Perspectivas sobre uma pedra e o Eu



Desde que aprendemos que o olhar humano não detém o privilégio de enxergar o absoluto ? ou ainda não aprendemos? ? perspectivas infindáveis e interpretações infinitas se colocam diante de nós. Precisaríamos do olhar de uma minhoca (suponha que essa minhoca acredite enxergar o absoluto) e compará-lo ao nosso, para vislumbrarmos, ainda rudemente, a visão extraordinária e caleidoscópica de uma espécie superior, ou mesmo de um deus ? desde que esse deus não seja uma projeção de nós mesmos, é claro. Pois bem, as minhocas são cegas, só distinguem a claridade da escuridão; e nós, na perspectiva desse deus, talvez nem isso! Todo o colorido das orquídeas e do arco-íris, o mosaico de formas quando o vento incide sobre a superfície de um lago, as ramificações de um galho até o mais tênue filamento de graveto, as nuances da íris de uma criança, tudo isso que a minhoca não enxerga talvez seja apenas claridade e escuridão ? ou nem mesmo isso! ? perto do que um deus, uma espécie superior ou que um extraterrestre poderia enxergar.

Ainda somos minhocas tentando pensar como deuses, e somente um deus magnífico, e com uma inteligência milhares de vezes superior a nossa, poderia compreender ? e entenda isso não como apenas ter conhecimento, saber racionalmente; mas compreender incorporado na própria intuição de pensar, como algo evidente (e aqui já cometemos o sacrilégio de parecermos cartesianos demais ? Santo Deus, perdoai-nos! ) ?, que a perspectiva da minhoca é tão verdadeira, para ela, quanto a nossa, para nós. E que as opiniões de um filósofo, por mais livre-pensador que seja, estará sempre carregada de preconceitos, os seus preconceitos, assim como as opiniões do mais empedernido, ortodoxo sacristão. Quantos Nietzsches ainda morrerão loucos por isso? Pois bem, apenas rastejamos, e cavamos buracos, e de repente um novo buraco se nos afigura como uma descoberta milagrosa da sabedoria, e então inventamos deuses e leis, e categorias fundamentais, imperativos, as equações que devem reger o universo, a essência das coisas e as coisas como elas devem ser: a coisa em si. E como se não bastasse, determinamos o Eu e as nossas instâncias psíquicas, em toda sua economia e dinamismo, ou em toda sua estrutura de linguagem, os mecanismos de defesa, os sintomas, os comportamentos reativos e derivativos; tudo isso também como essência e coisa em si. Os mestres da psicanálise ganham a mística de messias para os psicanalistas ateus. Perdoai-nos mais uma vez, Senhor! E já nos íamos esquecendo que o "Pai" da psicanálise uma vez questionou se tudo era uma questão de filogenética ou ontogenética. Ou seja, existem estruturas psíquicas em si ou o psiquismo depende da história da organização social? E o primórdio desta poderia ter sido diferente? Poderia haver algum tipo de civilização sem alguma forma de interdito e mecanismos de trocas? Talvez se no início o clima fosse um pouco diferente... Até quanto o nosso cérebro é plástico para conceber outras formas de Eu e de civilizações? Ou então já não seria a espécie humana? Ou será porque justamente a nossa história foi assim, acreditamos que não poderia ser diferente.

Falemos de uma pedra. Imagine uma pedra solitária, de cerca de um metro de diâmetro, no meio de um deserto. Há quantos séculos a pedra está lá, imóvel, e por mais quantos séculos permanecerá?

Um caminhante, consciente de que o ser humano vive em média cerca de 80 anos, passa por essa pedra. Ele está com sede e cansado, perdido no deserto, temendo que talvez não sobreviva, nos seus trinta e poucos anos. Ele senta-se na pedra para descansar e põe-se a pensar. Essa pedra é dura e resistente, suporta o calor do deserto e o frio que faz à noite. Suporta as tempestades de poeira. E se fosse jogada ao mar, ainda sobreviveria lá no fundo do oceano. O caminhante, como que para se eternizar através da pedra, tira do bolso um canivete, e crava sobre a rocha o seu nome e a data. Depois se levanta e segue a sua trajetória.

Séculos e séculos se passam até que um novo caminhante passe pela pedra. Ele vê a inscrição, e, ao mesmo tempo que se exulta com essa mensagem vinda dos séculos, se angustia, pois percebe que, assim como o outro caminhante, ele também passará, e a pedra permanecerá.

Porém, perspicazes leitores, foi de fato a mesma pedra que os dois encontraram? Mais ainda, esse segundo caminhante, depois que leu a inscrição, suspirou por um segundo, e voltou a encarar a pedra, era a mesma rocha que ele enxergava? E não digo no sentido simbólico que a pedra pode ter adquirido para ele. Suponhamos uma pedra sem inscrição nenhuma; depois que um caminhante a olha, suspira, e contempla-a novamente, continua sendo a mesma pedra? A pedra, por acaso, permanece imóvel como cada um dos caminhantes acredita?

Para a perspectiva do olhar humano, tudo não passa de uma questão de escala de tempo. Se um homem vivesse, digamos, cinco bilhões de anos, veria aquela pedra, maciça, desvanecer-se em poeira. Mas não é só isso. Em primeiro lugar, a pedra não está imóvel, como parece. Ela navega no espaço, em grande velocidade, no lombo do planeta Terra. Em segundo, as partículas subatômicas que a constituem protagonizam um movimento frenético que pareceria um caos, se o olhar humano pudesse enxergar escalas espaciais microscópicas. Se tivéssemos essa poderosa capacidade visual, no momento mesmo em que víssemos a pedra tal qual ela é, a mesma já teria deixado de ser, com o movimento caleidoscópico de suas partículas. A rigor, não poderíamos dar o mesmo nome à mesma pedra que contemplamos no intervalo de uma ínfima fração de segundo. Nós mesmos também já seríamos outro: o Eu que suspirou por um segundo antes de voltar a contemplar a pedra, já é um outro Eu.

Mas antes de tratarmos desse Eu, pensemos em outras perspectivas sobre a pedra, só para lembrarmos que todas as nossas conjecturas não passam de uma perspectiva, a perspectiva humana. Muitos filósofos já se debruçaram sobre o conceito de substância, e disso criaram categorias, classificações. Só se esqueceram de dizer que era uma interpretação humana.

Pois imagine agora um camelo caminhando pelo deserto e se deparando com essa pedra. Como ele a enxerga? Não sabemos. Provavelmente ele se desviaria da pedra. Uma cobra, cujo aparelho visual é diferente ao do homem e ao do camelo, talvez até rastejasse até o topo da pedra, sem motivo aparente, e também seguiria o seu caminho.

Agora pensemos num ser humano que, seja por engenharia genética, ou por ajuda de aparelhos tecnológicos ultra avançados, não enxergasse a pedra da maneira banal que a enxergamos, mas o movimento de cada elétron e a interação desses com as ondas e partículas de ar ao seu redor. Para irmos mais longe, vamos supor um ser extra terrestre incapaz de visualizar a pedra como um ente particular, mas um emaranhado de partículas ? e nem chamemos aqui de elétrons, talvez ele veja outra coisa ? em interação com as partículas de tudo em volta: do ar, da areia, dos raios de sol e eventualmente de ondas eletromagnéticas que venham do espaço. Talvez para esse ser extra terrestre, essa pedra não seja algo maciço; talvez até mesmo, pela constituição do seu corpo, ele possa atravessar a pedra, assim como nós atravessamos a água ou o ar.

E para não ficarmos apenas no foco de seres animados, pensemos também na pedra em sua interação com outros entes inanimados. A chuva deixa a pedra úmida. E o que quer dizer isso? Como se dá precisamente a interação das moléculas de água com as moléculas da pedra? Numa ventania de poeira, alguns grãos ficariam aderidos tenuamente à pedra, enquanto outros se chocariam e cairiam no chão. Que tipo de interações estão sendo estabelecidas aí? Uma corrente de ar provavelmente se desvia no encontro com a pedra, mas quem garante que alguma partícula desse ar não interagiu e se aderiu à pedra? Ou, ao contrário, corroeu levemente a pedra? E se lançássemos outra pedra contra esta? Uma pedra pequena, digamos. Ela bate e volta para trás. O que de fato ocorreu? E assim sucessivamente com cada objetos que escolhemos.

Pois bem, falamos de várias formas de interações, várias perspectivas sobre essa pedra: do homem, do suposto além-do-homem diferenciado por engenharia genética ou recursos tecnológicos, do suposto extra terrestre, do camelo, da cobra, da água, da poeira, do ar e de outra pedra. Qual destes detém o olhar mais correto? A perspectiva absoluta?

Ouço alguém sussurrar: "nenhum destes, só Deus conhece a verdade". Tudo bem, se esse Deus existe, como ele vê a pedra? Ela é sólida para Ele; dura, áspera? Ou tão rarefeita quanto o ar? E quando uma partícula de poeira interage com a pedra, isso é menos real, menos verdadeiro, do que quando esse Deus interage com a pedra? Quando uma cobra se rasteja sobre ela, ou quando um homem senta-se sobre a mesma, seria isso uma mera ilusão diante da verdadeira interação com a pedra que esse Deus pode estabelecer? Se pensarmos que o homem pode saber tudo sobre uma minhoca, e ainda vigiá-la continuamente através de câmeras e sensores, ou seja, o homem pode ser onipotente, onisciente e onipresente diante de uma minhoca, mesmo assim a interação da minhoca com a pedra é menos verdadeira do que a do homem com a mesma?

Para quem quiser crer ? compreender? ?, perceberá que tudo depende da perspectiva, ou, se preferirem outros termos, da interpretação, da interação. Tudo não passa de aparências. Da aparência dessa perspectiva, ou dessa interação. E daí concluímos que não existe uma essência para as coisas, já que tudo se transforma a cada instante, deixando de ser, mesmo que conservando algo temporariamente, até que, em contínuas transformações, já não conserva nada daquilo que consideramos o ponto de partida, a não ser a própria condição de continuar mudando, de manter o movimento. Portanto, não existe a coisa em si, ou o ideal habitando o mundo das ideias, como queria Platão. Há apenas algo, que já deixou de ser no instante seguinte. O eterno fluir, o eterno vir a ser, como diria Heráclito.

O mesmo vale para o Eu. A começar pelo corpo ? Freud nos disse que o Eu é antes de tudo um Eu corporal. Ninguém duvida das transformações físicas que passa um bebê até chegar à velhice. Mas vamos nos atentar para o Eu psicológico. O Eu da criança é o mesmo Eu do senhor?

Ser Eu aos oitenta anos é o mesmo que ser Eu aos oito? Há uma identidade perfeita entre esses dois Eus? É possível ter sido, não ser mais, e continuar sendo? Ser e não-ser? "Nunca nos banhamos duas vezes no mesmo rio", disse Heráclito há mais de 2500 anos atrás. Mas e a questão da identidade? Como posso dizer que não sou mais o mesmo de há dez anos, e afirmar que continuo sendo o mesmo ser? E se repetirmos que tudo não passa de uma escala de tempo? De um movimento espaço-tempo? Uma mudança gradual, na qual alguma característica da coisa anterior, do Eu anterior, permanece na coisa, no Eu seguinte, até que numa escala de tempo gigantesca (ao olhar humano, é claro, se supomos o eterno), não reste mais nada daquele coisa ou daquele Eu inicial. Um Eu aos oito anos, outro aos oitenta, e quem sabe, num esforço de imaginação, outro Eu aos oitocentos anos, e outro com oito bilhões de anos. Restaria alguma coisa do Eu de oito anos? E essa escala de tempo pode ser alargada ainda mais conforme o nosso capricho, dentro do que supomos eternidade. Essas moléculas que constituem o sangue que corre em minhas veias eram a mesma coisa há oito bilhões de anos atrás, ou alguma outra coisa completamente diversa?

Heráclito já dizia que, apesar do saber ser eterno, jamais sabemos muito bem. Sendo assim, sem compreender o suficiente, reescrevo com minhas letras uma filosofia de milênios. Digo assim:

O universo, e também a alma (ou psique), é sempre um vir a ser, mudança contínua numa conjunção de opostos. Somos e não somos, no mesmo instante. Tudo é não é, ao mesmo tempo. Não há causa primeira, não há um todo ? o universo é insondável, a alma é indecifrável. Há apenas o eterno e o infinito postos e opostos pelo movimento, num fogo perpétuo, dizendo metaforicamente.

É assim que interpreto Heráclito, e essa é minha tendência de encarar a vida, de apreender o mundo. Diriam que é só uma questão de opinião. Mas me defendo afirmando que é uma opinião teimosa (e essas são temerárias, ou então sábias, pois desafiam o tempo e a ferrugem dos séculos) e também uma opinião provocadora, pois de minoria (e são essas que mais respeito).

Se Parmênides não tivesse sido malvado com Heráclito, e se a insegurança e o desamparo humano não fossem tão mais simpáticos à filosofia consoladora de Parmênides, em relação ao abismo do eterno fluir em que Heráclito nos coloca, todo o edifício do pensamento humano, e toda a história, a sociedade, os costumes seriam diferentes hoje. Não teríamos desperdiçados mais de 2500 anos... Mas teríamos alcançado o outro lado do abismo? Não!!! Isso é platônico demais, é religioso demais, demasiado humano, como nos diria Nietzsche. Para desespero dos inseguros, ser é sempre um risco, perder-se no abismo para encontrar-se em outro abismo.

Tão mais consoladora é a ideia de Parmênides do ser imóvel (o ser único e eterno)! E a partir daí extrapolarmos para conjecturas de um deus onipotente e onisciente que nos protege. Parmênides, o pai dos desamparados? Basta afirmar resoluto, fundamentado nos princípios da Lógica humana (mesmo que esta contradiga todos os sentidos. Ora, de que servem os sentidos diante da magnífica e soberana Lógica humana?): "o que dizes é contraditório!" Ufa, a Lógica nos salvou! A Lógica dessa espécie que não passa de uma ínfima e rarefeita poeirinha cósmica, lembremos. Pois é óbvio afirmar a contradição da sentença: "somos e não somos". É óbvio e evidente. Afinal: "o ser é; o não-ser não é". Evidente para a prodigiosa e estultíssima sabedoria humana. Tão evidente quanto o Cogito cartesiano. Ora, "penso, logo existo". E daí derivar que é confiável o meu pensar. E que sou eu o dono do meu pensar. Todos os loucos e paranóicos têm convicção de seus delírios. Ante o abismo, não seria melhor delirar? Ante o óbvio, não seria melhor acreditar? E se interrogássemos: para a capacidade do pensar de uma espécie tão frágil, não seria difícil demais suportar a contradição da Lógica? Não seria doloroso demais? Supor que o evidente para o ser humano pode ser tão simplório para uma perspectiva além-do-humano quanto às evidências que tem uma minhoca ao cavar o seu buraco. Quem é capaz de pensar assim?

Mas acalmai-vos, desamparados e inseguros. Já foi dito que existem deuses. Os gregos disseram. Mais ainda, há milênios se sabe que o Deus existe, o único Deus, nosso pai e protetor. Resignai-vos, portanto. Ainda há uma esperança mística.

Contudo, não poderia deixar de vos lembrar de que somos apenas pequeninas criaturinhas na superfície de uma bola rochosa e gigantesca. Tão pequeninos que, ao olharmos para o horizonte, temos a impressão de que o mundo é plano. Estamos circunscrito à crosta dessa imensa bola rochosa e à tênue camada que a envolve, a qual chamamos de atmosfera. E ao olharmos para o céu, o que vemos é apenas essa tênue atmosfera, um céu azul que esconde a escuridão do infinito. Mesmo à noite, só enxergamos algumas das bilhões e bilhões de estrelas espalhadas pelo infinito. Estamos confinados à superfície dessa bola gigantesca e ao que a nossa ciência e tecnologia nos oferece de possibilidades. E seria desanimador e angustiante demais dizer que essa bola rochosa, o planeta Terra, não passa de uma imperceptível poeirinha flutuando no infinito escuro? E estamos confinados, por enquanto, e ainda por quantos séculos e milênios?, à superfície dessa poeirinha. Mais ainda, estamos presos aos limites do nosso raquítico corpo ? quem sabe a tecnologia ainda não vai melhorar um pouquinho isso? E, sobretudo, a mais importante e inescapável prisão, a qual sempre nos fará impotentes para apreender o universo e o ser como um todo, estamos submetidos a nossa Linguagem. E dessa nem mesmo a ciência pode nos libertar, pois essa só existe por causa daquela. Eternamente submetidos, amordaçados, presos pela Linguagem.

Oh, Parmênides, Platão, Jesus, venham nos consolar! Consolar os homens fracos, retifico. Pois, graças a Deus, ainda existem alguns homens fortes que sabem se resignar sem mistificação. Uma resignação sensata. Resignação que não tem nada a ver com entrega, abandono. A resignação do compreender as nossas limitações, angustiar-se com isso, sem se desesperar, e se lançar ao jogo que nos é dado jogar.


(André Augusto Passari, médico psiquiatra e escritor, autor de "Fragmentos do Tempo", editora artepaubrasil)

Autor: André Augusto Passari


Artigos Relacionados


Mistério De Um Caminho.

Pedras Rubras

Crack, Pedra De Tropeço

Montanhas Ao Meio Do Trilho.

Não Se Deixe Enganar Pelo Poder

O Camaleão Cinza E A Pedra Marrom

Pedra