Paulo Freire e a questão agrária no Brasil



PAULO FREIRE E A QUESTÂO AGRÁRIA NO BRASIL


Por Júlio Rangel Borges Neto


Antes de adentrarmos na problemática da questão agrária em Paulo Freire, mister se faz penetrarmos em sua teoria geral sobre os excluídos, entre os quais se incluem os sem terra e a própria questão agrária que os engloba. Assim sendo, na visão de Paulo Freire, os homens se constituem problemas em si mesmos e assim se consideram, pois pouco ou nada sabem de si e muito menos da posição que ocupam no mundo. De tal situação, surge o problema do homem e o seu processo de humanização, assim como o seu oposto a saber, a desumanização deste como realidade objetiva dentro da história.

Dentro desta realidade, os homens duvidam da possibilidade de sua humanização, razão pela qual se consideram como projetos inacabados em permanente construção, o que os coloca numa busca desesperada e sofrida para encontrar a si próprios e a sua dignidade perdida na sua trajetória de desumanização. A humanização é a vocação e o direito de todo homem, não importando a sua origem, caráter, comportamento ou condição social, mas mesmo assim, essa vocação lhe é retirada e negada todos os dias através da exploração e da opressão que lhe é imposta pelos donos do capital, dos meios de produção e no nosso caso específico das terras (latifundiários). Diante de toda essa injustiça social, os indivíduos sem vêem desprovidos de sua liberdade, de sua consciência, únicos atributos que os fazem se diferenciar dos outros animais, por isso mesmo, passam a se considerar iguais a estes, não sendo mais gente, mas meros semoventes, escravos da espoliação, da predação do homem sobre o próprio homem, num verdadeiro "canibalismo social". Tal estado de coisas encerra em si mesmo o conceito mais perfeito de desumanização do homem.

Apesar de colocados quase na condição de escravos, o homem ainda alimenta o anseio de liberdade, de desalienação, pensa em voltar a ser gente, a se firmar como pessoa dentro de um processo de humanização. Porém, ao mesmo tempo em que é tomado por este estado de espírito, também se deixa levar quase que imediatamente pela passividade e pelo conformismo, considerando sua situação atual como algo imutável e mesmo transcendental, pois na sua concepção distorcida da realidade, Deus quer assim e nada pode ser feito para mudar a ordem das coisas. Assim, o homem aceita ser menos e desiste de ser mais, como dizia Paulo Freire. No entanto, o grande Educador pernambucano radicado em São Paulo, nos alerta que esta imobilidade mental e física para mudar as coisas, é estimulada pela ideologia do opressor e que apesar disso, a história da humanidade em todos os sentidos, não é uma realidade dada e, portanto pode ser alterada, desde que haja uma mobilização maciça dos oprimidos neste sentido, só assim será possível recuperar a humanidade perdida.

Para Paulo Freire, um dos maiores exemplos desta mobilização maciça dos oprimidos para operar profundas mudanças na situação de grande injustiça social que ai esta e assim caminhar na busca efetiva da humanização, é a marcha e o próprio movimento dos sem terra. Na primeira parte de sua última entrevista dada a TV PUC, o educador deixa bem claro a sua imensa satisfação em estar vivo para presenciar a marcha dos sem terra por novas mudanças na realidade agrária e rural do país, acrescentando ainda, que morreria feliz se a exemplo dos sem terra, o Brasil se enchesse de marchas de contestação por mudanças, seja a marcha dos sem teto, dos sem escola, dos sem oportunidade, enfim, de todos aqueles em estado de opressão e exploração. Paulo Freire lamenta ainda, que se sente muito triste por seu grande amigo Darcy Ribeiro não estar mais vivo para ver toda essa marcha de luta empreendida pelos sem terra contra o latifúndio, a favor de uma reforma agrária realmente eficaz e de melhores condições de trabalho no campo.

Na entrevista, Paulo Freire não poupa elogios aos sem terra, que segundo suas próprias palavras, "são uma das expressões mais fortes da vida política e cívica deste país", completa ainda, que os mesmos são mal vistos pela sociedade brasileira, inclusive por aqueles que se dizem progressistas, que os colocam como "uns desabusados e destruidores da ordem". No pensamento de Paulo Freire, os sem terra não tem outra alternativa para transformar a perversa situação agrária do país, que não seja por meio da luta ou da briga acirrada; para ele, se não for assim, não se obterá um mínimo de mudanças no status quo vigente. Tais marchas, em especial a dos sem terra, são para o grande educador um evento histórico cheio de significado e importância dentro do processo de humanização dessas pessoas, que outra coisa não sabem fazer, do que arar a terra e dela retirar seus frutos.

Para facilitar o entendimento do pensamento de Paulo Freire a cerca da questão agrária, passamos agora por último, a nos debruçarmos sobre a própria questão agrária em si como realidade histórica. Apesar de a escravidão ter sido extinta (1888), a mesma não trouxe como seria de se esperar o fim ainda que gradual de uma de suas principais bases, o latifúndio, o qual persiste incólume e aguerridamente em nossa realidade objetiva desde os imemoriais tempos coloniais. Mudou-se o tipo de escravidão, mas esta permaneceu, só que de uma forma bem mais sutil, com a troca dos braços negros pelos dos camponeses miseráveis e desvalidos de recursos, submetidos por isso mesmo, totalmente ao latifúndio, a cujo Senhor entregava sua liberdade, consciência e humanidade nada pois, lhe restando assim, que o diferenciasse do escravo ou mesmo de um animal qualquer. Segundo Eduardo Galeano (1996), na região nordeste existe uma proporção de cerca de seis milhões de sem terras para quinze mil proprietários de metade do território nordestino. A realidade, é que a reforma agrária passa longe dos grandes latifúndios ou das regiões ocupadas, as terras que são doadas pelo Estado ou são longe dos centros produtores ou no meio da selva (região norte), e não vem acompanhada de financiamento nem acompanhamento técnico do governo, o que obriga os novos donos a vendê-las para o latifúndio e voltar a condição de sem terra, emigrando para o Sul para ocupar subempregos ou servir de mão-de-obra barata para o próprio Estado, como foi o caso clássico de Brasília.




BIBLIOGRAFIA

FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 17ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1987.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia ? saberes necessários à prática educativa. 25ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 2002
FREIRE, Paulo. A educação na cidade. São Paulo: Cortez, 1995.
GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. 37ª ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1996.
SILVA, José Graziano da. O que é questão agrária. 14ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987.



Júlio Rangel Borges Neto ? Advogado e Sociólogo
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Autor: Júlio Rangel Borges Neto


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