Davi, o Hitler da bíblia?



Hitler é um crápula. Todos concordam. Davi, um herói bíblico. Também hão de concordar. Mas uma pulga coçou a minha cabeça hoje, depois pulou para dentro do meu ouvido, e sussurrou: "Davi foi tão perverso quanto Hitler, e Hitler tão herói quanto Davi".

Quase caí da cadeira! E essa ideia incômoda aderiu-se aos meus pensamentos como teias de aranhas, um emaranhado de teias, entrelaçando-se, formando nós, laços, dobras, ganchos e uma cadeia de associações. Depois essas teias se puseram a girar, cada vez mais rápido, girando, girando, girando, até formarem um redemoinho com uma força centrípeta gigantesca, superior a qualquer poder gravitacional, atraindo em seu centro cada pingo de pensamento e cada respingo de sentimento, até que tudo se condensou num único ponto, minúsculo, porém denso, infinitamente denso, instável e pulsante, o qual por fim explodiu violentamente. Uma linda explosão de cores, nuances e até mesmo sombras! Então compreendi o que a pequena pulga queria me dizer. E se me permitirem, vos explico.

O homem é uma besta educada. Não há progresso moral, mas apenas desenvolvimento das instituições que civilizam ? ou tentam civilizar ? os seres humanos. Porém o homem, em sua natureza nua, continua sendo sempre o mesmo ser propenso aos prazeres e à violência - pulsão de vida e pulsão de morte, diria Freud ?, num combate eterno entre os impulsos e as proibições impostas pelos valores morais adquiridos através da educação e da cultura. Mas basta um descuido, uma situação extrema (por exemplo, uma calamidade pública com grave racionamento de comida e água), ou o feitiço de um grupo (o furor de uma torcida, o fanatismo de um culto religioso, a paixão ideológica de um partido), para que a besta em nós se revele com toda a sua selvageria animal. Há um imenso edifício cultural, um acúmulo de milênios de história e educação, que desaba sobre nossas cabeças desde que nascemos. O Código de Hamurabi, o Direito Romano, os sistemas filosóficos, as doutrinas religiosas, a Magna Carta, a Revolução Francesa, a Declaração dos Direitos Humanos, a criação da ONU, os direitos e defesas do consumidor, a Constituição, os códigos penais, a educação do lar, as escolas... É isso que nos civiliza. E a cada momento da história da humanidade, de acordo com as circunstâncias, novas instituições civilizadoras e novos valores morais são criados.

Um bom exemplo de como a moral muda com os tempos é refletir sobre a questão da escravidão. Em Atenas, na Grécia Antiga, época de esplendor filosófico e artístico, e berço da democracia, havia escravidão, algo execrado hoje por sociedades até muito medíocres, em comparação com aquela, e até mesmo por regimes ditatoriais (por exemplo, não houve uma classe de escravos nas violentas e opressivas ditaduras militares latino-americanas entre os anos 60 e 80 do século XX). Por alguns séculos, o tráfico negreiro e a escravidão no continente americano foi um negócio proveitoso e legalizado. Uma pessoa de boa índole, humanista, podia muito bem ter um escravo em sua casa ou fazenda, sem se recriminar ou sentir-se culpado por isso ? assim como temos empregadas domésticas e funcionários mal pagos atualmente, que se espremem na vida com o salário que lhe pagamos, enquanto nós, por luxo, gastamos num único fim de semana mais do que os seus salários. Particularmente, não sou santo, mas abomino o tráfico negreiro e a escravidão.

Quando, após a Revolução Industrial, a escravidão deixou de ser interessante para os poderosos industriais, os quais necessitavam de uma classe consumidora (portanto trabalho assalariado) para comprarem os seus produtos (inclusive os industriais ingleses necessitavam do mercado nas Américas), aumentaram-se os protestos contra tal calamidade humana, até que enfim leis surgiram para, primeiramente impedir o tráfico negreiro, e depois a escravidão. Provavelmente aquele cara de boa índole que tinha um escravo em sua casa, vivendo nos dias atuais, acharia bárbaro todo indivíduo que possuísse um escravo. Eu, particularmente, acho bárbaro. Também é bárbaro, no sentido de magnífico, surpreendente, como os valores culturais mudam com os tempos.

Enfim, a Revolução Industrial ajudou a salvar os escravos, e contribuiu para a atual condição de bilhões de seres humanos que ganham salários de miséria, para uma jornada de trabalho extenuante, verdadeiros escravos contemporâneos. São as circunstâncias...

Mas falemos de Hitler. Um crápula, um monstro, um bárbaro. E assino embaixo. As circunstâncias do após Primeira Guerra Mundial permitiram, na sociedade alemã de então, o surgimento do partido nazista e a sua chegada ao poder. Hitler era o líder que os alemães precisavam, o herói necessário para um povo com a autoestima lá embaixo. Para o orgulho ferido da "raça" ariana alemã, um Guia para conduzi-los ao bem-estar e recuperar o lugar que lhes cabia na ordem das nações. Não há dúvida do talento de Hitler para encarnar este Guia, pelo menos até o momento de sua derrota. Porém, numa reviravolta de valores culturais, passou a ser odiado pelo próprio povo que o conduziu ao poder.

O desenvolvimento das instituições que civilizam os homens, o acúmulo de leis e tradições moralizadoras, mas não o progresso moral do ser humano em sua natureza, permite que hoje olhemos para Hitler como um crápula. Mas se ele tivesse sido o líder de um povo subjugado há dois mil anos atrás, quando ainda havia poucos legados institucionais civilizatórios, será que a história o cultuaria como um grande comandante, um libertador, um herói da humanidade? E o que dizer de Alexandre, o Grande? De Júlio César? De Napoleão? E tantos outros?

Não quero aqui colocar outro herói a percorrer as glórias do Panteão; pelo contrário, gosto mais de desmistificar ídolos.

Quando falamos de Alexandre, o Grande, temos a mesma ojeriza na pele, o mesmo amargo na boca, o mesmo ódio nos olhos, ou o mesmo veneno no sangue, do que quando falamos de Hitler? E por acaso Alexandre foi mais bonzinho que Hitler? Na construção do seu gigantesco império macedônico, será que Alexandre pedia com licença, por favor, me perdoe, mil desculpas aos povos conquistados? Consta que, diante da resistência dos tebanos em frente ao exército macedônico, Alexandre simplesmente liderou a destruição da cidade e vendeu 30 mil tebanos como escravos. "Só poupou os templos e a casa do poeta Píndaro, em sinal de respeito pela religião e pela cultura helênica". Quanto respeito!!! Trinta mil escravos! Só em Tebas! Fora as mortes. Escreveu Plutarco sobre Alexandre: "Era sua vontade tomar toda a terra habitável sujeita à mesma razão e todos os homens cidadãos do mesmo governo". Essa mesma sentença na boca de Hitler, ou mesmo, digamos, do atual governante dos EUA, do Irã ou da China, não nos soaria como algo imperialista e abominável? E quanto a sua tão aclamada política de casamento entre vencedores e vencidos, e a troca de experiências culturais entre povos conquistados e conquistadores? Muito experto esse Alexandre, hein! Imagine que o atual presidente dos Estados Unidos ordene a invasão do Brasil, destitua o governo brasileiro e faça do nosso país um território anexo do império americano. Contudo, muito camaradamente, diga: "brasileiros e brasileiras, vocês podem casar com os americanos, e podem manter suas tradições culturais, desde que também aceitem as nossas, é claro. Vamos trocar experiências."

Júlio César é tido como um grande imperador romano, um grande general que expandiu as fronteiras do seu império (ora, será que os romanos, para ele, tinham mais direitos em relação aos outros povos?). E Hitler não foi o grande Führer da "raça" ariana, o grande líder nazista que, assim como Júlio César, quase dominou o mundo? Se houvesse existido um império ariano, tão duradouro e rico em cultura quanto o império romano, Hitler teria para as gerações vindouras o mesmo status que Júlio César tem para nós?

Napoleão, o grande general e estrategista, foi menos cruel do que Hitler? Bom, ele não exterminou judeus, mas titubearia se isso fosse necessário para o seu sonho imperial?

Será que todos os grandes líderes da guerra que passaram pela história só são vistos como crápulas ou heróis, bárbaros ou gênios, por questão de uma série de circunstâncias da época, da cultura, de terem vencido por muito ou pouco tempo, de terem conseguido convencer maior ou menor número de pessoas, por estarem submetidos a tais e tais legados civilizadores de seu tempo? Por que a crueldade dos mais antigos é esquecida? Alexandre, o Grande, Júlio César e Napoleão geralmente são reverenciados como líderes militares brilhantes. Ora, não foram tão cruéis quanto Hitler?

Pois bem, Davi, o herói que derrotou o gigante Golias (aquela pulguinha está me gritando para falar logo de Davi). Davi, se tivesse realizado os seus feitos hoje, com todo o progresso das instituições civilizadoras da atualidade, não seria tão crápula quanto Hitler?

O quê, pulguinha? Não, isso não. Isso eu não devo dizer, e pare de gritar no meu ouvido! Não, não aceito. Não concordo que se Hitler tivesse vivido nos tempos de Davi, sob tais e tais circunstâncias, seria mais um herói bíblico. Isso fere demais a minha sensibilidade civilizada. O quê?! Há muitos Hitlers na bíblia? E eles são heróis?

Não, não, falemos de Davi, somente de Davi.

Davi foi um rei imperialista que expandiu os seus territórios, foi um governante da guerra para o povo judeu (será que para ele os judeus eram mais especiais em relação aos outros, assim como para Hitler os arianos?). Está escrito na bíblia que um dos seus principais capitães, brandindo sua lança, matou trezentos inimigos de uma só vez! Bem, matar trezentas pessoas num só golpe?! E com uma lança?! Não parece muito verossímil, mas está escrito no livro sagrado, o livro da verdade, e com a intenção de exaltar a proeza do soldado de Davi. E foi o próprio Davi quem matou o gigante de um exército inimigo, Golias, derrubando-o com uma pedrada e depois lhe arrancando a cabeça com sua espada. Muito humano este Davi! Não bastava ter rendido Golias?

Para os padrões culturais de hoje provavelmente Davi seria tido por um machista cafajeste. Ele teve várias esposas e concubinas (traduzindo: não era fiel e usava as mulheres como objeto sexual). Só para citar um exemplo, Davi gostou de uma mulher que era esposa de um de seus soldados, então, "convidou-a" para seu palácio, engravidando-a. Tentou encobrir a situação ordenando que o soldado regressasse ao lar, na expectativa de que ele dormisse com a esposa e acreditasse que foi ele quem a engravidou. Contudo, como o soldado recusou-se a passar a noite com a esposa, Davi o enviou à frente de batalha, ordenando que o comandante do exército o deixasse desprotegido, para que morresse assassinado. Depois se casou com a mulher. Davi foi brutal com algumas de suas concubinas, enclausurando-as, e fazendo que vivessem como viúvas.

Além de imperialista, assassino e mulherengo, Davi também foi um péssimo pai. Seus filhos estão envolvidos em tragédias, entre elas o episódio de um deles ter estuprado a própria irmã, filha de Davi com outra mãe. Mais tarde, este filho foi assassinado por um irmão.

Se não tivesse sido imantado pela glória e áurea que a igreja lhe conferiu por todos esses séculos; pelo contrário, se vivesse hoje, sob a égide dos valores morais contemporâneos e sob o prisma de todo o edifício histórico de leis e instituições que civilizam os homens, Davi ainda seria visto como um herói? Ou seria um crápula? Merecê-lo-ia a honra de ter sido esculpido por um Michelangelo?

Oh, a pulguinha não para de gritar em meu ouvido, ela quer que eu diga. Não, pulguinha. Eu sou contra a barbárie, sou contra Hitler e contra todos os governantes imperialistas. Sou contra Davi, Alexandre, o Grande, Júlio César e Napoleão. Todos eles foram assassinos. Pelo menos é o que me diz a minha sensibilidade moldada pelos valores civilizatórios contemporâneos. Quem sabe se eu fosse judeu na época de Davi, eu o adoraria. Ou macedônio nos tempos de Alexandre, o Grande; romano nos anos de Júlio César; francês nos idos de Napoleão. Talvez eu adoraria todos eles. Mas hoje, cidadão do mundo contemporâneo, tenho a todos como tiranos.

Tudo bem, pulguinha, você venceu, eu digo, enfim, eu digo: "Hitler seria um Davi, um herói bíblico, se tivesse vivido na época deste; e Davi, um crápula, um nefasto, assim como Hitler, acaso nascesse no século XX".


(André Augusto Passari, médico psiquiatra e escritor, autor de "Fragmentos do Tempo", editora artepaubrasil)

Autor: André Augusto Passari


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