Medos de um Homem Morto



Ao passar em frente aos portões de um antigo cemitério, subitamente estremeci e contive os passos...
O sol já ia alto no meio do céu, mas eu fui tomado por uma estranha sensação de que vagava perdido nas encruzilhadas das horas mortas e incertas de uma profunda madrugada escura... Era dia e era noite ao mesmo tempo. Dia fora da alma, noite entrevada dentro da alma...
Talvez estivesse sonhando, mas não tenho certeza se estava dormindo... Talvez estivesse dormindo acordado, ou acordado, estivesse dormindo. Alucinações hipnagogicas? Quem sabe... Talvez estivesse acordado, ou talvez nem uma coisa nem outra. Talvez nem fosse cemitério aquilo que eu pensava ser... Talvez estivesse a perambular perdido pelos labirintos de minha própria alma, ou mergulhado nos labirintos de outras almas, não sei dizer. De tanto sonhar já está em mim exausta a realidade, talvez também o corpo de tanto sonhar e não realizar esteja a adoecer... De fato, faz já algum tempo que me sinto um tanto quanto doente. De fato, talvez eu seja um homem muito doente...
Talvez nem mesmo fosse eu quem estava ali, mas outro eu, aquele eu arredio que em tempos de vigília se esconde, ocultando-se nas reentrâncias do meu verdadeiro eu, seja lá isso o que for, pois às vezes os olhos do nosso eu interior testemunham alguma coisa secreta em nós, que nós não vemos e nem sabemos o que é, pois às vezes, e isso mais vezes que queremos ser, nós somos involuntariamente fantasmas cegos de nós mesmos. Então talvez não eu, mas o meu eu interior é que estivesse andando em frente aos portões de um cemitério, cemitério esse que para mim, isto é, para os olhos do meu eu superficial, podia ser a cidade, a rua ou a casa onde eu morava... E as tumbas? Bem, esses túmulos eram as pessoas por quem eu passava na rua, imagens minhas, imagens dos outros, amigos e inimigos, demônios e anjos, reflexos desconexos no espelho sujo do outro lado da alma, projeções ocultas de mim mesmos, restos de eternidade, outras faces que não eram outra coisa se não a minha mesma face mascarada com outras aparências...
Nessas cidades subterrâneas do eu que se desintegra em uma infinidade de outros eu, há eus que já morreram..., e também muitos eus que ainda morrerão, e eus que estão morrendo... Mas também há eus eternos, esses os progenitores de outros eus que ainda nascerão nas cidades ocultas da alma do meu eu verdadeiro... Pois a cidade da minha alma é habitada, à semelhança de qualquer outra cidade, por uma multidão de eus, uns ainda desconhecidos uns dos outros, outros até desconhecidos de mim mesmo, bem como eu desconhecido para eles...
Um pavor inesperado desceu sobre mim e me envolveu com a mais apavorante das certezas, a certeza da morte... Eu estava morto! Só podia Ser isso... Algumas recordações vieram à minha mente. Pensei ter ouvido um estampido, depois pássaros voando... Tenho certeza que ouvi um estampido... Talvez não tenha ouvido... Quem sabe se não foi o som dos estrondos das águas caindo da cachoeira. Talvez tenha ouvido outra coisa, qualquer coisa que não sei o que e confundi com um estampido, contudo, estampido ou não, senti uma pontada no peito e cai no chão, assassinado! Deus meu, fui assassinado! Vi ao longe o assassino correndo em desabalada correria. Corri atrás dele e o alcancei, joguei-o no chão e o chutei com violência. Agarrei-lhe pelos ombros e gritei: Por quê? Por quê? Mas ele não me respondeu palavra alguma. Estapeei-lhe a face. Tudo era escuridão e eu mal podia ver-lhe os olhos... Mas então... Deus meu! Não pode ser! Que miséria é essa? Vi-lhe a face e... Deus meu! Oh horror dos horrores... Ele era eu. Chorei enquanto ele ria e zombava de mim. Desmaiei e por muito tempo não me lembrei de nada do que tinha acontecido... Se é que aconteceu alguma coisa.
Mas agora me lembro. Eu estava numa casa, uma casa grande e suja... Tudo aconteceu num piscar de olhos. Sei lá, coisa estranha, parecia que eu estava voando muito alto no céu.... Então caí de repente, e quando dei por mim estava andando pensativo entre os corredores das velhas sepulturas dos meus ancestrais... Todos os meus parentes jaziam ali; vi seus nomes nas lápides e nas cruzes, nomes de bêbados, covardes, doentes, aleijados, prostitutas, adúlteros e sifilíticos. Das profundas tumbas, sedutores eles me olharam e viram a tristeza estampada na minha face marcada pelos vergões de uma ancestral dor hereditária, herdada deles... Deliberam em silêncio o meu destino, até que de súbito, em uma só voz, gritaram-me enquanto eu passava: Vem! Vem! Vem, filho nosso! Quem sois vós? Eu perguntei às vozes que me chamavam tão insistentemente.
O céu estava azul, mas o céu do céu da minha alma estava escuro, chuvoso e frio... O sol da manhã ainda não era suficiente para iluminar a escuridão da alma e fazer calar a voz dos mortos que me chamavam ao mesmo destino deles... Novamente gritei: Quem sois vós? Então a manhã escureceu e o ar se encheu de vozes desconhecidas, porém estranhamente familiares, e eu tive um medo maior que teria se fossem vozes desconhecidas, aquelas vozes...
Ó mais tristes dos homens ? eles cantavam ? vem! Vem e junte-se a nós em nossas cantigas de lamurias e tormentos... Quem sóis vós? Tornei a perguntar. Somos o exército dos desiludidos, a hoste dos desamparados. Vem! Junte-se a nós! Nós somos aqueles que perderam a fé... Nós somos a multidão daqueles que perderam a esperança e tiveram os sonhos roubados... Somos fantasmas errantes, que vagam chorando a traição que sofreram. Somos os que morreram de saudades da vida que sonhamos ter, mas que nunca tivemos... Vem! Junte-se à nossa horda de mortos vivos. Deite-se conosco em nosso leito de trevas e putrefação. Vem! Seja um com nós, e nós seremos um contigo...
Então eu entrei no reino deles, e eles me abraçaram. Trovoadas ribombaram pelo meio do céu até que desabou forte tempestade e eu olhei e vi as gotas de chuva colorida batendo na vidraça da janela. O vento soprava em rajadas intermitentes. Ao longe ouvi uma romaria de muitas almas que vagam pelos becos escuros da cidade... Ouvi muitos cânticos e muitas orações que subiam ao céu... Multidões de orações sem resposta. Eram os mortos da terra que oravam... Relutei-me em unir-me as suas orações, pois eram orações sem resposta.
Fugi correndo para um lugar distante... Meus olhos se abrem, minha consciência se expande e eu vejo e ouço coisas que não queria ver... Minha alma gira num torvelinho de fogo e chamas... Caminho sobre brasas vivas com os pés nus, e não me queimo... Entro no antro do leão e beijo a face da serpente. Novamente o som de um estampido rompe o silencio da madrugada. No meio da rua caiu morto um homem, na mesma hora em que uma folha seca caia de uma árvore... Uma criança prematura acabou de nascer. Em algum lugar escuro uma mulher trai seu marido que está em casa, doente. Estrelas cintilam no céu. Ondas arrebentam na praia... Vida que se esvai na escuridão da morte. Paixão. Perversão. Mandíbulas escancaradas. Fome. Boca que tudo devora. Pedras transformadas em pães! Não coma isso, é venenoso! A noite cai. Tristeza. Melancolia. Silêncio. Sol surgindo no horizonte. Dias que vão e voltam, sem nada levarem, sem nada trazerem. Dias vazios para almas vazias. Formigas cortando as folhas de um roseiral. Som de um avião cortando o céu... Uma faca cega nas mãos de um homem doente, cortando as carnes tenras de uma mulher... Gritos de socorro... Choro. Vozes de crianças. Pardais. Pais que jogam os filhos recém-nascidos, no lixo. Pais que jogam os filhos do alto dos prédios. Corações partidos... Um velho que morre cheio de arrependimentos. Despedidas e distâncias ocultas em outras distâncias... Vozes que nada dizem. Um carro passa na rua em frente. Chove uma chuva fraquinha. Ontem fez um calor insuportável. Latidos. Algazarra de bem-te-vis. Mortos de sono depois de uma noite de insônia. Morto de arrependimento depois de uma noite de amor sem amor. Amor comprado. Amor barato... Dor no peito. O caminho da verdadeira vida é estreito e afiado como o fio de uma navalha. Crianças brincando. Mais latidos de cães.
Novamente as vozes dos mortos se levantam dos túmulos e gritam para o vento! Mortos! Estamos todos mortos aguardando a ressurreição! Foram nossos pais que nos mataram. Uma face que não pode ser vista, oculta na santidade, zela por nós. Carniça. Urubus voando em círculos. Becos sem saída... Uma flor que cai... Uma bala perdida no meio do coração. Anjos que se metamorfoseia em demônios... Amantes que se escondem na escuridão dos becos, corpos sem alma se amando na sarjeta... Deus meu! Deus meu! Então é isso? Um anjo caiu. Mas como pode ter sido assim, a sua queda, sem que eu desse por conta de nada? Acaso eu era um cego? Acaso eu era um surdo? Olhem o céu, por favor, olhem o céu! Ainda é noite, mas, por favor, olhem o céu, vejam como ele está límpido e como as estrelas cintilam no firmamento... Ainda há esperança... Ainda é noite, mas logo o dia já vai raiar... Não acredito, não pode ser. Um anjo tão perfeito não cai assim, por qualquer coisa. Olhem! Olhem! O dia já vem raiando. Escutem o canto dos pássaros, vejam o orvalho nas pétalas das rosas, sintam o cheiro de terra molhada, agucem os ouvidos e ouçam a música da mãe natureza, e vejam que o mundo continua sendo como sempre foi. Mais um amanhecer igual a tantos outros. Olhem os homens correndo de um lado para outro... Correm hoje como correram ontem, vão para o trabalho, amam, latem, rosnam, matam, traem, adulteram, mentem, riem, nascem, morrem..., e choram... Nada mudou, tudo é como sempre foi. Então seria assim, se de fato um anjo tivesse caído do céu? Não posso crer que um anjo tão bom, tão gentil e tão fiel, caiu do céu sem que ninguém tenha visto a sua queda. Onde estão os sinais dessa queda? Mas, espere... Onde está você agora, anjo meu? Tão longe dentro da minha alma, tão escondida dentro dos abismos de escuridão em que se lançou em suicídio? Tão longe que já nem posso escutar mais a sua voz doce? Tão longe que jamais verei a sua face novamente? Então é assim, você caiu e morreu e eu nem desconfiei? Mas eu não vi a sua queda e não acredito no que aconteceu. Estou sonhando e meu sonho me conta mentiras. Somos tão próximos, como poderíamos nos distanciar tanto assim, a ponto de eu não ouvir o desesperador grito que sempre acompanha a queda de um anjo? Eu não vi o terror em seus olhos. Você sorria e me fazia carinhos... Amava-me e eu passava a vida olhando o mundo através da moldura de uma pequena janela, que eram seus olhos inocentes, por onde às vezes eu via as delicias do paraíso. Então um desastre aconteceu? Meu anjo caiu das nuvens, mas ninguém o viu em sua queda? Eu não acredito. Acreditaria se visse lágrimas nos olhos dos homens, acreditaria se a Natureza tivesse entrado em convulsão, acreditaria se o céu estivesse negro, lançando sobre nós granizo, raios e nos apavorando com suas ensurdecedoras trovoadas... Mas o céu está tão brilhante e os pássaros voam tão tranqüilos e a rosto dos homens que despertam cedo e vão para o trabalho parece estar tão pleno de felicidade... Não! Não! O mundo não estaria tão normal se um anjo tão bom como você tivesse caído das alturas do céu em direção as profundezas amaldiçoadas do inferno... Não acredito... Devo estar sonhando... Isso não pode estar acontecendo... Ainda é noite, mas logo o sol já vai raiar... E então um anjo virá do céu e me sussurrará nos ouvidos que tudo isso é mentira e que tudo continua sempre como sempre foi, normal... Tocará-me a face é me dirá que eu ainda estou vivo... Que tudo não passou de um sonho.

Autor: V.B. Mello


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