RESENHA - NORDESTINO: UMA INVENÇÃO DO FALO - UMA HISTÓRIA DO GÊNERO MASCULINO (NORDESTE 1920/1940).



NORDESTINO: UMA INVENÇÃO DO FALO – UMA HISTÓRIA DO GÊNERO MASCULINO (NORDESTE 1920/1940).

Nordestino: uma invenção do falo - uma história do gênero masculino (Nordeste 1920/1940). ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Maceió: Edições Catavento, 2003. 256 p.

Natanael Vieira de Souza, Lourenço Ladeia Peruchi, Mayara Laet Moreira[1].

Sob orientação do Prof. Ms. Clementino Nogueira Sousa, UNEMAT (UNIVERSIDADE DO ESTADO DE MATOGROSSO)

 

A presente resenha tem por objetivo fazer uma operação historiográfica a partir da obra de Durval Muniz – Nordestino uma invenção do falo uma história do gênero masculino (Nordeste 1920/1940), problematizando o discurso historiográfico presente na obra de Gilberto Freyre “Ordem e Progresso”, no qual o autor questiona a relação binária presente em sua prática discursiva e os discursos historiográficos feministas sobre a questão de gênero.

O primeiro passo dessa operação é dar visibilidade ao lugar social do discurso (quem fala, de onde fala e pra quem fala?). Durval Muniz de Albuquerque Júnior é Doutor em História Social pela Universidade Estadual de Campinas; Pós-Doutor em Educação pela Universidade de Barcelona, professor adjunto do Departamento de História e Geografia da Universidade Federal de Campina Grande; membro do corpo docente dos Programas de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Pernambuco, de Sociologia de Campina Grande e Universidade da Paraíba; tem experiência na área de História, com ênfase em Teoria e Filosofia da História, atuando principalmente nos seguintes temas: gênero, nordeste, masculinidade, identidade, cultura, biografia histórica e produção de subjetividade; atual presidente da ANPUH.

Feitas tais considerações sobre o lugar social do discurso, queremos agora demonstrar o movimento do autor nesta obra. O autor estrutura seu trabalho em dois capítulos (A feminização da sociedade e A invenção de um macho), trabalhando com a seguinte problemática: qual o efeito discursivo da modernidade na tradição, na relação de gênero, na vida urbana/campo, na condição masculina e feminina, no patriarcalismo, no nordestino, entre outros.

Para dar conta destra trama discursiva, Durval Muniz elege o método arqueogenealógico e algumas fontes para problematizar o efeito discursivo da modernidade no imaginário da sociedade patriarcal. Nesse sentido o autor se utiliza de um extenso corpo documental que inclui a imprensa, jornais, literatura, cronistas e folcloristas, particularmente uma análise crítica sobre a obra de Gilberto Freyre, fazendo uma análise historiográfica,  permitindo a descoberta de outras subjetividades até então pouco visíveis. O seu recorte temporal ocorre entre as décadas de 1920 e 1940 do século XX, recuperando um mosaico de pequenas referências esparsas com as quais dialoga no litoral e no sertão, nas cidades e no interior do Nordeste, trazendo a tona o que estava submerso.

Por outro lado inspirado em Michel Foucault ele analisa as construções discursivas que constituíram uma figura masculina neste campo de força entre a modernidade e a tradição. Ou seja, ele analisa o modo como o saber se dispõe, vai se constituindo, fabricando temas e produzindo verdades. Portanto, Durval Muniz pensando com Foucault nos revela que aquilo que foi tomado como evidente e natural biológico foi um saber produzido que ocupa um lugar e possui uma marca. Por isso nos deparamos em seu texto com críticas, transformações e até mesmo “destruições” de um saber que fora construído como verdade única. Em suma, Durval Muniz denuncia a relação entre verdade, saber e poder, desestabilizando, dessa forma, as evidencias e dando visibilidade a outras possibilidades, outras dimensões.

Fundamentado neste corte epistemológico foucaltiano o autor define o objetivo do seu trabalho, operando em dois registros; ao nível das estratégias (saberes produzidos) que definiram uma forma de ser para o nordestino, uma visibilidade e uma dizibilidade; e ao nível das práticas cotidianas dos homens nesse espaço, para manipular, utilizar, alterar estas estratégias. O autor seguiu memórias de homens famosos e acompanhou vidas de homens sem fama. De um lado, pilhas de imagens e textos definindo quais são os bons usos e costumes de um homem no Nordeste; de outro lado, todos aqueles apanhados em flagrantes de “maus costumes”, lados que se trocam, se cruzam, se embaralham.

Com efeito, vamos de uma forma discursiva e superficial dar visibilidade a alguns passos do autor em seu livro. Ele então começaria por analisar os discursos de Freyre e uma série de outros intelectuais que viam na sociedade da época uma feminização, uma horizontalização onde as fronteiras tanto espaciais, sociais e culturais entre o “SER HOMEM e o SER MULHER” eram vistas como naturais/biológicas; esta “característica” estaria se perdendo, algo visto por estes intelectuais como extremamente negativos. Assim com estes pressupostos os discursos tradicionalistas criaram de certa forma um estereótipo de um tipo regional “O Nordestino” que para eles seria capaz de salvar a sociedade através de sua força, virilidade, bravura e honradez, dos tais problemas trazidos segundo eles com a República e suas mudanças econômicas, culturais e sociais.

Mas Durval deixa claro que além de criticarmos esta idéia seria necessário entendermos qual “sociedade” seria esta em perigo? Para entendermos esta sociedade o autor faz uso também do conceito de “família patriarcal” que para Durval mais que definir um tipo de família seria uma metáfora da sociedade da qual Freyre e seus companheiros intelectuais seriam fruto. “O patriarcalismo incluiria uma forma de hierárquica de relacionamento social entre etnias, entre os grupos sociais e entre os gêneros…”, onde para Durval residiriam uns dos problemas deste tipo de escrita que seria a dualidade tocante ao ser homem e ao ser mulher como sendo coisas naturais/biológicas dadas; como se houvesse de fato um lugar social/biológico pré definido para as “Mulheres e os Homens”.

Neste ponto Durval se aproxima conceitualmente de várias autoras feministas que tem recentemente produzido textos sobre questões de gênero como a professora Valeria Fernandes da Silva que trabalhara a questão e faz a seguinte contribuição “de propor um novo olhar sobre as relações Humanas, percebendo a riqueza dos discursos para além dos arranjos binários. (...)” ou de Tania Navarro Swain que também parte dos pressupostos usados por Durval de que deva-se fazer a crítica a historiografia para que venha a tona “as múltiplas realidades, agenciamentos plurais que ficaram ocultos no fazer histórico tradicional” ou quando analisa a sociedade patriarcal em que diz:

“De fato o estabelecimento da diferença é a criação e afirmação de um referente, que estabelece-se seu oposto e como tal o considera. No caso de uma sociedade patriarcal a diferença é instituída a partir do masculino universal, daquele que define o humano em geral  e a seguir suas especificidades seus diferentes. ”.

Analisando esses discursos, o autor nos mostra como a identidade regional nordestina é inventada como uma "reação viril" diante da passividade das “pessoas” da região; o tipo nordestino surge como um tipo voltado para a preservação de um passado regional, tradicional e patriarcal que estaria desaparecendo e dando lugar a uma sociedade "matriarcal", efeminada. É interessante lembrar que, de acordo com o autor, nesse discurso, está se falando do nordestino enquanto homem, um macho, não enquanto palavra que serve para se referir a toda a espécie humana, pois a idéia de nordestino que está emergindo é pensada no masculino, não havendo lugar para o feminino nessa figura.

O autor recupera com muita competência o discurso "iridescente[2]" do nordestino. Um tipo regional que “nasce” de um discurso eugenista, em voga, que procurava naturalizar os comportamentos e valores do nordestino; um discurso antropogeográfico que procurava explicar as características físicas, os traços subjetivos e os códigos culturais do nordestino como produto tipificado pela/da natureza particular da região; de um discurso intelecto/literário que desenhava o nordestino como aquele que partilhava da superioridade dos fortes, temido, capaz de tudo, valente, corajoso em uma região que até a mulher é "macho sim senhor"; de um discurso que se vale de uma série de imagens e enunciados que constituíam os tipos regionais anteriores como o sertanejo, o brejeiro, o praieiro, o vaqueiro, o coronel, o senhor de engenho, o caboclo, o matuto, o beato e o retirante; enfim, de discursos tradicionalistas ou regionalistas que localizam o falo como significante central na forma de ser do nordestino. "Assim, a figura do nordestino que emerge, nos anos vinte, vai agenciar toda uma galeria de tipos regionais ou tipos sociais marcados por uma vida rural, por uma sociabilidade tradicional, e, acima de tudo, desenhados com apanágios masculinos" (p. 227).

Durval Muniz de Albuquerque Júnior apresenta um trabalho de muito valor para as ciências humanas e para os estudos de gênero e história cultural no Brasil. Mas, também, de igual importância para a sociedade atual que ainda se depara com relações hierárquicas e desiguais entre gêneros, etnias e gerações, de alguma forma continuamos reiterando velhos discursos e práticas. Durval Muniz procura desconstruir os discursos que inventaram esta sociedade “falocrata”, o autor contribui assim com um trabalho que ajuda a pensar e ver aqueles que foram reunidos sob o termo de nordestinos e aquela região que foi designada como Nordeste de forma plural. Este trabalho tem por objetivo principal a análise, sob uma perspectiva de gênero, da construção histórica e cultural da identidade do nordestino tal qual ainda hoje nos é transmitida (Cordel Encantado, Rede Globo, etc.): "cabra macho", "cabra da peste", símbolo da virilidade e da força, "valentão", bravo, entre outros... Constitui-se, também, como intenção do autor de desconstruir essa imagem que vem sendo desenhada e redesenhada por uma extensa produção cultural e intelectual desde o começo do século XX.


[1] Acadêmicos do 5º Semestre do curso de História/UNEMAT/CÁCERES. Tópico especial, história e gênero.

[2] Adjetivo de dois gêneros cujas cores são as do arco-íris ou que reflete essas cores


Autor: Natanael Vieira De Souza


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