Conrad por Said



PALAVRAS-CHAVE: Ocidente, Imperialismo, Civilização, Dominação, Racismo, Literatura.

O imperialismo deixou marcas indeléveis na cultura das metrópoles e de suas espoliadas colônias. Em seu trabalho "Cultura e Imperialismo", utilizando a literatura comparada, o pesquisador Norte-Americano, descendente de protestantes árabes, Edward W. Said, analisa a novela "O coração das trevas" do escritor britânico Joseph Conrad, um polaco refugiado no império vitoriano pelas lutas de libertação da sua pátria ocupada, na época, pelo Império Russo.
Conrad narra a aventura de Marlow, um estrangeiro (como ele), em uma embarcação no Tâmisa, contando (para o desespero dos companheiros) a época em que foi feito capitão de um navio que percorria um rio africano. À medida que o trama se desenrola, o autor vai revelando seu ponto de vista sobre o imperialismo, os nativos africanos e etc. Aos poucos, o narrador vai descrevendo a figura de Kurtz, o chefe de um posto no qual se recolhia marfim. Este personagem causava fortes reações de estima e rejeição, sendo forte sua influencia em todo o percurso do rio. O autor tinha uma postura curiosa sobre o imperialismo que descrevia. De um lado, seu status de emigrado, as experiências da sua infância (a prisão do pai, membro da resistência contra o Império Russo) despertavam um senso crítico a respeito dos impérios coloniais que o diferenciava dos demais aventureiros britânicos ou franceses (ele fora um marinheiro e conhecera as regiões dominadas da América Latina, Ásia e África, que ilustrariam suas aventuras literárias). Mas, como europeu, ele não conseguia identificar-se com os nativos africanos, que descreve de forma impiedosa: "Eu esperaria o mesmo tipo de freio vindo de uma hiena rondando em meio aos cadáveres em um campo de batalha" (CONRAD, 2007) ? Eis uma das discrições de Marlow a cerca de um grupo de canibais. Além do mais, ele tinha que dissimular a suas opiniões desfavoráveis para agradar aos seus leitores imperialistas.
Said identificou-se com a novela de Conrad ? Os dois sentem-se estrangeiros nas maiores potências de suas épocas (EUA na segunda metade do século XX e Império Britânico antes da I Guerra Mundial). ? tomando-a como uma das bases de sua obra. Ao contrário de tantos escritores contemporâneos do antigo mundo colonial, que defendem a herança do imperialismo ocidental, Conrad seguiu, para Said, o caminho inverso. Apesar disso, o escritor precisou se apropriar do discurso imperial para mesmo se distanciando criticamente dele, construir seu próprio texto. Assim, apesar de terem conseguido se libertar politicamente, as antigas regiões coloniais somadas a América Latina continuaram dependentes econômica e culturalmente. Não é possível sequer pensar ou produzir cultura acadêmica sem recorrer aos modelos do Ocidente. Tudo o que vem do resto do mundo só tem valor dentro dos cânones do pensamento Europeu ou Norte-americano. Qualquer alternativa é logo refutada. Esta convenção coloca as demais regiões do planeta em contínua inferioridade intelectual. Outra contribuição de Conrad destacada por Said para a compreensão do Imperialismo seria a sua visão eurocêntrica: apesar de criticar o imperialismo ele parece acreditar na missão ocidental de levar luz ao coração das trevas. Questiona a resistência nativa, que para ele seria uma tentativa de restaurar essas trevas e não de se libertar de um jugo e voltar a uma ordem anterior à dominação.
Curiosamente, "Conrad situa a História no convés de um navio ancorado no Tâmisa" (SAID, 1995), a escuridão se estende no coração do império britânico. Talvez queira sugerir aos ingleses que entrando em contato com as trevas coloniais (lugares pouco conhecidos pelos mapas ocidentais associados a incivilização e a selvageria), eles poderiam ser envolvidos por elas. Kurtz seria a metáfora dessa decadência. O texto de Said deixa evidente que os impérios ao imporem sua força e cultura sobre os povos dominados, são também influenciados por estes dominados. Outra possibilidade é que subliminarmente, o escritor se vingasse do imperialismo (Russo) que o privou de sua pátria e família, (Kurtz é um nome eslavo) mostrando, simbolicamente que o mal que os impérios temiam na verdade estaria nas suas próprias atitudes imperiais. Pois mais terrível do que viajar ao coração das trevas é ter que enfrentar as trevas do coração.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

CONRAD, Joseph. O Coração das Trevas. São Paulo: ABDR, 2007.
SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. São Paulo: Companhia de Letras, 1995.

Autor: João Paulo Filgueiras


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