Lixo na alma?



De trás do balcão, dia após dia, via a vida passar. Entre pães, bolos e guloseimas, surgia gente de todo tipo: felizes, angustiados, inteligentes, ignorantes, baixos, altos, gordos, magros, brancos, negros, amarelos e também a junção de todos eles... Mas uma destas pessoas em especial me intrigava a cada manhã, quando sempre, meio que como em um ritual, surgia pela porta esquerda da padaria. Era um senhor grisalho, já com seus 60 e poucos anos, que rotineira e secamente sempre me pedia um sonho, um café, e sentava na mesa que ficava no meio da calçada. Sempre carrancudo, devorava o doce vagarosamente, queimava os lábios no primeiro gole do café quente, fazia uma leve expressão de dor, e em seguida voltava a comer. No fim de seu café matinal, dava-se o que mais me fazia ficar reticente em relação à ele: apesar de haver uma lixeira ao seu lado, sempre jogava os guardanapos e o copo descartável no chão. Definitivamente, não entendia aquela postura. Pessoas que me inspiravam muito menos sabedoria não eram capaz de tal ato, então por que um homem como ele sempre agia com tamanha falta de respeito e educação?
Após conferir a cena repetidas vezes, um dia, enchi-me de coragem e caminhei até ele. "Com licença, posso interromper seu café por um segundo e lhe fazer uma pergunta?", indaguei, com certo receio de receber uma má resposta. "Fale, mas seja breve", retrucou o homem. "Por que o senhor sempre joga os restos de seu desjejum no chão se há uma lixeira ao seu lado? O senhor me parece tão inteligente, não consigo entender porque faz isso... A gente precisa ajudar o planeta, o aquecimento global vai acabar com a Terr..."... "Cale-se!!!!", esbravejou o homem antes que concluísse meu discurso. "A mim não interessa em nada ajudar o planeta, já que fazendo isso, estaria na verdade, ajudando as pessoas. Não acredito mais na humanidade. As pessoas têm lixo na alma, não há nada que limpe isso, então, nada mais justo que convivam com um exterior de acordo com o que são por dentro".
Estupefata com o que ouvi, pedi desculpas e voltei pro meu posto de trabalho. O senhor, mais uma vez, deixou seu lixo na calçada, e se foi. Durante todo aquele dia fiquei pensando no que ouvi. "As pessoas têm lixo na alma", a frase ecoou na minha cabeça como um grito de uma criança perdida dos pais, que não sabe o que fazer nem pra onde ir. Será mesmo que ele tem razão? A humanidade anda mesmo tão descartável quanto aquele lixo abandonado por ele, usando uns aos outros por motivos fúteis... Confesso que ele conseguiu, de certa forma, abalar minha crença em relação à bondade e o caráter do ser humano...
Após a noite que se seguiu ? e na qual confesso que tive meu sono perturbado pela afirmação do senhor ?, levantei-me e segui para o trabalho. Na certeza de que novamente, como acontecia todos os dias, encontraria o perturbador das minhas antigas convicções, senti um certo desconforto. Vê-lo seria encarar minha nova idéia fixa em carne e osso... E como a angústia dessa falta de esperança em uma realidade melhor me apavorava! Contudo, sem opção, vesti meu uniforme e comecei a servir os clientes.
Assustadoramente, comecei a reparar que ninguém agradecia ao receber o pão quentinho, preparado com tanto afinco e dedicação desde às 2 da manhã. Era como se quem o fez, e eu, que estava ali servindo, não existíssemos. Pavor! Essa é a mais clara descrição do que senti ao observar aquilo tudo. E como se não bastasse, chega, no mesmo horário de sempre, a personificação dos meus novos pensamentos aterrorizantes.
Com um nó na garganta, perguntei o que queria, servi-o e continuei a observar. Caminhando para sua mesa habitual, o homem apoiou sua bengala no degrau e desceu em direção à calçada. De repente, o inesperado: uma pisada em falso, o senhor perdeu o equilíbrio, e subitamente se viu no chão, com o café entornado em sua perna e o sonho rolando em direção à rua. Antes mesmo que se desse conta do que aconteceu, um morador de rua, que curiosamente recolhia o lixo abandonado para reciclagem, seu sustento, abandonou a carroça na qual depositava o material e foi ajudá-lo a se levantar. Outras pessoas vieram também em seguida, todos perguntando se ele estava bem e tentando com guardanapos limpá-lo do café que escorria por sua perna.
Frente àquela cena, fitei o senhor e lhe dei um sorriso. Após anos de convivência, ele finalmente me sorriu de volta e seguiu então caminhando rumo à sua casa, ainda auxiliado pelos que lhe ampararam naquele momento.
Não foram necessárias palavras nem para mim, nem para ele naquele instante. Nossos sorrisos por si só plantaram de novo em nós a fé e a esperança de que, apesar de todo o mal que nos cerca, muitos ainda resistem aos detritos que cercam nossas almas e os transformam em algo bom. Pudemos então, naquele exato momento, ter a certeza de que mesmo no mais fétido depósito de lixo, as flores ainda nascem e exalam seu perfume...

Autor: Livia Ferreira Dos Santos


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