contudo todos, sem exceção são tocados pela morte. Um dia dorme e amanhecem mortos. E alguém diz com lágrimas nos olhos: Como é possível?
De modo que para eles a morte sem preliminares, não é morte, é fatalidade. E, pior ainda, o amor que passa por cima dos pactos sociais, que vai direto ao coração, que olha nos olhos sem desviar os olhos, e que usa a boca para beijar ao invés de falar, cobrar e julgar; que usa as mãos para fazer carinho e afagos, ao invés de bater; que conhece hoje, e amanhã já ta casando e vivendo feliz para sempre, que não pede pra saber quem é - porque já sabe -, que não quer saber do passado, nem se preocupa com o futuro, porque o futuro a Deus pertence, mas que não abre mão de nem um segundo do agora, não é amor, é safadeza, quando muito é loucura, uma doença que tem que ser curada, na marra.
Esses assassinos do amor vivem dizendo que o amor é uma arte, uma arte que sucede uma teoria elaborada e aceita socialmente, do que é amar... Pois que seja então o amor uma arte, que seja uma teoria, mas que seja no meio, quem sabe também no fim... Mas não no seu começo, pois no começo o amor é paixão, é inspiração, assim como inspiração é a raiz da poesia. Sim, amor é poesia. Podemos atrelar a convenções gramaticais a formação dos versos, mas jamais por meio dessas mesmas convenções podemos fazer nascer a inspiração da poesia e do amor. Amor é antes de tudo uma inspiração, um de repente, uma loucura que dá na gente e que nos leva além do que imaginávamos ir. É um urgente agora que nos chama e nos consome. Quem é tocado pelo amor é destruído e reconstruído vez após vez. Uma vez ouvi uma mulher, jovem ainda, dizer que todo choro carrega em si um quê de tristeza... Ah, essa mulher nunca amou, porque quem ama chora de alegria somente. Feliz aquele que não chora por outros motivos, mas só por amor, pois é feliz de verdade.
***
O amor é coisa que nasce do nada, é luz que brilha de repente na escuridão, é luz e perfume, é a instantaneidade do agora, sem passado, nem futuro... É um milagre. Não é arte nem teoria, é mistério, é uma gota de eternidade que embriaga o coração.
O amor é chama incandescente, auto-incandescente, em volta da qual, o amante e a amante, à semelhança de um casal de insetos, voam apaixonados pelo fogo que no outro, os consomem e os atraem até as raias da morte... Sim, o amor é também uma forma de morte, a mais horrível de todas as mortes, e ao mesmo tempo a mais doce e nobre forma de vida.
Contudo, a civilização, esse homem feito de muitos homens, que não satisfeito em ser homem-hidra, quer ser anjo e mesmo ir além de ser anjo, anseia ser um deus, que não satisfeito em colocar arreios e cabrestos na natureza, colocar cercas ao mar, domesticar o relâmpago e desmistificar o trovão, quer também por correntes e algemas nas coisas do coração, sobretudo nas coisas do coração alheio, e quer fazer do amor uma teoria e uma arte repleta de convenções... Quer que amar seja como montar um motor, como construir uma casa ou pilotar um avião, contudo, a despeito das regras, das teorias, das previsões e das artes, às vezes, e isso com mais freqüência que imaginamos, o motor queima, a casa desaba e o avião cai...
Ah, o coração se ri de quem quer transformar seus mistérios numa previsível fórmula matemática... O amor, assim como a poesia, pertence à categoria das coisas sagradas, e as coisas sagradas são numinosas e inefáveis por natureza, rebelde por natureza, e que por isso mesmo não suportam arreios, coleiras e cabrestos, rotinas, convenções ou normalidades castradoras... Que é o amor, se não um milagre, uma interrupção completa das leis e regras sociais da convencional teoria de amar? O amor é o antídoto que salva a alma de todas as suas corrupções e pecados. O amor santifica e purifica. Sem o amor, a alma é apenas fúria... Ah, miserável de quem ama orientado por regras, métodos e teorias, esse ainda não ama...
Ele levou quarenta anos para aprender essas coisas sobre o amor. Mas do que adianta saber isso agora? Um estrondo rasgou os céus. Não era o som de um trovão, era a guerra que tinha começado. Era um entardecer de sábado... A terra tremeu, uma leoa rugiu, e a o ar se encheu de navalhas... Ele agora pertencia à categoria dos monstros. Era um Judas... Fugiu desesperado deixando para trás a amada, no meio do fogo cruzado. Teve medo. E o jovem pássaro traído foi capturado e preso numa gaiola, e ele não voltou para libertá-la. Negou o chamado do amor, e ao fazer isso se tornou ele mesmo um pássaro engaiolado pelo resto da vida, vida que com o passar dos anos foi ficando cada vez mais vazia e pesada, até se tornar um fardo impossível de ser carregado... Era preciso por um fim naquele arremedo de vida. Um disparo na fronte e tudo estaria acabado. Quase fez, mas não fez... Ao invés disso condenara-se a uma vida errante, sem forma e sem raízes... Mergulhou na caverna mais profunda e nunca mais foi visto andando à luz do dia. Sempre se perguntando ? como se não soubesse desde o princípio ? do que realmente fugira. Do que tivera medo afinal? Acusaram-no de um crime que não cometera, contudo não era inocente. Era culpado de um crime muito mais grave. Cometera o único pecado para o qual não existe perdão: Desertara da guerra do amor. A pequenina ave veio a ele, pousou confiante no seu ombro, contou seus segredos mais sagrados e profundos e entregou-se a ele numa confiança plena e se reservas... e quando as trevas cobriram a terra, quando o uivo dos lobos fizeram tremer o ar, sua alma tremeu de medo, e ele fugiu deixando nas trevas a frágil e confiante ave... E na sua fuga pisara todas as rosas do jardim e destruiu sonhos sagrados. Como se redimir de tão covarde traição?... Os anos foram passando e ele foi assumindo como sua, a natureza das trevas, até que mudou de homem em verme, e sua alma e seus olhos eram frios e sombrios, assustadores como os olhos de um cão raivoso. Era agora aquilo que se autodenomina uma maldição, um ser vazio e sem esperança... Um inimigo de Deus e do amor, um ser da escuridão eterna.

Alguns dias depois ele foi encontrado morto, deitado no sofá, as carnes já em estado adiantado de putrefação, coberto de vermes e larvas que o devoravam gostosamente... Nas mãos quase completamente desossadas, conservava ainda o livro dela, ainda aberto, preso nas mãos postas sobre o peito... Ao lado do cadáver, velava o velho cão, já também a um passo da morte. O ar ressentia urina e fezes, de um e do outro. Morrera de velhice sem nunca ter vivido de verdade, porque fugira do amor que lhe estendera a mão. Pode-se dizer que morreu de arrependimento.
Mas o que ninguém sabe é que nos instantes da morte, ela lhe apareceu, linda e maravilhosa como sempre. E ele olhou e viu ao longe uma família linda. Um homem jovem, uma mulher jovem, um casal de filhos, e um cão.... E eles riam felizes ao por do sol, e cão corria e latia alegre. Então ele compreendeu que aquela, e não esta que findara agora, era a vida que o destino reservara para ele, se ele não tivesse dito não para o chamado do amor, se não tivesse fugido medroso como cão vira-latas, orelhas baixas e rabo no meio das pernas... Finalmente uma mão invisível, a mão da culpa talvez, entrou em seu peito, agarrou seu velho coração e o espremeu com força até que ele explodiu feito uma fruta madura que cai do pé e esborracha no chão... Depois do enterro, o homem que vivera oitenta anos foi esquecido em poucas horas, e nunca mais foi lembrado.


Autor: V.B. Mello


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