Argumentação, Direito E Literatura



Marcello Caio Ramon e Barros Ferreira
"Uma gaiola saiu à procura de um pássaro".
Franz Kafka
RESUMO
Já há algum tempo, o homem vem tentando conciliar todas as possibilidades advindas da modernidade - e mais presentes do que nunca no contemporâneo - com a vida. Uma vez que é o único ser que tem consciência da própria morte, o ser humano busca dar sentido à vida, preenchê-la diante do vazio hodierno e frente à liberdade de se fazer absolutamente tudo que se queira (tese existencialista), ao que Sartre alcunha angústia humana. Ante a gratuidade da vida de que o homem toma consciência, surge o absurdo: isto é, quando essa gratuidade é descoberta e confrontada à necessidade humana de esgotamento, de atribuição de sentido à existência. Não há sentido; não obstante, a busca por ele continua. O homem aceita a regra suy generis do jogo - de irresignar-se, mesmo contra esta mesma regra. Eis aí o absurdo, o paradoxo contemporâneo.
Nesse sentido, da irresignação, verdades outrora absolutas começam a ser questionadas; todo um sistema vigente passa a ser encarado a partir de olhares mais e mais críticos e é posto, de par em par, em xeque. A mesma sorte assiste à lógica e, outrossim, mais especificamente, à teoria da argumentação. É desta forma que se pretende, aqui ? ainda que brevemente -, analisar-se a teoria da argumentação (em especial, jurídica) que ora se apresenta, sob um prisma um tanto quanto díspar ? qual seja, o do absurdo, que provém muito mais da literatura do que do próprio Direito ou de outros tipos e ramos do conhecimento.
Aspirando à fuga ao mais do mesmo, trivial e ordinário, apresentam-se as obras de célebres autores ? Jean-Paul Sartre, Franz Kafka e Albert Camus -, críticos da contemporaneidade e, por conseguinte, mais que apropriados, uma vez que, cada qual a seu modo, constituem-se expoentes máximos da literatura, do existencialismo e do absurdo. Afinal, o que é o Direito e a própria história senão narrativas? Nesse sentido, também contribuem neste estudo François Andrieux, Chaïm Perelman, Neil Maccormick. Assim, e para complementar, um contexto de desconstrução de Jacques Derrida, por fim, mostra-se, também, uma ferramenta poderosa, não esgotando, todavia, a riqueza que outros autores ilustres, outros ases, emprestam ao estudo da matéria.
Palavras-chave: Argumentação; absurdo; kafkiano; decisionismo; liberdade; literatura; desconstrução; Direito, justiça.

"A cage went in search of a bird".
Franz Kafka
ABSTRACT
For some time, mankind has tried to reconcile all the possibilities which came from the modernity ? and more present than ever in contemporary ? with life. Since it is the only being aware of his own death, man seeks to give meaning to life, fill it confronted to today?s void and freedom to do absolutely everything one wants (existentialist thesis), to which Sartre names human anguish. Faced with the gratuity of life that man becomes aware of, arises the absurd: that is, when this gratuity is discovered and opposed to the human need for exhaustion, to attribute meaning to existence. There is no sense; and yet, he continues searching for it. Man accepts the unique rule of the game: of not conforming even against this same rule. That is the absurd, the contemporary paradox.
Thus, in this sense of discontent, formerly absolute truths begin to be questioned; all this system happens to be viewed from understandings more and more critical and is called into question. The same fate attends to logic and to the theory of argumentation as well. This is how it is intended here - even briefly - to analyze the theory of argumentation presented form an angle somewhat uneven ? that is the absurd, which derives far more from literature than from Law itself or other types and branches of knowledge.
Longing to escape the trivial and ordinary, it is presented the works of plenty of famous authors - Jean-Paul Sartre, Franz Kafka and Albert Camus - critics of the contemporary and therefore more than appropriate, since, each in its own way, constitute the leading exponents of literature, existentialism and the absurd. Accordingly, also contribute with this study François Andrieux, Chaïm Perelman, Robert Alexy. Thus, to complement, the context of Derrida?s deconstruction finally shows up to be a powerful tool, not exhausting, notwithstanding, the wealth that others have loaned this study.
Key-words: Argumentation; absurd; kafkian; decisionism; liberty; literature; deconstruction; Law; justice.

Jacques Derrida já bem classifica ? e é incisivo, taxativo e categórico ao afirmar -: a justiça é uma loucura. É a experiência do impossível. Um devaneio humano, talvez. Um devaneio, decerto, excessivamente utópico. Para Derrida, uma promessa aberta. Realizar-se-á? Nunca, afirma o autor, convicto. Não obstante, caso se a perca de vista enquanto horizonte, tudo estará perdido. Trata-se, pois, de uma impossibilidade imprescindível, na medida em que a sociedade, cada vez mais contingente ? conforme constata Niklas Luhmann -, carece, clama por decisões; decisões, essas, que, obviamente, não se bastam e tampouco poderiam, de modo algum, bastarem-se per si, necessitando, exatamente, de serem justas e justificadas. No Direito, pode-se dizer genericamente que não há ? ou, ao menos, não deveria haver ? fim que justifique meio. Do contrário, cede-se aos riscos de retrocesso que estão e inexoravelmente estarão sempre à espreita. E é precisamente aí que se insere e reside a argumentação, evidenciando-se como possuidora de um papel central dentro de um Estado que se pretende Social, que afirma a liberdade e a igualdade como valores intrínsecos fundamentais e, mais que isso ? em síntese -, Democrático de Direito.
A questão que se coloca, na verdade, tem formulação simples e direta, muito embora não haja uma só resposta ? é provável, mesmo, que jamais haja - e as soluções exijam alto nível de complexidade. O que se pretende é responder a pergunta: como arrazoar uma Teoria da Argumentação Jurídica em meio a essa loucura? Será mesmo plausível e sensato fazê-lo? Será, em resumo, razoável?
De saída, antes de mais anda, é mister uma definição do que seja argumentar. Ora, o senso comum já fornece uma ótima idéia: logo vêm à mente as noções de persuasão, convencimento, defesa de posições, discussão, argüição apresentando e contrapondo razões as quais, através do raciocínio, levem a uma conclusão. Definições vagas e imprecisas academicamente, bem verdade, mas que são um começo central e crucial para se pensar em argumentação, que, por sua vez, traz consigo dois conceitos basilares: contexto histórico e linguagem.
Os argumentos só fazem sentido em determinado lugar e época, o que é fácil notar. Presentemente, por exemplo, não faz mais sentido algum falar sobre a relação direta entre inteligência e o tamanho da caixa craniana, falar sobre superioridade de raças (não obstante ainda persista muitos discursos de cunho neonazistas, xenofóbicos, grupos como a Ku Klux Klan, enfim), argumentar sobre quem vencerá: socialismo soviético ou capitalismo norte-americano, ou mesmo ? ao menos em grande parte da sociedade ocidental ? se cogitar de um poder real absoluto divino. A humanidade, hoje se sabe, encontra-se sempre imersa na

história, não podendo se situar fora dela. Também assim, por óbvio, os argumentos, conseqüentemente.
Ao lado do contexto histórico dos argumentos, igualmente aparece a já referida linguagem. A humanidade caracteriza-se justamente pela tradição e a forma de estar no mundo comporta o passado como pressuposto para o desenvolvimento da linguagem, a qual, por ser constantemente reinterpretada, constitui a realidade. Toda a história desenvolve-se à luz da linguagem. Ser que pode ser compreendido é linguagem. Nesse exato sentido, o filósofo Michel Foucault é lembrado. Para este autor, a fala constitui um fim em si mesma, de tal sorte que seu respectivo poder controla o falante. A linguagem e o discurso têm o papel de formadores da sociedade, e os argumentos, por conseguinte, seguindo na mesma esteira, também. Ela - a linguagem - possui a capacidade de narrar alguma coisa diferente do que narra, ou, resumindo, ela diz por intermédio dos seres humanos, na medida em que eles mesmos a dizem, afirma Lacan. É nesse sentido que Gadamer assevera que ambos, ela, linguagem, e a história, sempre precedem e sempre se antecipam a qualquer reflexão. O homem se encontra impreterivelmente mergulhado nesses dois: léxico e tradição.
Posto isso, é imprescindível notar a situação existencial e hermenêutica em que ora se insere o homem. A sociedade atual ? ocidental - é caracterizada pela comunicação, de maneira mais geral, mas também centralmente pela informação, alicerce social contemporâneo. E, de um viés mais característico, mais específico e pouco menos trivial, pela propaganda. Destarte, tem-se um contexto de alienação em que a única defesa da pessoa é o senso crítico, a análise crítica da fala, dos argumentos e das falácias, pois, do contrário, cede-se facilmente ao que quer que seja que esteja em pauta. Aí reside uma importante característica da argumentação em geral que, analogamente, pode ser transportada para o contexto jurídico, no sentido de filtrar, peneirar e separar, por meio do senso crítico, o que de fato são bons argumentos dos sofismas, do discurso vazio que obedece à famosa regra, para usar o clichê, de "falar muito e dizer muito pouco", tão corrente.
Essa é, pois, de maneira generalíssima, a sociedade global contemporânea, sociedade das imagens muito mais do que das palavras; da comunicação; da velocidade. Mas e quanto à situação do homem, nomeadamente? De fato, muitos são os exemplos quotidianos culturais, já enraizados na sociedade, que ilustram certa falta de sentido da vida deste, certa dúvida, um conflito existencial. Como citação, fica a seguinte canção infantil inglesa:
Row, row, row your boat
Gently, down the stream.
Merrily, merrily, merrily, merrily,
Life is but a dream.

Este último verso é especialmente significativo e enigmático. "A vida é apenas um sonho". Remete ao filme Waking Life. Não seria a vida um sonho? Quem garante que não é, ao melhor estilo Matrix ou A Origem, ou talvez pouco menos devaneio, como n?O Show de Truman? Será que, metafórica e mesmo biologicamente falando, não se vive para sonhar, ao invés de sonhar para poder viver? Assim, a vida pode ser encarada como tendo valor equivalente a um sonho. Ou como um nada, uma ausência de sentido total, endereçando ao pensamento de Camus, do absurdo, do homem absurdo, que se vê e se percebe face ao sem sentido que é a vida, e tenta, paradoxalmente, atribuir-lhe algum significado. Seja como for, questiona-se a necessidade implícita de, na vida, empurrar-se o barco rio abaixo, à jusante, em alusão clara à natureza paradoxal do tempo no que concerne ao livre arbítrio do homem em um universo de simples e pura causalidade materialista.
Nesse último ponto, o existencialismo sartreano afirma com todas as letras que o homem está condenado a ser livre. Daí, surge o que Sartre denomina angústia, isso é, a possibilidade de se fazer qualquer coisa que se queira, muito embora não escolher não seja uma opção. Em outras palavras, aí reside a beleza da escolha: pode-se interpretar essa frase ? da condenação à liberdade - enfocando-se esta ou aquela, isto é, pode-se fazer tudo, é bem verdade, mas há que se fazer alguma coisa, impreterivelmente. E daí ? justamente dessa pretensa descrição da situação humana contemporânea - surge um grande problema: que valor tem um argumento, ante essa quase libertinagem? Se é verdade que se pode fazer tudo, pra quê, então, se justificar, argumentando? Que valor assiste ao regramento, ao próprio Direito? Na verdade, Sartre rejeita que sua tese conduza ao libertino e ao anarquismo, e, de fato, seria melhor se falar em algo de diverso para a situação humana, o qual não é outra coisa, senão o absurdo, já mencionado, de que fala Albert Camus.
Por trás de palavras importantes, como justiça e Direito, percebe-se o homem jogado no absurdo, à deriva. Nessa contextura, duas obras do autor são fundamentais e complementares, quais sejam, O Estrangeiro e O Mito de Sísifo. A primeira delas é nada mais, nada menos, que a representação escancarada da condição humana contemporânea: o homem se sente como estrangeiro no próprio mundo, na própria vida. Camus narra a história de um homem cujas circunstâncias acabaram induzindo-o a matar um árabe sem querer, "por causa do sol", e os posteriores desenrolar de seu julgamento e encarceramento paralelos. É a história, em resumo, de um sujeito que está naquela determinada situação peculiar porque sabe que sua existência é sem sentido. Já o segundo fala filosoficamente do absurdo, da guerra quotidiana, da tragédia de quando o homem toma consciência do sem sentido que é a existência.

O mito de Sísifo em si, parte final da obra de Camus, a seu turno, ilustra igualmente o absurdo ? e resume bem o livro inteiro - com a metáfora de um homem que é condenado a subir uma ladeira empurrando uma pedra eternamente, porquanto, no momento em que ele atinge o cume, a pedra volta a rolar ladeira abaixo, sendo sua tarefa empurrá-la novamente e assim sucessivamente, ad eternum. Metáfora ? dentre muitas interpretações - da rotina, talvez, mas, mais precisamente, da vida em si. Sísifo (e o homem representado pela metáfora), por fim, vai acabar por conseguir encontrar um sentido na pedra, apesar da consciência da inutilidade de sua ação, assevera Camus. Traçando o paralelo, o homem consegue fazer o mesmo na vida, a despeito da e na própria repetição. Trazendo a leitura para o contexto do Direito, uma interessante metáfora é a do intérprete, das aplicações dos textos legais no caso concreto: quando se acha que se descobriu o sentido, volta-se ao vale, na mesma rotina, e acaba-se por se encontrar significação.
É curioso notar que O Estrangeiro faz uma denúncia da fragilidade do discurso jurídico e da estrutura do Direito na sua capacidade de apreender e compreender as ações humanas. Eis porque essa obra é assaz fundamental para a argumentação jurídica. Mostra-se um sistema jurídico desvirtuoso, no qual se julgam as pessoas, e não seus atos, como demonstra uma passagem em que se cogita (ironicamente) se Meursault ? personagem principal da obra ? estava sendo acusado de não ter ido ao enterro da mãe ou de ter matado o indivíduo árabe. O que poderia, a princípio, concorrer a favor da personagem, acaba tomando sentido contrário e indo de encontro à primeira acepção. É nessa contextura que se faz uma denúncia da retórica, do poder da palavra, que pode transformar a realidade dos fatos, já flagrada por Lacan, Foucault, Derrida... Os argumentos, por sua vez, acabam tendo a mesma sina. É uma maleabilidade sem igual que, por fim, prejudica o orador, aquele que vive da argumentação, na medida em que se o despe de qualquer ética, aos olhos da sociedade e mesmo dele mesmo, conduzindo, por fim, ao decisionismo, conquanto, ao mesmo tempo, leva ? deontologicamente - à benéfica consciência deste, de que, radicalizando, "se decide com base no que se comeu no café da manhã", simplesmente procurando os argumentos para esse ou para aquele posicionamento.
É assim, em resumo, que se tem uma sociedade tão peculiar, na qual a argumentação, que deveria ter papel basal, alicerce de toda uma prática discursiva, passa, muitas vezes, despercebida: por meio da alienação que se aproveita da resignação subjetiva, da aceitação social acrítica. O universo se complicou, se adensou, os detalhes se multiplicaram e abriram passagem à alienação, à visão parcelada, à falsa consciência. Não se ensina, exemplificando, a pensar na escola, a questionar. É pura aceitação, assimilação e

reprodução, dando ensejo a um ciclo. O único pensamento que se ensina, na maioria das vezes, é o logicista, o pensamento matemático-reducionista do óbvio. Há, além disso, tão-somente uma história não crítica, repetitiva, caduca, e igualmente a geografia, a gramática, a filosofia e a sociologia, enfim. É muito mais importante a disciplina (no sentido militar), a ordem e obediência cega. Não há interesse em se problematizar. Provável herança de uma ditadura militar, esse pensamento está condensado em uma canção-chave:
Há soldados armados, amados ou não;
Quase todos perdidos, de armas na mão.
Nos quartéis lhes ensinam uma antiga lição:
De morrer pela pátria e morrer sem razão.
A estrofe, da música Pra Não Dizer que Não Falei das Flores ? também conhecida por Caminhando -, cuja autoria e composição são de Geraldo Vandré, retrata a realidade iniciada na década de 1960 no Brasil com o golpe militar de 1964, que instaurou um regime ditatorial por meio da deposição do então presidente João Belchior Marques Goulart, o Jango. De cunho fortemente político e dirigida aos militares de então, não se afasta muito da realidade atual, no sentido da falta de crítica, da passividade excessiva. É explicito, também, o conceito de Estado absoluto no período ditatorial. Os "soldados armados" que intervêm nas vidas dos cidadãos e os seletos que estão no poder - que são, parafraseando outra conhecida canção, "o rei, o bedel e o juiz" (João e Maria, Chico Buarque) - impõem leis ao bel prazer, inclusive ilegítimas, tais como os Atos Institucionais tão conhecidos, em especial o quinto e mais antidemocrático deles. O Direito passa a ser entendido como subordinado ao poder, segundo uma óptica que se aproxima muito da schmittiana. Conquanto não houvesse um führer propriamente dito, incorporando a vontade do povo, o decisionismo evidencia-se. E reitera-se, ao longo da música, o refrão
Vem, vamos embora,
Que esperar não é saber!
Quem sabe faz a hora,
Não espera acontecer.
, convidando, tão-só, a se pensar, a se refletir, a questionar. E como não lembrar, nessa trama, nesse enredo, um autor capital: Kafka, em um primeiro momento, quando se fala em ditadura, por causa da onisciência e constante observação descrita em Uma Pequena Mulher (Semelhante a algumas obras de George Orwell, a saber, 1984 e A Revolução dos Bichos).
Pois bem, Franz Kafka é um autor excessivamente caro ao Direito. Depoimentos perturbadores de uma voz tresloucada e "desloucada" no mundo, como propõe Günther Anders, grande porção de suas narrativas origina-se das experiências dilacerantes do real, ao passo que, outras vezes, como na já consagrada e famosa metamorfose sofrida por Gregor

Samsa, é o inusitado que irrompe inesperadamente no enredo, suscitando nos personagens pouco mais que uma espécie de enfado resignado, ou, em síntese, um absurdo. O espantoso kafkiano reside exatamente no fato de que o espantoso não espanta ninguém.
Kafka deslouca a aparência aparentemente normal deste mundo louco, para tornar visível sua respectiva loucura. Manipula, contudo, essa aparência louca como algo muito normal e, com isso, descreve mesmo o fato louco de que o mundo louco seja considerado normal. 1
A começar por suas narrativas Diante da Lei e O Novo Advogado, descreve-se bem a realidade atual de alunos (de Direito, no caso, mas retomando e reafirmando essa temática importante) que não pensam - simplesmente reproduzem as leis e os manuais. Curtas, aparentemente simplórias e diretas, ambas ilustram o momento de positivação do direito, quando a técnica e a sistematização jurídicas substituíam quase que de súbito (seguindo o fervor cientificista do início do século XX) a preocupação ética de outrora. Dentre muitas leituras possíveis de cada uma das narrativas ? psicológica, marxista, religiosa (do texto revelado), enfim -, duas ? uma de cada ? são, no mínimo, curiosas para se pensar em uma teoria da argumentação jurídica.
Na primeira, um cidadão comum encontra-se, como o título bem esclarece, diante da lei, tentando ingressar no discurso jurídico, tão hermeticamente fechado, cujas portas de acesso contam com vários porteiros. Metáfora (aliás, talvez, pois Kafka se limita tão-só a sugerir e evocar ? trabalhar mediante o enigma -, em vez de asseverar, dando às coisas uma qualidade profundamente caleidoscópica) do interminável tecnicismo constitutivo do direito positivo ora vigente, nota-se a barreira entre sociedade e a própria lei que lhe "pertence". As portas destinam-se tão-somente àquele cidadão comum ? um humilde camponês -, embora ele jamais consiga adentrar. Expõe-se o paradoxo de o direito só fazer algum sentido em função do homem, sob pena de inexistência caso não o seja; não obstante, faz-se mais cogente desvendar antes o nome de tal ou qual recurso cabível, ao invés de debater o papel da justiça, de argumentar, em uma sociedade mais e mais contingente, nos termos de Luhmann. Destarte, e enfocando-se a figura do porteiro ao invés do camponês, o estudante típico do direito passa a ser visto como mero "porteiro" da lei, haja vista que desconhece outra coisa que não o tecnicismo jurídico, que, em verdade, não passa de um capítulo da construção histórica do direito. A metáfora sugerida é brilhante, tal qual o autor, e aponta muito para a argumentação, dessa vez, sim, jurídica; especificamente, a pobreza (da maioria) dos bacharéis em direito, que não evoluem há décadas, quiçá séculos, se atendo aos mesmos ensinamentos ultrapassados, se agarrando a eles com toda força que têm.
1 ANDERS, Günther. Kafka: Pró & Contra. Trad. e posf. Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 15.

Outrossim n?O Novo Advogado, apresenta-se talvez o paradigma e a metáfora perfeitos do advogado moderno: o "advogado-Bucéfalo" que substitui, por assim dizer, o "advogado-Alexandre". "Muitos seguram a espada, mas só para brandi-la". Muitos mesmo apenas carregam a espada consigo e se contentam com isso. Ser advogado-Alexandre exige mais que a mera técnica, mais do que o amplo e minucioso conhecimento das legislações e dos códigos. Exige mais que argumentar, e, curiosa e paradoxalmente, de certa forma, exige muito menos. Exige pensar, tão-só. Simplesmente isso. Na obra de Kafka, transparece-se que, mais do que saber usar o conhecimento das legislações e dos códigos, há de se saber como criá-los; mais do que criá-los, seria preciso saber a hora de abandoná-los, ou mesmo destruí-los. A narrativa expõe a imprescindibilidade de mais que um defensor da lei: um defensor do Direito, capaz de empunhar uma espada (a lei) a fim de apontá-la, não apenas brandi-la. Conquanto as faculdades de Direito pareçam ignorar isso, essa necessidade de se pensar, de fazer valer o cogito ergo sum, endereçam-se essas obras nesse sentido - de uma pretensão voltada à formação de advogados-Alexandres.
Já se tratando mais objetivamente do Direito, ao invés do olhar subjetivo - do advogado -, vêm outras duas obras, ambas também da autoria de Kafka, quais sejam, O Processo e Na Colônia Penal. Na primeira, trata-se da condenação da personagem (no caso, de Josef K.) sem que este saiba por que se o condena. K. desconhece, do início ao fim do romance, seu crime, luta infrutiferamente para saber quem o acusa, de que o acusa e com base em que lei, sem nunca chegar ao juiz e inclusive abdica de se defender, de certo modo, pois não aceita sua acusação. Remetendo a Camus (que inclusive dedica parte de sua obra O Mito de Sísifo à análise de Kafka), as situações de absurdo existencial chegam ao limite, tendo em vista que a lei, que supostamente deveria iluminar o caso, acaba por obscurecê-lo. Essa mesma lei apresenta-se como tendo um ponto cego em seu cerne, pois ela é incapaz de responder a questão de quem está dentro e quem está fora dela mesma. Ela anseia por ser toda-poderosa, mas reconhece que há sempre algo que escapa a ela.
Na Colônia Penal é talvez mais incisivo na descrição do Direito e do absurdo. Tem-se a trivialidade do grotesco em seu ápice. Ilustra o problema do funcionamento do julgamento da pessoa. Fala sobre uma máquina cujo poder é o de executar sentenças. Trata-se da história absurda (ou não) de uma Colônia que usa esta máquina com o fim de torturar e matar pessoas de uma maneira deveras peculiar ? inscrevendo em suas peles seus respectivos crimes, a fim de que morram de hemorragia, prorrogando, contudo, bestialmente, suas vidas com suprimentos -, transformando a execução em espetáculo (muito apreciado pelo oficial operador da máquina e, antes, também por toda a população da Colônia), sem que os

executados muitas vezes sequer saibam o porquê de suas respectivas mortes. O livro é, dentre outras, uma crítica aos sistemas despóticos de poder que já se anunciavam, mas também ao Direito, que tem que dizer o porquê de seu atuar. Tem que argumentar de fato, que fundamentar as decisões, sobretudo por se tratar, a situação social atual, de um Estado que se pretende ? vale redizer - Democrático de Direito.
O conto é brilhante na medida em que consegue expor a inquisitividade do Direito, o atributo (tão rejeitado, até hipocritamente, mas tão presente) da culpa pressuposta, mesmo séculos após o fim da Idade Média, mesmo séculos depois do advento do Iluminismo. Demonstra como o Direito faz a parte suja da história, legitima as situações mais repugnantes (dos quais os Atos Institucionais são uma pequena amostragem). Expõe também, ironicamente, a necessidade de não se pensar, de se cumprirem as regras sem objeção, pois quem não compreende, não pode agir, torna-se um homem perplexo. Por outra volta, também mostra uma saída, uma perspectiva condizente com um Estado Democrático de Direito, quando o explorador, outrora mero expectador, decide tomar uma posição ética com relação à barbárie que se anunciava no conto, decide dizer não, expressar-se. Tem-se, dessa sorte, a preocupação com a democracia e com o sujeito além da norma propriamente dita, um sujeito que questiona e que tem que questionar, e que assume seu pensamento, sua posição de inconformismo com aquilo de que ele discorda e quase não é capaz de acreditar.
Por mais absurda que possam parecer as situações descritas em todos esses contos, de Kafka, Camus e tantos outros, são condições reiteradas na história, as quais guardam uma incômoda correspondência biunívoca com o hodierno. O Direito tem essa característica. Ora, que outra coisa pode ser dita de Guantánamo? Não é exatamente tal e qual a imagem retratada praticamente um século antes, por Kafka? Não há necessidade de se ir tão longe. Analisando a polícia, Derrida afirma veementemente, com todas as letras: ela legisla. Ela cria e aplica e acaba por legitimar a pena de morte a inocentes (aliás, a qualquer um), aleija-os, cega-os, tortura-os, muito embora o único "crime" que cometeram foi existir (quantos exemplos não fornecem as balas perdidas?).
Que valor, então, tem ? pergunta-se novamente - a argumentação em meio a esse decisionismo? Ante essa sociedade que, muito embora já tenha verificado a e se conscientizado da crise do cientificismo e do cartesiano, aspira tecnologia, aspira progresso no sentido mais positivista ? filosófica e normativamente -, como bem mostra o lema da própria bandeira brasileira? Que valor assiste, por fim, à argumentação, quando já se sabe ser "fácil obterem-se confirmações, ou verificações, para quase toda teoria ? desde que se as

procure" 2, segundo postula Karl Popper, e quando já se tem consciência da impossibilidade demonstrada por Kurt Gödel, pelo teorema da incompletude, mesmo de se afirmarem os sistemas mais coesos e racionais possíveis? Não há uma resposta propriamente dita, mas Perelman fornece um esboço, quando
combate a opinião de tantos filósofos que consideraram - e continuam considerando ? que toda forma de raciocínio que não se assemelhe ao matemático não pertence à ciência. Contra esta opinião injustificada e caduca, sustenta Perelman que há "mesmo formas de raciocínio mais elevadas?, que não constituem propriamente cálculos tampouco podem ser formuladas como ?demonstrações?, pertencendo, em contrapartida, à argumentação". E é esta "precisamente o tipo de raciocínio empregado pelo jurista..." A tradição cartesiana, que busca acima de tudo a evidência, desdenha qualquer proposição que não possua o caráter do óbvio, do indiscutível, do exato, do preciso. Todavia, esta concepção logicista ou matematizante do pensamento é demasiadamente estreita, pois não abrange grande quantidade de raciocínios, que não têm e nem podem ter forma demonstrativa... Mas sucede que a própria índole da deliberação e da argumentação se opõe à evidência e à necessidade absoluta; porque não se delibera nos casos em que a solução tem caráter de necessidade, como não se argumenta contra a evidência. A argumentação tem seu sentido no verossímil, no plausível e no provável, escapando estes à certeza de um cálculo exato de que resulte uma única solução justificável em termos absolutos... Já os cultores das ciências naturais apenas reconhecem a evidência da intuição sensível, da experiência e da indução... Tanto a concepção cartesiana quanto a dos cientistas empíricos mutilam o campo da razão, haja vista justamente que lhe negam capacidade para tratar dos domínios em que nem a dedução lógica tampouco a observação dos fatos podem fornecer-nos a solução dos problemas. A aceitar-se esta circunscrição da razão em tais domínios, não nos restaria outro recurso exceto o de neles entregar-nos às forças irracionais, a nossos instintos ou à violência.3
Essa citação, deliberadamente longa, parece resumir aspectos nucleares da teoria da argumentação. Conforme já assinalado, a argumentação em si, o exercício do pensamento está escasso. Entretanto, ainda há lampejos, ainda há quem se disponha a pensar no que é argumentar, persuadir, convencer, pensar "além da ponta do iceberg". Continua a existir uma preocupação com o discurso, com a justiça e com o estreito vínculo existente entre esses dois, conquanto, em nome da alienação, quase não se difunda isso. Raridade, de fato, mas pode-se notar isso, ilustrativamente, em dois filmes: Doze Homens e Uma Sentença e Obrigado Por Fumar.
O primeiro filme mencionado, Doze Homens e Uma Sentença, gravado em 1957 (direção de Sidney Lumet) e regravado posteriormente em 1997 (nesta regravação, dirigido por William Friedkin), é, resumidamente, acerca de um jovem porto-riquenho cuja acusação é a de ter matado o próprio pai. Doze jurados, dos quais onze são inicialmente a favor da condenação do jovem, então, se reúnem para decidir a sentença, oferecer um veredicto (ressalte-se que Kafka possui uma obra homônima deste último termo, está presente também aqui). O jurado número oito, que ao fim do filme tem seu nome revelado - senhor Davis -, é o
2 POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Trad. de Sérgio Bath. 5. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2008, p. 36.
3 PERELMAN, Chaïm. De la justicia (De la justice). Trad. de Ricardo Guerra. Prefácio de Luis Recasens Siches. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1964, p. II-III, grifo do autor.

único que acredita na inocência do rapaz (ou, se não acredita, não está certo do merecimento da condenação, não está plenamente convencido) e, enquanto ele tenta convencer os outros do possível erro da sentença condenatória, traços de personalidade de cada um dos jurados ? estereótipos - vão sendo revelados.
Neste filme, é eminente o papel dos fatos e da dúvida razoável, mas também do discurso que manipula e escancara a relatividade dos fatos. A princípio, como mencionado, onze dos doze jurados têm a condenação do rapaz como certa, têm os fatos do julgamento como verdadeiros e, mais que isso, irrefutáveis, dados. Tão-só o senhor Davis se opõe à concepção e ao entendimento dominante no júri. Por meio de uma mistura de questionamento, meio que de retórica e maiêutica ao melhor estilo Sócrates, de refutação, pouco a pouco o jurado número oito vai distorcendo os fatos (em certa medida, até desconstruindo os fatos, para citar novamente Jacques Derrida) - ou, no caso e dependendo do ponto de vista de quem observa, mesmo reparando os fatos distorcidos - e implantando nos outros jurados a dúvida razoável que ele inicialmente possui acerca da condenação do jovem. Uma vez implantado o germe da idéia na mente dos outros jurados, a semente, a dúvida cresce e, uma por uma, as argumentações da acusação são postas em xeque, o que, por sua vez, dá lugar, em cada um dos jurados, à mesma dúvida razoável, até o último e mais persistente ? e teimoso - deles acabar votando pela não condenação do réu. E tem-se evidenciado a força do semântico, do léxico.
A lição deste filme (ao menos uma delas), em última análise, é justamente sobre a relatividade dos fatos, do que se tem hoje por prova, de todo um sistema social complexo e seus fundamentos na evidência, no empirismo, no irrefutável. Até que ponto pode-se considerar o próprio fato como fato? Como se encontrar sempre inserido na história, reinterpretando constantemente o passado e afirmar o poder da evidência? Mais uma vez, ratifica-se a crítica enquanto fundamental na sociedade contemporânea cada vez mais globalizada, com cada vez mais informação disponível, ao passo que também se refere a Perelman e aos argumentos, escapando ao matemático, ao cartesiano.
O outro filme supracitado, Obrigado Por Fumar, a seu turno, insere-se em um contexto menos jurídico e mais argumentativo. Inovador, criativo. Baseado no livro de Christopher Buckley, e cuja direção é assinada por Jason Reitman, a história versa basicamente sobre a indústria do fumo e das artimanhas de um lobista da área, Nick Naylor, o protagonista. Personificando publicamente a indústria do tabaco, ele trabalha "advogando" em favor dos direitos dos fumantes. Quando desafiado pelos vigilantes da saúde aliados a um senador oportunista que deseja rotular como veneno os maços de cigarros, instituir nos maços

a imagem de uma caveira, para mostrar às pessoas que o cigarro faz mal à saúde, Nick revela seu trabalho: manipula informações de maneira a diminuir aparentemente os riscos do cigarro. Divorciado e muito ligado ao seu filho Joey, de 12 anos, Nick repetidamente diz que trabalha exclusivamente para saldar as contas, embora a atenção cada vez maior que seu filho Joey dá ao seu trabalho comece a preocupá-lo. O menino mostra-se bastante influenciado pelo pai, que, ao lado da profissão que exerce, precisa se esforçar para se tornar um bom exemplo para o garoto.
Bem humorado, porém sem ironia em excesso. O texto é afiado, sopesa drama e comédia sem que se torne deveras rasgado ou meloso. No filme, Nick defende que liberdade de escolha em uma sociedade da propaganda continua, sim, sendo liberdade de escolha e mostra que a única defesa contra isso é, de fato, a palavra, é pensar. O interessante é se ponderar se o protagonista de fato acredita no que faz, ou seja, se o faz com sinceridade, ingenuidade ou mesmo pura ironia. Quase cômico, ao ser interpelado sobre o porquê de ele realizar seu trabalho, Nick responde, ora que é por ser o melhor no que faz, ora, curiosa e sarcasticamente, que é "pelo mesmo motivo dos condenados em Nuremberg: para pagar minha hipoteca", chacota ele, comparando-se aos nazistas julgados no pós-guerra.
Uma das passagens mais interessantes e emblemáticas do longa-metragem é um diálogo entre Nick e Joey, seu filho. O protagonista repete diversas vezes ao longo do filme que o importante é argumentar. Nesse diálogo, Nick começa assim: "suponhamos que você defenda o sorvete de chocolate; eu, o de baunilha. Você dirá que o seu é a melhor coisa do mundo. Eu direi que a melhor coisa do mundo é poder escolher entre chocolate e baunilha". A réplica de Joey é a seguinte: "Mas com isso você não me convenceu de que baunilha é melhor". E segue a tréplica: "mas eu não quero te convencer, quero só provar que estou certo e você errado". Belo discurso, belo filme. Novamente, mais um retrato da sociedade, mais uma alusão ao perigo do decisionismo, do poder, sob o viés do descrédito de Nick, da fala que faz dele um títere. E então, katchanga!
A teoria da katchanga refere-se a uma anedota simples, porém deveras essencial e elucidativa. É a narrativa de um rico senhor que adentra um cassino e senta-se sozinho em uma mesa, isolado, pretendendo, discretamente, chamar a atenção para si. O dono do cassino, notando a ótima oportunidade de ganhar capital às custas do homem rico, perguntou se acaso ele, o cliente, não desejaria jogar, nos seguintes termos: "senhor, temos roleta, blackjack, texas hold?em, caça-níqueis, jogos de todos os tipos, qualquer coisa que possa interessar-te". O senhor respondeu prontamente que nada daquilo lhe interessava. Ele só jogaria se fosse a katchanga.

O dono do cassino ficou confuso com aquela palavra estranha, confirmou com o senhor se de fato era esse o nome de um jogo, repetiu o nome incontáveis vezes e perguntou para todos os crupiês presentes se algum deles conhecia a tal da katchanga. Nada. Ninguém sabia que raio de jogo era aquele. Então, o dono do cassino teve uma idéia e mandou que os melhores crupiês jogassem a tal da katchanga com o cliente mesmo a despeito de eles desconhecerem as regras para tentar entender o jogo; e, tão logo eles aprendessem as técnicas básicas, extraíssem o máximo de dinheiro possível do senhor. E eles obedeceram.
Na primeira mão, o senhor distribuiu as cartas a todos os jogadores e, do nada, gritou "katchanga!", levando todo o dinheiro que estava na mesa. Na segunda mão, a mesma coisa. Katchanga! E novamente o cliente carregou todo o dinheiro que se encontrava no centro da mesa. E assim se sucedeu durante a noite toda, várias vezes. Sempre o rico senhor dava o seu grito de katchanga e ficava com o dinheiro dos incrédulos e confusos crupiês, que, pasmos, assistiam à katchanga.
Após muito tempo, e de súbito, um dos crupiês teve uma idéia: seria mais rápido do que o cliente. No momento em que as cartas foram distribuídas, o crupiê rapidamente gritou com ar de superioridade "katchanga!" e foi logo pegar o dinheiro da mesa, "com sede ao pote". Foi quando o homem rico, com uma voz mansa, mas segura, disse: "não, não, alto lá! Eu tenho uma katchanga real!" e novamente levou todo o dinheiro da mesa.
Essa anedota diz com decisionismo, com falta de fundamentação. O problema todo é que se carece excessivamente de argumentos bem embasados, de decisões bem fundamentadas, de justificativas. São escassas. E, no contexto jurídico hodierno, argumentar é isso. Coadunando-se com as idéias de Neil MacCormick, autor que situa sua teoria dentro do contexto da justificação, justificar uma decisão jurídica denota apontar as razões que mostrem que a deliberação em pauta assegura ou pelo menos deve certificar a justiça de acordo com o Direito. Também nesse quadro inserem-se as idéias de Robert Alexy, do balanceamento, mas que seja este bem justificado, embasado e fundamentado, coeso, coerente, objetivo. Contudo, a prática constitucional brasileira parece fazer vista grossa a isso. Vigora a teoria da katchanga, na qual não há explicações, ninguém sabe as regras, tudo que há é um terreno fértil ao decisionismo.
Poder-se-ia argumentar que é uma questão de evolução de entendimentos, que ninguém está adstrito a uma posição e que se pode reconhecer o erro e se o corrigir, ou não se persistir no mesmo erro, não cometê-lo novamente, o que factualmente procede. Não são raras decisões opostas que, em verdade, apontam para a evolução de concepções cada vez mais plurais, inclusivas, holísticas, como se vê no posicionamento da Suprema Corte brasileira

entre a ADI 2396 e a ADI 3937-MC, revelando a relação entre os direitos fundamentais e a leitura que se faz dos critérios de distribuição de competências entre os entes federados no caso da proibição de amianto, material também conhecido como asbesto, em prol de um entendimento holístico e mais federativo, ou, em outros termos, entre os direitos fundamentais e o federalismo, que se coadunam com e são alicerces da democracia.
O problema, contudo, não reside aí. Antes fosse! Pelo contrário, aprender com o tempo e com o contexto histórico é importantíssimo para a prática argumentativa, para se livrar das amarras dos discursos conservadores em demasia. É imprescindível que não se atenha, em nome de uma segurança jurídica deturpada, a compreensões rigorosamente erradas, que não condizem com a sociedade atual, com a Constituição e com o próprio Direito. E é importante se frisar esse - e se insistir nesse - ponto, pois no mais das vezes, ele passa batido: a segurança jurídica ? tratada por Neil MacCormick com certa ênfase - atua como katchanga real. É o que se pode depreender de decisões do tipo "mantém-se a decisão por seus próprios fundamentos", que pode muito bem ser lida como "o juiz acertou na decisão porque sim", ou o fato de ser "vedado o revolvimento do conjunto fático-probatório em sede de Recurso Extraordinário", assertiva da Súmula 279/STF. E há muitos casos semelhantes, mas que raramente são tratados, que lançam mão da segurança jurídica para assegurar o erro, reafirmá-lo, o que não faz sentido nenhum. O necessário é que se pense sempre na alteridade, no outro que terá sua vida ? e consigo, a vida de sua família e pessoas próximas ? modificada pelo Direito, e não pode sê-lo "porque sim" (ou "porque não").
O fracasso do projeto kelseniano evidencia que, de fato, se pode ter segurança no Direito, mas sabendo que não há nenhuma ? com todo caráter paradoxal e conseqüências que essa última afirmação acarreta. Novamente, Derrida: justiça tem sempre o caráter de promessa aberta: não se realizará nunca, mas, acaso se a perca de vista enquanto horizonte, perde-se tudo. A metáfora de Ulisses e as sereias é escancarada na contemporaneidade. Há sempre uma promessa, sempre o passado vinculando e regendo o agora e o porvir, principalmente nas constituições, mas, de modo geral, em todo o Direito.
Obviamente que emerge e torna-se evidente o problema do que é o certo, o correto, para reconhecimento de quando consertar, quando se errou, mas também a isso serve a argumentação: para justificar corretamente, enquanto os argumentos forem sustentáveis, convincentes. É preciso ficar alerta para não se cair em um maniqueísmo reducionista. E igualmente mister a crítica constante, a crítica que se constitua em autocrítica, tal qual propõe e requer Habermas. Pois justamente essa tem que constituir e de fato é um dos pilares do Estado Democrático de Direito: a prática argumentativa. Não só discursos esquerdistas mais

ou menos bem intencionados, até iludidos, cuja reflexão é feita somente superficialmente, almejando a uma "revolução", mas sempre amarrados à mesma homília há mais de um século, comuns em contextos universitários e presentes sempre em uma sociedade contingente. Também não se pode se aquiescer, se conformar ante a injustiça. A questão é de se perceber o plural e a alteridade. Não só isso, mas educar e formar sujeitos ? todos, ou ao menos essa deve ser a pretensão utópica ? os quais entendam que, antes de argumentar, estão tomando uma posição antes de defendê-la, estão fazendo valer suas opiniões, seus entendimentos, estão dando voz a suas visões de mundo, se fazendo cidadãos e construindo democracia. É imperativo, por fim, indivíduos que compreendam estarem sujeitando-se a críticas antes de criticar, pois, do contrário, sem a crítica passível de refutação, simplesmente se está trocando uma ortodoxia por outra (ilustração d?A Revolução dos Bichos), algo que, rigorosamente, de nada vale. E, para evitar o causalismo infinito, o desamparo e relativismo totais, têm lugar os argumentos. E que sejam sólidos, concisos, coerentes.
Voltando à teoria da katchanga, há problema, sim ? e enorme -, a saber, quando não há, verdadeiramente, fundamentação. Pode-se notar esse fenômeno aludido pela anedota no Caso da Pesagem dos Botijões de Gás, ADI 855. O relatório, brevemente, é de que o Estado do Paraná aprovara uma lei obrigando os revendedores de gás de cozinha a pesar os botijões ante os consumidores, para aí então vendê-los. A defesa do consumidor fez-se presente, e a lei foi aprovada pela Assembléia Legislativa local, sendo legítima, obedecendo formalmente a todas as regras do procedimento legislativo. A lei, contudo, foi reputada inconstitucional pelo Supremo. É "irrazoável e não proporcional". Não se sabe o porquê disso, pois não há justificação de fato no inteiro teor do acórdão. Katchanga!
Em resumo, a idéia de balanceamento trazida por Alexy não está sendo utilizada para reforçar a carga argumentativa da decisão, mas para o oposto: desobrigar o julgador de fundamentar. A simples invocação do princípio da proporcionalidade está sendo satisfatória para tomar qualquer decisão que seja. Katchanga real! E, por mais que o contexto seja katchangueiro, em uma democracia plural, ressalta-se uma última obra que aponta para um caminho, para a esperança que perdura: O Moleiro de Sans-Souci, de François Andrieux.
Imortalizado pelo escritor francês François Andrieux, a "parábola", o conto narra em versos o episódio de quando Frederico II, O Grande, então monarca da Prússia, o déspota esclarecido por excelência, um dos que mais bem representou o despotismo esclarecido, resolveu construir um palácio, em Potsdam, próximo a Berlim, distante da corte e da etiqueta, para poder, ali longe das vilezas humanas, meditar. Ele escolheu um lugar aprazível, sereno,

optando por edificá-lo na encosta de uma colina, donde já se elevava um moinho de vento, o Moinho de Sans-Souci, e resolveu fazer de seu futuro palácio homônimo do Moinho.
Alguns anos se passaram e, por fim, Frederico II resolveu expandir seu castelo e, um dia, incomodado pelo moinho que o impedia de ampliar uma ala, decidiu desapropriá-lo. O moleiro que lá habitava vivia bem, haja vista que tinha boa clientela e, das aldeias vizinhas, havia sempre gente, e uma animação desejável harmonizada com a tranquilidade ímpar. Com efeito, em fins do século XVIII, os moinhos atraíam o mundo popular e os burgueses, que vinham celebrar à sombra de suas pás. Destarte, o moleiro recusou, argumentando e esclarecendo que não poderia vender sua casa, onde seu pai havia falecido e seus filhos haveriam de nascer. O rei insistiu, dizendo "eu sou o monarca, se o quero, lho posso tomar"! Ao que o moleiro respondeu: "Você ter meu moinho?! Como se não houvesse juízes em Berlim!" Pasmo com a ousada e ingênua resposta, que indicaria a propensão do moleiro em litigar com a própria figura real na justiça, Frederico II decidiu alterar seus planos, de modo a deixar o sujeito e seu moinho em paz.
Essa história teve lugar antes da Revolução Francesa e traz consigo o paradoxo da onipotência. Ao monarca, tudo é permitido, mas se põe sempre em jogo sua credibilidade na medida em que há abuso, ou quando ele mesmo não obedece a suas próprias leis. Tem-se, na narrativa, a menção ao berço de um Estado de Direito enquanto oposto do positivismo, que, por sua vez, encontra nas figuras de Kelsen e Hart o antônimo da argumentação. E é claramente a metáfora da democracia, no aspecto, outrossim, do chamado sistema de checks and balances, do poder que controla o poder, e, por conseqüência, igualmente, do poder que não é absoluto. Da força que, principalmente, se submete à palavra, ao poder do falante e da argumentação, como deve ser. Caso assim não seja, katchanga! E todo um sistema frágil como o é a democracia é posto em xeque ? o que ocorre a todo instante -, mas, nesses momentos, especificamente, é comparável a se jogar no lixo, se descartar, se negar o valor democrático imperioso trazido pela teoria da argumentação, que busca reafirmar o que diz, porém fazê-lo justificando.
Assim é que se responde a pergunta acerca do valor do argumento: a saber, a importância democrática, de fundamentar, de justificar e legitimar um paradigma inclusivo e plural, que visa à igualdade substancial sem se perder de vista a liberdade, por meio da afirmação de direitos fundamentais, mas sem katchanga; pelo contrário, sempre se justificando validamente, embasada e racionalmente, o porquê de lançar-se mão de um fundamento em detrimento de outro. Perante todo esse absurdo que definitivamente é a existência humana, o exercício social, restam aos seres humanos a consciência da história ?

das tradições ? e a constante reinterpretação do que quer que os condicione como seres no mundo. Não pode o homem, pois, ignorar a história, a situação hermenêutica em que está imerso. Destarte é que o homem deve relacionar-se com a situação vigente: pensando nela, uma vez que todos se limitam pelas circunstâncias. E, via argumentação, legitimar uma democracia, mostrando, de fato, que ainda há, sim, juízes em Berlim.

Referências Bibliográficas
· Doze Homens e uma Sentença (Twelve Angry Men). Diretor: Sidney Lumet. EUA, 1957. P&B.
· Obrigado por Fumar (Thank You for Smoking). Diretor: Jason Reitman. EUA, 2006. Cor.
· ANDERS, Günther. Kafka: Pró & Contra. Trad. e posf. Modesto Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2007
· ANDRIEUX, François. Le Meunier Sans-Souci. Texto disponível em: . Acesso em 8 de julho de 2011.
· ATIENZA, Manuel. As Razões do Direito: Teorias da Argumentação Jurídica. Trad. Maria Cristina Guimarães Cupertino. São Paulo: Landy, 2006.
· CAMUS, Albert. O Estrangeiro. Trad. Valerie Rumjanek. Rio de Janeiro: BestBolso, 2010.
· _______. O Mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman e Paulina Watch. 2ª Edição. Rio de Janeiro: Record, 2005.
· DERRIDA, Jacques. Força de Lei. Trad. Leyla Perrone-Moisés. 1ª Edição. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2007.
· FOUCAULT, Michel. A Verdade e as Formas Jurídicas. Rio de Janeiro: Nau, 2005.
· KAFKA, Franz. Na Colônia Penal. In. Um Artista da Fome seguido de Na Colônia Penal & Outras Histórias. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: LP&M, 2010.
· _______. Essencial Franz Kafka. Seleção, introdução e tradução de Modesto Carone. São Paulo: Penguin Classics Companhia das Letras, 2011.
· _______. Diante da Lei. In. Um Médico Rural: Pequenas Narrativas. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
· _______. O Novo Advogado. In. Um Médico Rural: Pequenas Narrativas. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
· _______. O Processo. Trad. Marcelo Backes. Porto Alegre: LP&M, 2010.
· _______. Uma Pequena Mulher. In. Um Artista da Fome seguido de Na Colônia Penal & Outras Histórias. Trad. Guilherme da Silva Braga. Porto Alegre: LP&M, 2010.
· LIMA, Geraldo Marmelstein. Alexy à Brasileira ou a Teoria da Katchanga. Disponível em . Acesso em 2 de julho de 2011.
· MACCORMICK, Neil. Retórica e Estado de Direito. Trad. Conrado Hübner Mendes e Marcos Paulo Veríssimo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008.
· MILOVI, Miroslav. Filosofia da Comunicação: Para uma Crítica da Modernidade; Brasília: Plano, 2002.
· PERELMAN, Chaïm. De la justicia (De la justice). Trad. de Ricardo Guerra. Prefácio de Luis Recasens Siches. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 1964.
· POPPER, Karl Raimund. Conjecturas e refutações. Trad. de Sérgio Bath. 5. Ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2008.
· SARTRE, Jean-Paul. O existencialismo é um humanismo. Trad. Vergílio Ferreira. São Paulo: Abril Cultura, 1973 (Col. Os Pensadores).
· VANDRÉ, Geraldo. Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Disponível em . Acesso em 7 de julho de 2011.
Autor: Marcello Caio Ramon E Barros Ferreira


Artigos Relacionados


Argumentação Jurídica

Suposto Questionamento De Camus A Sartre.

A RetÓrica Em Chaim Perelman Enquanto EstratÉgia De PersuasÃo Para A DefiniÇÃo Do MÉrito Em Direito.

A Morte De Franz Kafka

A Liberdade Nos Textos 'a NÁusea', 'o Ser E O Nada' E 'o Existencialismo É Um Humanismo'

Curta Biografia Da Vida E Obra De Kafka

O Conceito De Liberdade Segundo A Teoria Existencialista De Sartre