A contadora de cabeças



Eu vou lhe dizer mais uma vez, tudo aquilo que já lhe disse, expliquei. Tudo aquilo que se passa:
- Tenho feito o meu trabalho honestamente. Sempre fiz. Antes mesmo de você aparecer aqui, oferecendo ajuda, parceria. Aliás, que ajuda você nos deu? Parceria cadê? Só aporrinhação é o que você nos trouxe. E não levante a voz para mim não, pirralha. Abaixe o tom, a bola. Se cale e escute, moleca. Só porque estudou em faculdade boa, é cheia de teoria, você acha que sabe tudo, não é? Pois não sabe não. Eu tenho idade para ser sua mãe, não tenho? Então respeite minha cabeça de cabelos brancos, meu rosto de rugas, porque isto é vivência, experiência, coisa que você não tem.
Esta sala de aula aqui é fruto de muita luta. Minha e de meus alunos, que pedimos tábuas de doação, telhas, carteiras, cadeiras, lousa. Nós levantamos isto aqui com nossas próprias mãos, para que as pessoas aprendessem a ler o próprio nome, o dos filhos, o dos netos. Para que as pessoas escrevessem, e se sentissem gente.
Nada aqui você trouxe, mocinha. Já estava tudo aqui há muito tempo, sendo usado por nós todas as noites. Muito antes de você aparecer no meu bairro, procurando sala. Muito antes de você por sua cara em minha porta, e se oferecer para pagar uma ajudinha de custo mixa, para que meu trabalho levasse seu nome, o de sua ong.
Você deu um caderno, um lápis, um suco, uma bolacha para meus alunos, e agora se acha no direito de voltar aqui, no meio de minha aula, para checar quantidade de pessoas, como se fossemos peças que deveríamos estar a sua disposição? Sempre a sua espera? Vivendo em sua função? Você tem a ousadia de vir aqui exigir número mínimo? Quinze, vinte, vinte e cinco? E fica brava, briga se tiver um a menos? Mesmo em dia de muita chuva? Mesmo em dia de muito frio para as idades avançadas? Mesmo com doença?
Nós não somos peças, senhora supervisora. Nós somos seres humanos. De carne e osso. E sentimentos.
Eu estou aqui exausta, mas não desisto de minhas aulas. Não abandono os meus alunos. E se tiver que ficar aqui até meia noite eu fico. Venho todos os dias. Venho sábados e domingos. Faço isso por eles, não por você, por suas exigências. E eles também. Veem felizes para a aula sempre que podem. Veem porque querem. Porque precisam.
Quantos anos você têm, mocinha? Trinta e poucos anos? Quarenta? Pois fique sabendo que comecei a alfabetizar, quando você ainda era um bebê. Quando ainda sujava as fraldas. Muito antes de você se tornar esta mulher arrogante. De nariz empinado. Com cara de nojo. Você está com nojo de quê? De quem, senhora supervisora? De mim? De meus alunos? De minha sala simples? E não me ameace não. Não se atreva. Não perca o seu tempo. Porque não há nada que você tenha de fato me dado, por isso não há nada que você possa me tirar.
Agora dê licença. Você já nos tomou tempo demais. Ponha-se daqui para fora. Saia de nossa sala de aula. Suma daqui você e seu projeto, e nunca mais apareça. Esqueça o caminho desta sala, o meu nome, o meu telefone. O rosto de meus alunos. Pare de nos atrapalhar, pois estamos em aula, sua contadora de cabeças!


Autor: Ana Kátia De Souza Pessoa


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