Aristóteles,Hegel,Maquiavel e os Deuses Não eram Cowboys



Universidade Federal de Santa Catarina.
Curso: MESTRADO EM SOCIOLOGIA POLÍTICA
Disciplina: TEORIA SOCIAL CLÁSSICA

Artigo:
ARISTÓTELES, HEGEL, MAQUIAVEL E OS DEUSES
NÃO ERAM COWBOYS


Professor- Doutor: CARLOS EDUARDO SELL
Aluna-Mestranda: ALESSANDRA IMPALÉA


RESUMO: Este artigo constitui-se do estudo de alguns pressupostos teóricos e conceitos envoltos na concepção sobre a Arte a partir de três referenciais: como produção material e estética, enquanto processo subjetivo de percepção filosófica e crítica do mundo, e arte em sua manifestação política e social. Para isto conta com a perspectiva de três pensadores políticos clássicos que a investigaram e resignificaram profundamente: Aristóteles, Hegel e Maquiavel.

Palavras-chave: arte, sociedade, política.

Florianópolis, 05 de Julho de 2011.


Este artigo, exercício à produção científica, explora pressupostos teóricos e filosóficos - com perspectivas normativas e valorativas - a partir de certas seleções epistemológicas (com referências do tipo empíricas, objetivas e de ordem subjetiva) que co-habitam o campo da Sociologia Política e atravessam as ciências humanas, econômicas e sociais ? com destaque à categoria de análise o campo de produção artística. Sua primeira parte busca justificar a apropriação dos conceitos hegelianos sobre a arte; em seguida, fenômenos típicos da sociedade global emergem para breve análise conjuntural que nos aponta à necessidade de revisitar a arte segundo Aristóteles iniciando-se aqui sua parte final, a partir da Grécia aristotélica (cuja sociedade na antiguidade ocidental cultivava o ideal da beleza e da perfeição das formas e conteúdos), para emergir em Maquiavel que na renascença Italiana abala as estruturas sociais e seus pressupostos teóricos e filosóficos com suas percepções, produção intelectual e artística e seu pensamento político e social crítico, realista e pragmático.

"Milhões de pessoas lêem livros, ouvem música, vão ao teatro e ao cinema. Por quê? Dizer que procuram distração, divertimento, a relaxação, é não resolver o problema. Por que distrai, diverte e relaxa o mergulhar nos problemas e nas vidas outros, o identificar-se com uma pintura ou música, o identificar-se com tipos de romance, de uma peça ou filme? Por quê reagimos em face dessas "irrealidades" como se elas fossem a realidade intensificada? Que estranho, misterioso divertimento é esse?(...)Por quê esse desejo de completar nossa vida incompleta através de outras figuras e de outras formas? (...) É claro que o homem quer ser mais do que ele mesmo. Quer ser um homem total. Não lhe basta ser um indivíduo separado". MIRIAN CELESTE MARTINS (2009) .

Nos primeiros modos de socialização, nos agrupamentos tribais, a linguagem e as formas simbólicas eram capazes de transmitir idéias e provocar emoções; representavam um mundo onipresente e à priori baseando-se nas experiências e sensações sobre aquela realidade hostil. Neste momento (milênios atrás) a produção artística configura-se ao gênero humano na estruturação de códigos primitivos de expressão e de comunicação e que desde então constituem o evento artístico. Nesta jornada a arte, segundo referências e aproximações com o pensamento político clássico é observada por duas vias: a arte simbólico-religiosa da Antiguidade - que opera no nível da materialidade -, e a arte clássica pré-medieval que chegará ao período moderno partindo da mesma premissa mas com outra ação emergente - a arte como percepção e tomada de consciência (não só estética, exterior e aparente como a propõe KANT), e que neste contexto acompanha a filosofia:

HEGEL (1770?1831): A ARTE, A VERDADE, E O SENSÍVEL
DA IDÉIA MANIFESTA

Na Alemanha entre os movimentos artísticos do neoclassicismo e do romantismo Hegel consegue elaborar o seu sistema filosófico, e os conceitos que irei utilizar ao referir-me a produção e às formas de concepção sobre a arte neste artigo são empregados sob a perspectiva hegeliana, que os concebe como ordem subjetiva e sensível (percepção e produção artística e material do mundo de um ponto de vista peculiar e individual) e como ordem essencial (universal). Através de linguagens não verbais os homens do período ágrafo não tinha códigos lingüísticos escrito nem oral; no máximo, comunicavam-se com gestos e movimentos corporais, emissão de sons e pausas; manipulação de pedras, tronco e materiais penetrantes que alteravam as superfícies de rochas e cavernas. Inexistiam palavras e construções lingüísticas que fornecessem um significado e sentido à estas primeiras formas de socialização, o que não se revelou em impedimento à necessidade de expressar/comunicar eventos de um mundo concreto que ao ser representado simbolicamente cria então este espaço dinâmico subjetivo-sensível e reflexivo.
Neste sentido, como nos revela e sistematiza HEGEL em seu sistema filosófico o qual a arte está submetida "como primeiro momento da afirmação do Espírito Absoluto", a mesma como consequência viria a ser "superada pela religião e pela filosofia" (FREDERICO, pp.3).
A arte, imanente e detentora de um caráter histórico e social, será considerada objeto passível de estudo teórico e empírico à racionalidade científica moderna; assim como a filosofia (guardadas as proporções), a arte está em busca da verdade compartilhando de suas premissas espirituais e intelectuais, mas operando na esfera da materialidade. HEGEL, no entanto, destaca que a arte não deve ser reduzida por sua forma exterior, por um senso ou idéia imediata que a identifica como coisa dada pois a produção artística (obra) guarda conteúdo, sentido e significações objetivamente propostos e construídos pelo artista mas recebidos pelo público de modo subjetivo, e o "sentido" neste contexto aplica-se em dupla função: sentido da existência exterior e imediata do objeto ou manifestação artística, e sentido relativo à essência última, teleológica íntima e individual do artista. Aqui HEGEL concorda com o pensamento platônico que, parte essencial dos pressupostos culturais da antiga Grécia, compartilhava dos ideais sociais que objetivavam a beleza e a perfeição das formas, princípio uno à todas as coisas mas que em Hegel já adquire um movimento dialético - aproxima-se mas estabelece uma dissociação quanto ao objeto artístico afim de possibilitar o desdobramento e a pluralidade sobre a idéia essencial que no mínimo representa uma realidade distinta da cotidiana (que se apresenta numa totalidade de objetos, relações e sensações exteriores) que acaba por dissimular a verdade.
Desta partilha, a realidade nada mais é que um meio ilusório e paradoxal (por ser absolutamente concreto) de ocultar a verdade. Contudo, a arte viria a agir como forma sensível de conhecer e conscientizar o homem do Espírito Absoluto pois ele se reconheceria na representação artística e logo teria a consciência da liberdade, de sua capacidade de sentir, pensar e agir sobre o mundo como que podendo rearticular as suas dimensões elementares da vida (a subjetiva e a objetiva), mas no estado do ideal - já que arte aqui opera na "condição de sensível espiritualizado ou de espírito sensibilizado", e devido à esta compreensão do fenômeno artístico, HEGEL nos lembra que: "(...).o reino da arte é o reino das sombras do belo. As obras de arte são sombras sensíveis" .
E no que isso relaciona-se com este artigo? A vida política também tem seus véus, nuances, limitações de tal modo que nem tudo o que entendemos sobre a realidade simples ou complexa podemos dizer, na premissa das ações "politicamente corretas" relativas ao decoro e a pressupostos normativos e valorativos éticos e morais. O campo da sociologia política explora o vasto território das abordagens e referenciais teóricos filosóficos, sociais e políticos nos quais boa parte da produção dos pensadores clássicos parece manifestar-se a favor do resguarde das posições, deveres, direitos e liberdades individuais mas defendendo a legitimidade dos princípios e direitos coletivos, e entre os pensadores da teoria política clássica não são raros os que analisaram a arte na categoria de fenômeno transcendente à individualidade e diretamente relacionado à esfera social, e na categoria de produção humana sensível-subjetivo e essencial. No entanto, parece haver um ponto convergente nestas disposições: a possibilidade de, para além de distinções ou premissas éticas, morais e institucionais religiosas, estabelecer o vínculo dos aspectos imateriais da vida humana (a percepção subjetiva e sensível que compreende o espaço-tempo e os eventos neles contidos como dimensões e fatores transcendentais e superiores) à processos exclusivamente humanos de conhecimento e produção sobre o mundo material. Mas que mundo seria este?
Esta é uma grande questão não só das ciências sociais e econômicas mas especialmente das ciências políticas e da filosofia, pois há um desdobramento das perspectivas empíricas que influenciam ou determinam o fazer artístico no mundo de hoje que se apresenta no mínimo sob duas formas de percepção: há o mundo institucionalmente desejado e produzido, e há o mundo produzido pela realidade que é transdimensional: de um lado os princípios normativos e as ações sociais com políticas de tendência centro-esquerdistas da tradição pós-moderna que logo nos remetem à retórica de SLAVOJ ZIZEK sobre a política na atual sociedade e que em sua obra "O Elogio da Intolerância", identifica esta realidade transdimensional pela própria exclusão das prática políticas nos processos econômicos, característica da sociedade neoliberal que mantém como ideologia sistemática global a despolitização dos indivíduos ? não é pra menos que tornou-se famosa sua retórica: "Com esta esquerda, quem precisa de direita?".
Por outro lado, há a experiência coletiva e subliminar da negação da bancarrota econômica e da miserabilidade da aldeia global neoliberal cuja desregulamentação e lógica econômica ultrapassou os limites da insanidade pois nunca antes a mesma fora divulgada (e admitida) com tal agilidade e rapidez, com tamanho aparelho midiático cuja circulação tecnologicamente produzida dá-se em tempo real, e com sua rotatividade entre centenas de culturas diferentes desde as extremamente rígidas em seu conteúdo mas contrários em sua forma (características de sociedades política e economicamente democráticas) até sistemas culturais absolutistas em sua forma e contrários em seus aspectos subjetivos (características de sociedades desejavelmente democráticas pois hoje afinal a abertura e a relação dos mercados mundiais precede e privilegia sistemas econômicos democráticos que também "cedam" à estruturas pretensamente "politicamente democráticas"), o que nos lança à possível confirmação da afirmação de que sociedades democráticas ou ditatoriais, autoritárias ou não vivem em um mundo transdimensional ? entre princípios e práticas universais no mínimo incompatíveis e incompetentes, e no máximo senão insuportáveis, esquizofrênicas (enquanto ação social).
Mas problematizações não faltam relacionadas ao tipo de produção artística que este mundo exigirá, sendo a arte objeto de análise referente ao entendimento do subjetivo e sensível à ação social (que a abstrai, teoriza, imagina, desconstrói e transforma em suas formas simbólicas de expressão), ou referente aos seus princípios relativos à práxis (procedimentos técnicos de produção tal qual o conceito da arte pós-moderna neoliberal lhe empresta hoje: "arte de massa", objetivada como campo e modo de produção comercial de obras que se coisificam em produtos e objetos de consumo sem quaisquer vínculos com quem as produziu e reproduz). No entanto, os teóricos do pensamento político clássico já refletiam sobre as origens, destinos e funções do fenômeno artístico bem como seus efeitos ou resultados de modo a herdarmos a possibilidade da elaboração consensual de um conceito de Arte em seus aspectos normativos e valorativos, de início, através de dois diferentes momentos:
- em um primeiro momento sugere a existência da arte como um evento epistemológica e teleologicamente fundado na necessidade da expressão e comunicação humana sobre seu conhecimento sensível através de sistemas de representação que viriam a oferecer tipos de manifestação - ou códigos - passíveis dos mais diversos tipos de interpretação, e neste tipo ideal weberianamente falando, neste momento Aristóteles vem a pertencer à um primeiro grupo de teóricos do pensamento político (não só do período clássico mas também moderno) para o qual a arte é o próprio objeto de estudo propondo-a como categoria de análise que dispõe de elementos substanciais internos e externos que a antecedem, pois seria antes de fenômeno criativo um produto de natureza humana posto à serviço da representações sobre o mundo material e social do homem.
- no segundo momento, a arte emerge da perspectiva de pensadores políticos clássicos aqui representados por Maquiavel e o estudo de sua produção teórica-crítica, de modo a conceber a arte como o lócus do processo crítico mas criativo e original voltado ao exercício da auto-expressão individual e desvelar do coletivo. Para este agrupamento de pensadores políticos clássicos (e modernos) a arte poderia ser observada como uma espécie de "vetor crítico" subjetivo essencial de seus próprios sistemas éticos, políticos e econômicos contemporâneos sendo como que convertida em um centro gerador de relações metafóricas não raro configuradas pelas representações mitológicas cujo poder simbólico traduziria o comportamento e a reação subjetiva dos indivíduos de modo causal, devido aos contextos políticos, econômicos e sociais e da própria condição humana a estes submetida. Estes momentos são precedidos por perspectivas distintas e inequívocas de pensadores políticos clássicos que aqui selecionei e propondo a identificação de alguns de seus conceitos pelos tais estabelecerem o diálogo do pensamento político com a produção artística mas cada qual em seus espaços, tempos e pressupostos teóricos-críticos e filosóficos originais os quais espero apesar de investigar não discriminar nem sugerir quaisquer demandas maiores relativas aos seus conceitos sobre a arte. E a seleção de teóricos do pensamento político clássico, seguindo à Hegel, traz Aristóteles à quem a produção artística revela-se à priori em seu estado subjetivo essencial mas catártico:

ARISTÓTELES (384-322 a.C.): À PÓLIS A ARTE

"A finalidade da arte é dar corpo à essência secreta das coisas" (Aristóteles)
De acordo com o verso acima, a arte (sem à priori classificá-la de "arte popular ou arte de massa" nem "arte erudita ou arte de elite") grega antiga pode ser observada como processo/objeto sem finalidade produtiva. De um prisma histórico-sociológico e filosófico grande parte da cultura política e da produção artística que hoje é global remete-se à pressupostos arqueológicos e científicos que apontam para o fato de que a Grécia, entre as primeiras civilizações da Antiguidade, inspirou os modelos das constituições políticas, sociais, bem como saberes e práticas do mundo Ocidental. Por isso, temos que nos deter-se um pouco sobre o caráter sociológico da mesma, soberania cuja a estrutura política era fundada na efetivação das cidades-estados governadas por oligarquias locais que internamente mantinham uma forma social escravista e com divisões de classes que funcionavam de modo independente como unidades políticas distintas (o que produziu muitos conflitos entre as cidades-estados). A Grécia Antiga não detinha um governo territorial unificado mas obedecia a premissa de sua administração política de que as oligarquias de cada cidade-estado estariam reunidas em caso de guerra afim de forjar estratégias e ações integradas defensivas frente à ameaças de domínio e anexação de seus territórios. Neste contexto a arte surge vinculada às necessidades de cada cidade-estado, como por exemplo em Esparta em que o ensino da dança desde a infância era obrigatório aos jovens soldados-cidadãos junto à prática de esportes pois constituíam as habilidades corporais aplicada como a aplicada pela modalidade "embateria" (ginástica rítmica) que objetivava disciplinar seus corpos preparando-os para a vida militar mas, neste caso, através de movimentos rítmicos à coordenação motora, agilidade, o equilíbrio e a resistência dos corpos a partir da percepção de sons emitidos no ambiente e segundo a dimensão espacial-corporal que cada corpo poderia vir a ocupar no espaço. Estes movimentos específicos de ordem bem mais sutis, precisos e de maior dificuldade dados os níveis de exigência de repetição prática cotidiana, não era estudados à exaustão nas aulas práticas de técnicas de lutas corpo-a-corpo logo caracterizavam um treinamento do tipo lúdico (constituído dos impulsos e contenções para os saltos, alongamentos e contrações com maior ou menor aceleração e intensidade, contorções e relaxamento de articulações e membros do corpo geralmente não explorados pelos movimentos corporais cotidianos como o tronco, pescoço, quadril, antebraços, pontas dos pés, calcanhares, etc), de modo tal que esta educação e seu refinamento técnico objetivados eram assim cultuados por boa parte da Grécia antiga, e que na capital refletiu-se de modo mais valorativo:

"Na requintada Atenas só se considerava educando o homem que, além da política e filosofia, soubesse também tocar algum instrumento, cantar e dançar. Os filósofos se manifestaram a favor da dança na educação, fosse como complemento artístico, fosse como exercício saudável para se obter uma boa musculatura. (...)

(...) Platão (c. 428-347 a.C.) refere-se à dança integrada ao aprendizado da música e do canto, dizendo nas Leis que as artes corais são imprescindíveis ao homem educado."

Aristóteles, discípulo de Platão, analisou a arte grega de seu período a partir do conceito aplicado ao termo "téchne" que refere-se à ação humana aplicada e objetivada, à uma atividade do indivíduo fundada em um saber específico que aprendeu ou conhece, ou seja: não havia neste contexto social e histórico-político a associação direta de "arte" com obra de caráter excepcional criada pela inspiração transcendental ou genial de um artista que também não detinha um status superior aos demais como que dotado de uma capacidade de percepção ou inteligência rara, distinta e apurada sobre o mundo e a humanidade. Mesmo assim, a arte como era entendida na Grécia aristotélica e a arte do modo como a concebemos hoje retém um ponto em comum a partir do que Aristóteles chamaria de "gênero poético" e que emerge na sua obra A Poética, cujo principal empreendimento é dispensar pressupostos normativos à produção artística e considerar referenciais para sua percepção estética. Contudo, Aristóteles enfatizava que a ação transformadora da arte não era superior ao seu poder de expressão de valores e princípios éticos e morais; mesmo assim, a Poética só revelaria sua substancialidade e essencialidade teórica posteriormente:
"A trajetória de sua importância começa efetivamente no século XVI, pois mal conhecida durante a Idade Média, através de compilações siríacas e árabes, só em 1498 sai à público a primeira edição latina feita sobre o original grego cuja impressão aparece apenas em 1503.(...)".
Através da Poética, Aristóteles concebe a arte como uma imitação da realidade e na obra haverá a distinção do que viria a ser a sua "arte mimética":
"a epopéia e a poesia trágica, assim como a comédia, a poesia ditirâmbica, a maior parte da aulética e da citarística, consideradas em geral, todas se enquadram nas artes de imitação."
Partindo da arte mimética, segundo Aristóteles, o homem produziria a arte por duas necessidades especiais: uma por ser a fonte de um prazer não simples mas complexo pois por exemplo na expressão musical o prazer resultava da fruição de emoções (como a compaixão, ira, paixão, tristeza) que desvelam-se através da catarse provocada musicalmente ou em termos técnicos pela combinação das variações entre o que hoje chamamos de ritmo e de melodia (dois elementos essenciais à composição musical). A mesma possibilidade de um resultado catártico (ou "purgação das afecções" para Aristóteles, pois "catarse" deriva à época de seu emprego às questões biológicas na antiguidade) havia nas artes teatrais, na dança (que era popular mas também à priori religiosa, elaborada e executada em homenagens aos deuses), nas artes visuais (decorativas, como as esculturas) e na arte arquitetônica (na construção dos grandes edifícios públicos por exemplo), e o que definimos hoje como habilidades artísticas eram para Aristóteles as "obras poéticas". Mas estes resultados (tipos de prazer) ocorreriam por um processo cuja intensidade, tempo e elementos originais seriam diferentes pois as linguagens artísticas ? os códigos e formas simbólicas ? seriam distintas. E o prazer, produzido quando todos os sentidos fossem dirigidos à uma expressão da arte, também conteria em si o próprio valor e ideal e estes habitavam na potencialidade de provocar transformações subjetivas, emoções e sentimentos frente à aspectos e fenômenos como a beleza ou a tristeza representadas nas obras poéticas, como a representação interna refletida e exteriorizada que restitui à materialidade o mundo sensível e essencial dos homens pelas suas próprias mãos.
A outra razão diz respeito à arte como a esfera de conhecimentos intrínsecos impregnada de saberes sensíveis mas capaz no entanto de dirigir-se à realidade após todo um processo subjetivo de trabalho no qual o homem codifica, memoriza, produz e expõe em forma material de produção de imagens e objetos à ponto de constituir nestes as idéias (e sentidos) e de vinculá-las à memória coletiva. Destas peculiaridades, avancemos agora trazendo Maquiavel que percebe e produz a arte em sua condição de vetor crítico relativo a fatores históricos, sociológicos e políticos de seu período:

MAQUIAVEL (1469 - 1527): COMO RESISTIR AO IRRESISTÍVEL?

Filósofo renascentista, em Maquiavel temos justamente o fundador da teoria política moderna devido à separação com a qual demarca e desvincula o sistema epistemológico e empírico político da esfera moral e religiosa, para o qual a política não só pode como deve ter seus pressupostos científicos submetendo-se às suas próprias leis e teorias de modo teleológico: na razão de sua eficiência estar centrada em seu objetivo final fundamental - as regras práticas indispensáveis à sua execução. Maquiavel partiu do empirismo, observando relações e fenômenos políticos e usando o método indutivo. Dispensou pressupostos éticos e da jurisprudência, registrando a dinâmica da conjuntura política como era e não como deveria ser e, assim como em sua teoria política, na arte dramatúrgica (ao escrever textos teatrais) Maquiavel atuou com sua percepção crítica e inventividade original desmistificando os costumes e clarificando a dimensão racional que há nas relações humanas que são políticas e cotidianamente mediadas no seio social.
A análise aqui enfoca a construção da trama da comédia teatral "A Mandrágora" (nome aqui dado à uma "porção mágica" ou planta afrodisíaca que dá origem ao título da comédia). Distribuída em cinco atos, escrita em 1503 e publicada em 1524 esta comédia teatral foi para o teatro ocidental tão marcante que até hoje seu subtexto (tudo o que não é dito) é atual, com ações dramáticas articuladas em relações estratégica e politicamente racionalizadas e executadas especificamente para atingir o objetivo de Calímaco, o personagem central em torno do qual a história gravita mostrando as insanidades calculadas com precisão por este jovem florentino que devido a uma aposta conhece e se apaixona avassaladora e devassamente por uma mulher casada (a recatada, crédula e pura Lucrézia) e cujo grande conflito é a impossibilidade de ter filhos com seu esposo (Messer Nício: velho e rico advogado). Para conquistá-la, Calímaco conta com a ajuda de cúmplices como seu fiel servo adulador (Siro); o brigão e trapaceiro (Ligúrio); um frei católico e sem escrúpulos que faz tudo por dinheiro (Frei Timóteo), e a própria Mãe de Lucrézia interessada na produção de um herdeiro (Sostrata). Maquiavel constrói o conflito em que a grande estratégia política é a manipulação pragmaticamente sustentada; Nicio, o marido, nem é digno de compaixão frente a tamanho cinismo cavalheiresco, de bons modos e etiquetas do Calímaco que finge ser médico para tratar Lucrézia e, como em toda a condução política bem sucedida, afim de convencer Sostrata alega que irá usar a mandrágora para que a filha engravide - a poção com que teria conseguido fertilizar a própria Rainha da França se vangloriando de suas ótimas relações com a nobreza (que detinha o poder e controle social na época) ao mesmo tempo em que não tarda pra que ele compre por uma doação à Igreja o apoio do Frei Timóteo, com a ajuda de Ligurio e Siro. Receitando para Lucrézia a mandrágora para que engravide, ela - único símbolo da boa fé e inocência nesta história -, ouve então de Calímaco o aviso: depois que ela tomasse a poção, o primeiro homem com quem ela fizesse sexo iria morrer em seguida, pois o veneno da planta seria absorvido pelo corpo do coitado. Ela se apavora e rejeita mas Calímaco já tinha solução à este desastre: Lucrézia tomaria a poção e deitaria com um vagabundo que eles pagariam para fazer sexo com ela, ou seja, Calímaco, que tempos depois se disfarça e é levado ao seu quarto aonde Nícia (o marido) o ordena que tire a roupa e possua sua esposa após sua saída. Á sós, Calímaco a conta tudo e ela sensibilizada por sua devoção e irada com o marido não ter se importado em matar um estranho inocente diz à Calímaco que pediria ao marido que eles fossem compadres ? Calímaco, o pai da criança ? e que Nícia agora eternamente grato à Ele e aos seus colegas pela produção do seu herdeiro, daria a chave de sua própria casa para que eles pudessem entrar quando desejassem! Nesta conquista amorosa mesclam-se sensações de perigo, medo, culpa, erotismo e desejo perante as duas situações limites condenadas pela Igreja e pelo senso comum e moralista : o sexo entre Calímaco e Lucrézia ? ou o adultério -, e a traição ao marido. E por mais absurdo que isso nos pareça, a solução final da peça em tudo confragla para o sucesso de Calímaco que, queiramos ou não, estrutura todas as situações com ares de vilão charmoso, saudoso e irresistível - tamanha sua audácia e ousadia: um anti-herói de rara valentia!
- A Força Dramática Maquiaveliana - as Personagens e a Virtú -
De início, percebemos a alta capacidade crítica de Maquiavel ao trazer à tona e destacar a subjetividade amoral cultural em suas personagens. Ele as constrói de modo que não conseguimos as separar nem distinguir de suas ações; não há nenhuma força moral ou espiritual atuando sobre elas. Pelo contrário, eles adquirem a potência máxima da condição de existência para além da representação porque suas ações são objetivas e iguais aos princípios éticos que apresentam, que individualizam as suas almas e os seus interesses, paixões e fins racionalmente calculados, personificando as próprias estratégias e habilidades para a disputa, a negociação, convencimento e a totalidade de suas vontades fazendo com que seus desejos prevaleçam ao manipular pessoas e fatos sendo estes seus princípios efetivos, universais, caros e em nada "politicamente corretos".
Suas ações objetivavam apenas a auto-satisfação não importando o custo a pagar nem o julgo à que sofressem pois "os fins justificam os meios", e se ambos eram nobres ou não era uma discussão desnecessária: observar nesta comédia as ações e os arquétipos sociais (no sentido weberiano ), e os conflitos que Maquiavel conseguiu produzir e manter em cena eram assustadores à época, pois à priori estas "pessoas" eram movidas por interesses racionais em suas relações cotidianas, estabelecendo-as de modo político - através de acordos e associações.
A virtú aqui revela-se no conceito por ele empregado: como a adaptação das pessoas em situações as quais elas tem que agir de modo político: mediando desejos e conquistando espaços de forma que esta adaptação as leve a vencer ou a continuar no poder; a virtú como um saber pragmático que detém as situações imprevistas que podem dificultar o alcance dos fins. Na "Mandrágora", a virtú é um princípio prático quase que constante que emerge em diversos momentos-chave em que nem sempre todos são favorecidos mas ninguém sai perdendo:
- emerge na boa intenção de Calímaco ao fertilizar a esposa de Nícia e dar-lhes o herdeiro que perpetuasse a família representando-a naquela sociedade;
- quando o Frei Timóteo aceita a doação de Calímaco em troca de seu silêncio conveniente para todos e para o bem da Igreja;
- na revelação de Calímaco à Lucrézia que assim se redime mas a faz objeto máximo e simbólico do confronto entre a ação e a liberdade individuais, e o contexto religioso e cultural radicalmente moralista, cerceador e punitivo pós-medieval ainda impregnado na sociedade italiana.
Como em uma avenida, Maquiavel transita livremente entre os mundos institucional e o individual, acelerando nas paixões e interesses das personagens e quase parando nos momentos em que suas atitudes racional e calculadamente vão redirecionando os fatos e à todos. Há uma crescente flutuação tanto da sensação do poder daqueles que à tudo influenciam, como da impotência dos que se vêem perante ao caos sem quaisquer perspectivas de controle, nem intervenção de uma ordem maior.
Este texto dramático vislumbra um sistema axiológico peculiar e forjado com refinado e sutil senso de humor sobre as relações práticas da vida, no qual a razão e as atitudes se impõem pragmaticamente aos valores morais e éticos das personagens lançando o público à uma incógnita íntima em que a tensão está na própria crise do julgamento, pois ele é forçado a refletir suas próprias ambigüidades de desejos e princípios, sobre as necessidades à priori da vida coletiva e os interesses de cada um. Na beira do abismo ou na exata fronteira para o paraíso pessoal, escolhas tem que ser feitas: decisões éticas se curvam não ao moralmente correto, mas ao concretamente desejado ? e aqui mora sua riqueza, ao expressar a ideologia da burguesia italiana ascendente e sua necessidade urgente de emancipação do institucionalismo religioso e católico dominante, desnudando uma realidade social em que a arte da manipulação era tão onipresente que acabou por fim a legitimando de modo a podermos aceitá-la cotidianamente no mundo de hoje em que, se preciso for, transformamos deuses (nossas esperanças mais sutís) em cowboys (boiadeiros que levam a boiada de um lado pro outro...).




CONCLUSÃO:
Este artigo confirma a necessidade de revisitar e aprofundar constantemente o pensamento político clássico que não só é caro à compreensão das esferas social e artística como à quaisquer círculos acadêmicos e campos científicos no mundo atual. Faz-se urgente na sociedade neoliberal global pós-moderna estudá-los à exaustão, pois estes pensadores que tanto estudaram os desejos, ideais e limites dos homens guardam muitas respostas para as milhares de perguntas que as próximas gerações provavelmente em algum momento se farão, ao se verem tecnologicamente objetivadas, afim de saber-se aonde sua alma habita.


BIBLIOGRAFIA:
-BRUNA, Jaime. Aristóteles, Horácio, Longino. Poética Clássica. São Paulo: Cultrix, 1997.
- FREDERICO, Celso. A Arte em Marx: um estudo sobre os manuscritos econômico-filosóficos. Revista Novos Rumos. Número 42, 2005.
- SELL, Carlos Eduardo. Sociologia Clássica: Marx, Durkheim e Weber. 2ª edição. Petrópolis, RJ: Vozes, 2010.
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- ZIZEK, Slavoj. Elogio da Intolerância. Tradução: Miguel Serras Pereira. Lisboa: Relógio D´Água, 2006.
- MARTINS, Mirian Celeste, PICOSQUE, Gisa e TELLES GUERRA, M. Terezinha. Teoria e Prática do Ensino da Arte: A Lingua do Mundo. 1ª Ed. ? São Paulo: FTD, 2009.
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