As esteiras do pretérito imperfeito



As esteiras do pretérito imperfeito

Não serei absorvido,
digo com uma certeza grande e pacífica:
não tramitarei na hora,
na época, na ocasião
nem na velocidade desejada e estabelecida.
E não ser do elenco, ou do time... é ruim;
pior pra mim que pra gente.

Gosto de pessoa, de gente,
de ser da espécie humana,
mas não autorizei falarem por mim,
não assinei nem concordei.
Não consigo ver vantagem nesse negócio,
não vejo o que pretendem que seja melhor,
só mais fácil, mais certo, mais cúmplice.
Não sou cúmplice, meus crimes são meus,
como são meus sangramentos de amor.
Estou em casa: aonde vocês vão?

Queria poder colaborar, precisava
não usar mais pretérito imperfeito...
Não me adianta colar cartazes,
que quando eu me desculpo
acabo ofendendo mais; sou e sempre fui
antissocial, na boa, sem problemas...
Ganho nada com isso.
Mas perco alguma coisa.
Perco alguma coisa?

Nosso sistema nervoso já é de fábrica, é assim.
O nervo banca a administração do ego,
e vamos repuxando os momentos,
embolando pretensões, amassando,
capeando o possesso riachinho
dos nossos desejos, resignações, ilusões
e demais reações cerebrais e cardíacas que nos impulsionam.

Falando a mesma coisa, toda hora.
E perdendo aquele beijo, esquecendo
do aniversário, não indo ao seu casamento.
Quando vai acontecer outra coisa?
Vamos chegar a sapiens sapiens,
Super-Homem, Homo kosmis...?
Já nos pesa bastante ser homem-animal.
Somos vira-latas, subespécies de nossa raça almejada.
Somos mais feios, ardilosos e desumanos,
e mais fracos, menos capazes, conscientes e necessários
- a uma distância não avistável -
do homem, do conceito que pretendemos convencionar.

Eu até deixo, não contesto, não ofereço resistência,
mas os cartazes não ficam, a propaganda não funciona.
Devia ser proibido botar bandeira na Lua, por exemplo.
Não vejo vantagem nisso, não estamos num naufrágio.
Conspiramos, camuflosamente anônimos, usufruímos,
mas a situação não é tão delicada: é só tédio disfarçado,
ânsia de ser melhor amanhã, destrutiva, especulativa...
Eu falo dessas coisas, não vejo novela, nem vantagem...

Será não poderíamos - eu e a humanidade ? fazer melhor?
O que evita e impede que acordemos numa terça-feira
de mês sem data marcante, numa época qualquer?
Não sou melhor do que ninguém,
só sou mais atingido pelas esteiras dos conveniados
e mais chorão que a maioria das pessoas.
Mas eu quero que ainda falemos de outras coisas,
que tomemos atitudes de espécie,
que assumamos o desconsolo existencial,
e lutemos pela sustentabilidade...
Não consigo ajudar na construção da grande pirâmide,
participar da campanha para a instituição de um adicional
nos salários de quem apresentar atestado de otário.

Razão é coisa de filósofo grego, de livro,
ou os processadores do orbe não entendem grego.
Não consigo enxergar uma nobre meta maior,
sinto muito. Sinto mais as esteiras.
Não vou para esse lado, eu moro em casa.

É tarde para escrever a mesma coisa,
é mais de meia-noite, outono, inócuo...
Bastava uma causa justa, um pingo de utilidade.
Somos marmanjos brincando de carrinho e boneca.
Kosovo não é parente, o vizinho se meta na vida dele,
o ronco é na sua barriga, o frio...
Não temos tempo pra comer:
vamos com pressa, esforçosos em criar
toda uma grande estrutura burocrática e distante,
para manter mais gente empregada e sob controle,
sem tempo, sem importância, sem graça, sem piedade.
Pensava em outra cidade, também imperfeita,
mas humana, como um formigueiro é formigano.
Papo de maluco. Não vejo vantagem.

Quem vai nos ajudar?
Pra quem vocês estão trabalhando?
Quais são as terceiras intenções?
Estou em casa, no meu canto
- que as esteiras não pegam nos cantos,
como sapatos de bicos grossos.

Estou procurando o que fazer,
vocês têm o meu número: chamem-me
se acontecer alguma coisa; venho correndo,
venho esperando esse tempo todo,
morrendo a cada minuto perdidamente
saudoso e subtraído do que não somos.
Não serei absorvido,
embora seja grande e extenuante
a vontade de tornar-me solúvel, diluível.

Pesa-nos a vida, mas amamos em desperdício, possuídos...
Queria falar de outras coisas,
do que ainda não percebemos e é o que mais importa,
também não sei o que seja.
De qual dia da vida devemos nos lembrar como consolo?

Estarei em casa, venham me chamar,
é só gritar do portão, não tem mais cachorro.
Vou gostar, venho rindo, talvez abrace.
Chamo pra dentro, faço logo um café...

20.05.99

Autor: Roberto Jr Esteves Siqueira


Artigos Relacionados


Descendencias

Acredito Em Mim

O Planeta Pede...

Novamente Escrevendo

Metáfora Lógica.

Seu Olhar

Anotações