Paisagens Sob Letras




(fragmento de POESIA VISUAL,Helena Trindade,Oi Futuro Ipanema/RJ,2011.2)(ver figura no site indicado em nota abaixo)


I - O pós-estruturalismo e as desconstruções .
Uma nova arquitetura da visão erige-se sobre o princípio da
mobilidade,onde o sujeito só é capaz de reconhecer e ser
reconhecido através do deslocamento,num infinito jogo de
significações.
(Carlos Henrique Machado)
A ideia de descontrução tem deixado a descoberto as tramas que constroem pensamentos, e ao mesmo tempo, engendra a noção de inacabamento, cara à clínica exercida secularmente pela literatura, e por extensão, pela arte.
Na prática da leitura,o leitor ,sem movimentos bruscos visíveis ? apenas pela mudança de páginas,ou pelo deslize digital,depois do advento da INTERNET,enquanto mídia em processo de democratização ? estabelece uma aliança com o texto a sua frente. Uma aliança que inclui acordos de integridades .E para ser íntegro numa aliança é necessário ser capaz de ser e não ser, a despeito de desejos próprios.
Uma aliança reestrutura os acordos visíveis, invisíveis e virtuais. As atualizações que dela decorrem são constantemente colocadas em questão em função de novos movimentos que os pensamentos, reorganizados,possibilitam.
Se na chamada modernidade tivemos visivelmente a dualidade e como recurso principal a ambigüidade,enquanto estruturadores de sistemas em ação,na chamada pós-modernidade,sem exclusões violentas,as dualidades passaram a ter um lugar secundário,sem no entanto, abdicarem de emitir a força necessária para expandir pensamentos e ao mesmo tempo enquadrá-los em contextos delimitados.
A questão que se coloca na contemporaneidade ultrapassa também estes caminhos e promove deslocamentos contínuos com aparentes recuos de noções para conceitos e revisão destes. Talvez por isso,estejamos atravessando a multiplicidade e a pluralidade com algumas sensações entrecruzadas,que mais dão a ver "retrocessos" do que propriamente transformações cirúrgicas. Isto é,captamos idéias com ares de repetição,quando em realidade,há um acúmulo de percepções e experiências que são responsáveis pelo novo efetivamente, sem que nos demos conta de todas as continuidades e quebras.

II ? A página ,a vitrine e os passos em exposição
O corpo sobremoderno é o corpo do espectador interativo
e a relação entre os dados,as forças,a potência e a
superfície que conecta o sentido da apresentação da
realidade sensível.
(Carlos Henrique Machado)

Em matéria de poesia,seja em prosa ou em verso,a visualidade é tanto evidência como pode ser vidência e a partir disto,consideramos que a visita à exposição Poesia Visual,no Centro de Cultura Oi Futuro de Ipanema,de Helena Trindade e Alberto Pucheu,com curadoria de Alberto Saraiva ,suscita alguns desafios para o visitante,de sensações,percepções e reflexões,a partir de interações possíveis com a obra em conjunto.
Escolhemos explorar LETRA que é composto de um poema impresso no chão de entrada do centro,aderido em letras garrafais,pretas,com diagramação espelhada e versos com espaçamentos diferentes,formando um alinhamento de recuos e avanços. O poema é ladeado por um painel composto de papel de reprodução fotográfica,em vitrine suspensa,que apresenta a "frase": O poder da Palavra através da vidência (fragmento ilustrativo apresentado acima) .Estes dizeres,são percebidos por letras em tom terroso e recortadas no contraste com o fundo negro. Além disso,são as marcas de letras de máquina fotográfica que fazem o "estampado" das formas,e num impulso de buscar a ludicidade nas formas em exposição,as tais letras preenchidas,dão uma ilusão de relevo que por momentos se parecem com biscoitos,desses de produção industrializada que são comercializados tendo na criança o consumidor ? alvo,o que em certa medida também faz de Letra um convite a um banquete de comes e bebes simbólicos,como é próprio de toda literatura e por que não dizer da arte.
Mais adiante da entrada,há um vídeo em tv plasma,em que o tema do livro de areia ,é mostrado tanto pelo objeto livro(Livro de areia de Jorge Luís Borges),páginas que são expostas ao vento ? elemento que deixa a descoberto a relação com o tempo e a memória,através , por exemplo,do foco dado a uma das páginas impressas com marcações de um leitor ausente e anterior ao visitante ?o livro cuidadosamente contextualizado em terreno arenoso, como pela máquina de escrever que surge da areia,numa seqüência que evidencia a datilografia como uma fase do processo histórico de registro de escritas,perfazendo certa escritura sobre os atos de escrever e ler.
Estas três obras integradas sinestesicamente,logo na entrada do centro,compondo um corredor performativo em que é o visitante/leitor o "artista" a criar pelas leituras de seus movimentos, num último estágio possível para esta interação,se assim desejar e se dispuser,uma obra marcada pela apropriação,mas também tendo como fator sobre as forças em ação,a singularidade.
Para além da ambigüidade de leituras,as interações decorrentes dos passos dados pelo visitante, entre recuos, desvios,avanços,desalinhos e paradas,se sobrepõem e se confundem sem hierarquias impostas entre os objetos de leitura,a não ser o que é próprio do código verbal escolhido ? a escrita linear da esquerda para a direita - .
Neste sentido,o "Livro de areia" reafirma a dimensão ilusória dos códigos estabelecidos ao mesmo tempo em que concretiza a aliança entre unicidade e singularidade,a fim de confirmar o múltiplo e o plural, nele contidos. Seria pela tradução,também traidora de unidades,já que ao visitante que buscar, seja em memória ou em qualquer outro tipo de arquivo ? por exemplo,as inúmeras páginas desenvolvidas na rede INTERNET,a procedência do "livro" apresentado, no caso, o livro do escritor argentino,que também escreveu em inglês,Jorge Luís Borges. Entretanto,mesmo que o visitante não disponha desse tipo de informação,poderá explorar suas sensações e percepções,pelas visualizações oferecidas pelos poemas em conjunto. De certa maneira,as reflexões decorrentes de tais interações poderão ser encaminhadas em outras direções mais imediatas ou não.
De um sentimento de uma poesia em que se pisa,é dado ao visitante este poder,a um sentimento de ter entrado em terreno arenoso(conferido pelo vídeo), e portanto,exigente nos cuidados,é o corpo do "estrangeiro",quase intruso( não o será por poder reconhecer o código lingüístico,mesmo que dele não tenha conhecimento,a língua portuguesa como referência),que se torna o estilete, ou lápis,ou ainda,pincel,e quem sabe,nas pontas dos dedos de seus pés,alados,sem desconsiderar o toque de um teclado musical ou não,o agente /paciente dos deslocamentos de e por ares do corpus "em exposição".


III ? Poesia,exposição e degustações
Diria que o espaço das bordas seria o não-lugar da
passagem dos conteúdos;lugar temporário,de onde
emerge uma dimensão provisória entre os conteúdos
que não param de se transformar,e onde esses serão
capturados,provisoriamente,de forma a serem lidos em
suas intersecções,dissolvendo-se , em seguida,para
assumir uma nova natureza.
(Carlos Henrique Machado)

Num aparente recuo no tempo,o banquete "exposto" pelas obras em questão,à espera do visitante,sobrevive ao tempo da ausência,dando à poesia do Ver ,do Ser,do Ler,e do "estar",a condição de onipotência,capaz de explorar potências sugeridas pelas letras e ainda em estado de latências sequer visualizadas.
Latências que ultrapassam o familiar modo de lidar com a palavra em estado de poesia,como a tradição greco-latina apresentou e ritualizou na forma de degustação.Saborear a palavra viva seria uma delas.
A poesia contemporânea, menos ávida por sentidos,deixa-se expor em exposições que pacientemente podem receber o visitante in locu,fazendo do corpo do observador um agente de espera,mas também,ela ? a poesia -, abdica do corpus visitante, tomado de repertórios variados e sentidos outros. Tal operação de renúncia em relação ao expectador parece dar-se em função do reconhecimento tanto da autonomia da arte pela tecnologia como também pelas aberturas de caminhos de (re) leituras que dele, leitor/visitante,são percorridos. Isto é,ao introduzir-se na obra,quer pelos sentidos apurados, quer pelas percepções conquistadas,os movimentos contínuos de des-cobertas revelam o intercâmbio entre linguagens e códigos a ponto de em determinados momentos de interação,entre leitor e visitante,entre leitor e obra visitada,haver desconexões suficientes para que assinaturas sejam leituras e escritas,por inscrições,a ponto de uma escritura ser realizada.
O corredor de entrada escrito com o poema é suporte e ao mesmo tempo corpo da poesia.Essa armadura sólida que o chão do centro cultural assume,sem excluir a noção de moldura,é capaz de estabelecer relações e vínculos entre palavras.Os versos cuidadosamente dispostos são espelhos de passos de leitura,como um jogo infantil de amarelinha,onde o céu,ponto de chegada,desfaz-se tal qual o "Livro de Areia" suspenso e citado no vídeo instalado e apresentado ininterruptamente durante o tempo de visitação.
A degustação inclui a explicitação da digestão do corpus poético.

IV ? As fúrias, o tempo e a memória
O tráfego no espaço virtual sobremoderno faz circular
conteúdos que assumem a característica de um
deslocamento em territórios sempre novos,onde dominam a
ausência,a falta de um centro e um fundamento,já que as
velocidades alucinantes das trocas impedem essa
delimitação e recusam o sentido de origem,imprimindo ao
movimento o sentido contínuo de mobilidade.
(Carlos Henrique Machado)
A fúria do vento que leva e desfaz os livros, as palavras,e as letras,traçam destinos para certos sentidos, assim como no vídeo que podemos chamar de amostragem da poesia. O mesmo vento é brisa quase imperceptível às sensações do olho que pára para assistir ao filme em movimento. Os efeitos sobre efeitos de recepção e criação se confundem e é preciso um sumário ao final do vídeo para lembrar àquele olho de que livro está se tratando:seja o livro de histórias;seja o livro de vidas em contínuo desfazimento,como uma anedota que alerta o ouvinte , no rumor do vento,que ao nascer, sua vida já está se desfazendo.
A paradoxal visão, marca de uma epifania distante,evoca na memória de quem se coloca diante dos poemas expressos(vitrine, chão e vídeo),a reafirmação intuída de que não há mistério algum a ser decifrado e por isso mesmo o mistério da poesia, da vida, está tão presente pelos elementos combinados, terra e ar,água e fogo,numa combinatória em que corpo e corpus interagem.
Dito deste modo,é possível que certa fúria tome conta do visitante,pelo esvaziamento em si de sentidos complexos. Dito deste ou de outro modo, é possível que o tempo de visitação varie e por conseguinte,nenhuma fúria sequer seja percebida.
Tudo isto confere à poesia(visual) em exposição, referida neste texto e neste instante de leitura,a ubiqüidade inesperada e concomitantemente programada,a mediação necessária para
que sensações(de fúria ou não),percepções(de sentidos e não-sentidos),reflexões(conceituais,cristalizadas ou não),estejam agindo,até em estado de espera,sobre leitores,visitantes ou não.
A poesia contemporânea em exposição no centro cultural,sob os títulos de Poesia Visual e Letra,é extemporânea,intempestiva e fiadora de tramas dos sentidos.


Referências bibliográficas
JAMESON, FREDRIC.A cultura do Dinheiro.Editora VOZES,2ª Edição,Petrópolis,RJ: 2001.
MACHADO,Carlos Henrique.Introdução a discursos sobremodernos.Ed.Ibis Libris,Rj:2011.
PRIMO,Alex et al(orgs).Comunicação e interações.Livro da COMPÓS.Ed.Sulina,Porto
Alegre:2008.

Autor: Capitu Nascimento


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