CULTURA ROOTS




O reggae como patrimônio cultural do povo de São Luís


Felipe Leite Massari
Rodrigo Víctor Aragão Batalha

SUMÁRIO: Introdução; 1. São Luís e o Reggae; 2. Reggae como elemento cultural de São Luís; 3. Proteção ao Reggae como direito ambiental cultural; Conclusão; Referências.


RESUMO

O presente trabalho expõe o reggae como ritmo que é fator de identidade de grande parte do povo ludovicense. Evidencia-se essa música como reflexo de valores culturais da comunidade. Demonstra como o reggae deve ser protegido como patrimônio cultural, apesar de formalmente não o ser. O reggae é visto como manifestação cultural e que, portanto, deve ser protegido e fomentado como tal. Esse ritmo, nas suas origens caribenhas sempre teve o condão de falar sobre as relações sociais de opressão e sobre a resistência da população carente, como forma de conscientização da população. Visto, então, como fenômeno cultural e que reflete a especificidade do povo de São Luís, o reggae deve ser considerado patrimônio cultural.

"Mais um dia se levanta
Na Jamaica brasileira
Mais uma batalha que desperta
A nação regueira

Eles descem dos guetos logo cedo
Se concentram nas praças e ruas do centro
Lavando, vigiando carros, vendendo jornais
Construindo prédios, obras, cuidando de casas e quintais
São menores, maiores brasileiros
São os dreads verdadeiros do Maranhão

Regueiros guerreiros[...]"

INTRODUÇÃO

O reggae é ritmo predominante na música maranhense. São Luís é chamada de Jamaica brasileira com o status de capital desse país caribenho no Brasil. Nas rádios da Ilha do Amor, existem vários programas especializados na música de Bob Marley e Jimmy Cliff. Festas semanais reúnem centenas de pessoas em várias casas, embaladas por enormes caixas de som, chamadas radiolas, que fazem o sucesso do reggae na ilha de Upaon Açu.
Essa música faz parte do cotidiano de milhares de pessoas em São Luís, permeia a sua cultura. O reggae já integra a vida dos indivíduos, principalmente da população mais carente. Talvez por isso, o reggae é visto por muitos abastados, "magnatas" na gíria regueira, com preconceito. A paixão da população ludovicense pelo reggae faz desse ritmo elemento cultural característico de São Luís.

1 SÃO LUÍS E O REGGAE
A capital maranhense é conhecida, entre outros caracteres, pelo apego de grande parte da população pelo reggae. Ritmo predominante em festas pela ilha e nas emissoras de rádio, adentrou na sociedade ludovicense nos anos 70 e sua disseminação foi rápida e tomou conta da que veio ser chamada de "massa regueira", compreendendo os setores mais pobres da sociedade, isto é, a maioria da população .
O reggae surge na Jamaica por volta dos anos 60 com influências da salsa, do calypso e do mambo caribenhos, do Rythm and Blues americano e do rastafarianismo (religião com base bíblica que dava esperanças de libertação da opressão dos jamaicanos com vista à volta para a "mãe África") . As músicas falavam das relações sociais, das opressões sofridas pelas classes subalternas como forma de conscientização, dos pobres e discriminados jamaicanos. Seus expoentes, como Bob Marley, Jymmi Cliff e Peter Tosh fizeram sucesso em vários países do globo e foram os primeiros cantores de reggae a ganhar a popularidade dos brasileiros . Segundo Carlos Benedito da Silva, o reggae é
[...]um ritmo musical que traz as marcas da opressão, identificou-se com as angústias da população dos bairros pobres e negros da periferia de São Luís. Através das radiolas e dos programas de rádio, o ritmo espalhou-se por toda a cidade, como um ?grito forte? (e talvez inconsciente), que representa um estímulo à resistência contra a opressão do dia-a-dia para essa parcela da população

Talvez pela grande quantidade de negros e pobres no Maranhão (hoje o ente federado mais pobre do Brasil), assim como na Jamaica, o reggae teve grande aceitação pelo povo de São Luís. As festas na ilha já eram embaladas por outros ritmos caribenhos como o merengue e pelo forró, típico da região nordeste do país. O reggae ao chegar tomou conta dessas festas, impulsionado pelas radiolas (sistemas de som) que já existiam e que, a partir de então, tocavam exclusivamente esse ritmo. Outro motivo significante para a grande aceitação desse ritmo foi o seu apelo emocional, que apesar da população não entender as letras em inglês (a maioria dos reggaes tocados em festas e programas de rádio não são em português, até mesmo aqueles de compositores maranhenses), a entonação de voz, e o modo de cantar de vários jamaicanos demonstra a conotação emotiva que envolveu os ouvintes . Além disso, como se trata de música tocada por radiolas e não bandas convencionais, o custo de "show" é mais baixo, logo os ingressos são vendidos em preços bem acessíveis à população mais carente.

2 O REGGAE COMO ELEMENTO CULTURAL DE SÃO LUÍS
O reggae serve de instrumento de identidade cultural. Grande parte dos negros e pobres ludovicenses tem o reggae não só como música, mas como estilo de vida. Essa música é fortemente intrínseca ao dia-a-dia dessa parcela da população. As "marcas" formadas pelo desenvolvimento cultural, tais como a dança, o modo de vestir, jeito de ser, linguajar têm importância para afirmação da identidade e especificidade dos regueiros .
O fato do reggae não ser formalmente considerado patrimônio cultural evidencia o preconceito e receio da classe dominante frente a essa forma de expressão cultural. O reggae em São Luís é uma alternativa de lazer que é considerada perigosa pela elite, pois traz aos seus ouvintes a possibilidade de mobilização e resistência contra a discriminação e a marginalização, assim como o é na Jamaica . Diferente do tambor de crioula cujo exercício se restringe a uma parcela pequena da população que ainda resgata essa produção cultural e do bumba-meu-boi cujos arraiais pertencem a grupos dominantes da sociedade.
A Constituição de 1988 define patrimônio cultural no seu art. 216:
art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material ou imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
I ? as formas de expressão;
II ? os modos de criar, fazer e viver;
III- as criações científicas, artísticas e tecnológicas;
IV ? as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais;

Logo, faz-se evidente a consideração do reggae como patrimônio cultural do povo de São Luís, haja vista que ele é bem de natureza imaterial, tomado em conjunto, refere-se à identidade de grande parte da população, é forma de expressão e modo de viver. O requisito de existência de nexo vinculativo com a identidade e memória de grupos formadores da sociedade brasileira, necessário para que certo bem seja considerado patrimônio cultural e histórico, é constatado entre o reggae e grande parcela da população de São Luís .
É possível vislumbrar até uma conexão, isto é, uma "aproximação rítmica" entre o bumba-meu-boi, o tambor de crioula, outras manifestações culturais tipicamente maranhenses, e o reggae daí resultando a grande aceitação desses ritmos na população maranhense .

3 PROTEÇÃO DO REGGAE COMO DIREITO DIFUSO CULTURAL

Segundo a Constituição Federal
Art. 215. O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais.

A tutela do meio ambiente cultural tem como objeto imediato a proteção do patrimônio cultural de um povo . Percebe-se, assim, a preocupação do legislador constitucional com o exercício das manifestações culturais e seu fomento. Em decorrência disso, faz-se necessária a proteção do reggae como patrimônio cultural, visto que todo bem referente à cultura integra a categoria de bem ambiental e, portanto, difuso .
Com relação à competência material, segundo a Constituição, é comum a todos os entes federados de acordo com o artigo 23, V, in verbis
Art. 23. É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios:
(...)
V ? proporcionar os meios de acesso à cultura, à educação e à ciência.

A Constituição consagra essa proteção no seu artigo 216, cuja redação segue:
Art. 216 (...)
§1º O Poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, registros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de acautelamento e preservação.

Disso decorre a responsabilidade não somente do Poder Público, mas também de toda a comunidade em defesa de seu patrimônio cultural. Assim, o constituinte estabelece mecanismos para efetivação da proteção e fomento do bem ambiental cultural, como o reggae em São Luís. Com estes mecanismos, segundo José Afonso da Silva:
[...] Modernizam-se e ampliam-se, portanto, os meios de atuação do Poder Público na tutela do patrimônio cultural. Sai-se também do limite estreito da terminologia tradicional, para utilizarem-se técnicas mais adequadas, ao falar-se em patrimônio cultural, em vez de patrimônio histórico, artístico e paisagístico, pois há outros meios culturais que não se subsumem nessa terminologia antiga. [...]

Quando esse doutrinador fala em modernização, refere-se à mudança em relação à Carta Magna precedente, que não regulava os chamados direitos de solidariedade, já que, nos dizeres de Manoel Gonçalves Ferreira Filho, "[...] são projeções recentemente identificadas dos direitos fundamentais. [...]" , por esta razão tais direitos só foram introduzidos na Constituição de 1988.
Dentre os mecanismos supracitados, um deles se destaca para ser aplicado ao reggae, é o tombamento. A palavra tombamento deriva do Direito português, onde o verbo tombar significa registrar, inventariar ou inscrever bens nos arquivos . Ele consiste no registro no respectivo Livro do Tombo do bem que se almeja proteger e preservar sob custódia do Poder Público . O mesmo funciona como instrumento de tutela do patrimônio cultural . Logo, assim como outros patrimônios culturais maranhenses, como o centro histórico de São Luís, o reggae deve ser tombado para fins de registro e possibilidade de políticas que visem à preservação dessa manifestação cultural e seu fomento.
Vale analisar de que maneira seria realizado este tombamento, tendo em vista a peculiaridade da situação de se tombar um bem imaterial, como é o reggae. O tombamento propriamente dito não ocorre com relação a esse tipo de bem, mas existe um procedimento semelhante, e mais adequado, que possui a mesma nomenclatura da relativa aos bens materiais. Este processo é ministrado pelo IPHAN, Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que é uma autarquia federal vinculada ao Ministério da Cultura, responsável por preservar a diversidade das contribuições dos diferentes elementos que compõem a sociedade brasileira e seus ecossistemas . Tal procedimento veio a ser regulado com o Decreto Federal 3.551 de 4 de agosto de 2000. Nele estão dispostas as diretrizes para que se pleiteie a admissão no Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial do Programa Nacional do Patrimônio Imaterial. Nas palavras de Édis Milaré este Decreto foi estabelecido "[...] visando à implementação de política específica de inventário, referenciamento e valorização dos bens culturais intangíveis. [...]" .
O pedido para a abertura do processo de registro poderá ser realizado de maneira legítima pelos seguintes entes: Ministério de Estado da Cultura; instituições vinculadas ao Ministério da Cultura; Secretarias de Estado, de Município e do Distrito Federal; e Sociedades ou associações civis . Destarte, para que se vislumbre o reggae como patrimônio imaterial brasileiro, tal pedido deverá ser realizado, por uma destas entidades, e repassado ao IPHAN que o submeterá ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural , que por fim irá analisá-lo. Cabendo a este último, também, o veredito, caso favorável o movimento cultural será registrado a título de Patrimônio Cultural do Brasil.
Depois de evidenciado o procedimento para o registro, é mister avaliar se o reggae da capital maranhense cumpre os requisitos para se tornar Patrimônio Cultural.
Como estabelece o artigo 1º, § 2.º do Decreto 3.551/2000:
A inscrição num dos livros de registro terá sempre como referencia a continuidade histórica do bem e sua relevância para a memória, a identidade e a formação da sociedade brasileira.

O reggae, como já foi dito, surgiu em São Luís na década de 70, são mais de 30 anos de continuidade histórica, o que relativamente não é muito se comparado a outros movimentos que são Patrimônio Cultural, como o tambor de crioula que é uma tradição secular. Porém, o reggae não apenas se mantém durante estas três décadas como também continua crescendo, possuindo uma perspectiva de continuidade para o futuro. Outro aspecto, que já foi abordado, é quanto à identidade que este ritmo possui com grande parte do povo. O reggae não é apenas um estilo musical para a "massa regueira", mas também um estilo de vida, como supracitado.
Estes fatores evidenciam a capacidade e o potencial evidente que o reggae possui como iminente Patrimônio Cultural do Brasil. Mas a importância disso não está apenas no título, esta é a menor parte, mais relevante é a implementação de medidas de proteção e de valorização que devem ocorrer segundo estabelecido no Decreto Federal.
Outra forma efetiva de preservação do reggae seria o zoneamento ambiental, haja vista que essa manifestação precisa de local adequado para seu exercício, considerando o inciso IV do artigo 216 da Constituição antes aludido que protege os espaços destinados à manifestação cultural, até para que o reggae possa ser exercido de forma livre, sem haver detrimento de qualquer eventual prejudicado.
O zoneamento ambiental decorre de um processo metodológico que deve levar em consideração as características do meio em estudo, procurando equilibrar e organizar o ambiente de maneira homogênea. O reggae precisa de uma zona definida para que possa ser mais bem aproveitado pela população, de maneira que é necessária a criação de tal área.
Édis Milaré expõe o objetivo atribuído ao zoneamento ambiental da seguinte forma:
[...] é precipuamente o ordenamento físico-territorial, numa conceituação geográfica que deve levar em conta a "vocação" própria de cada área, respeitadas as suas características físicas. Verdade é que essa caracterização se destina a compatibilizar as atividades econômicas com o uso daquele espaço, que, por isso, se torna um espaço geoeconômico definido.

Destarte, deve ser realizado um estudo avaliando possíveis áreas que sejam propícias para as festas de reggae, e, assim gerar mais harmonia e entretenimento para aqueles que as frequentam. Ocasionando também um ambiente mais favorável para o desenvolvimento e disseminação desta manifestação cultural.

CONCLUSÃO

A análise realizada neste trabalho visou evidenciar o reggae como um fator de identidade cultural, de grande parte da população ludovicense, comprovando assim, a suma importância de se promover um ambiente adequado e propício para a realização da cultura do reggae em São Luís.
Explanando sobre a chegada deste ritmo caribenho, à São Luís, até os dias de hoje, dando mais relevância à maneira como ele se difundiu e, sua integralização no modo de viver das pessoas, buscou-se demonstrar a possibilidade real de se pleitear, de acordo com as normas federais, a aceitação do reggae, como Patrimônio Cultural do Brasil. Tal título se obtido, resultará não só em um maior interesse da população local, como também trará benefícios, como o auxílio à produção e ao desenvolvimento do reggae.

Roots culture, the reggae music as a factor of identity of São Luís people


ABSTRACT

The present work exposes the reggae as a rhythm that is a factor of identity of São Luiz people. That music is the reflex of the community?s cultural values. Demonstrates how the reggae should be protected as cultural patrimony, despite not be it, formally. The reggae is seen as cultural manifestation, consequently, should be protected and fomented like that. This rhythm, in its Caribbean origins, always had the license to speak about the social relationships of oppression and about the resistance of the poor population, as form of population awareness. As a cultural phenomenon, that reflects the singularity of the São Luís people, the reggae should be considerate cultural patrimony.

REFERÊNCIAS

. Acesso em 15 de maio de 2009.
BRASIL. Constituição Federal. Anne Joyce Angher, organização. 6.ed. São Paulo: Rideel, 2008.
FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. Curso de direito ambiental brasileiro. 10 ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de direito constitucional. 29ª Ed. São Paulo: Saraiva. 2002
MILARÉ, Édis. Direito do Ambiente: doutrina, jurisprudência, glossário. 5 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007
SILVA, Carlos Benedito Rodrigues da. Da terra das primaveras à ilha do Amor: Reggae, Lazer e Identidade em São Luís do Maranhão. Dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Ciências Sociais do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. 1992.
SILVA, José Afonso. Curso de direito Constitucional Positivo. 21ª Ed. São Paulo: Malheiros. 2002.


Autor: Rodrigo Víctor Aragão Batalha


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