Considerações Sobre A Denominada 'Lei Seca'



CONSIDERAÇÕES SOBRE A DENOMINADA "LEI SECA"

A EXTENSÃO DA OBRIGATORIEDADE DOS TESTES DE ALCOOLEMIA PARA FINS DA APLICAÇÃO DE MEDIDA ADMINISTRATIVA

DANILO DAL ZOT FLORES[1]

Nos últimos dias muito tem se falado acerca de denominada "lei seca" recentemente em vigor no cenário nacional. A imprensa em geral divulga diariamente estatísticas sobre prisões de condutores flagrados em estado de ebriez, além do declínio nos números de acidentes automobilísticos e nas vendas das bebidas alcoólicas em bares e restaurantes.

A chamada "lei seca" decorre da interpretação do art. 276 do CTB a qual informa que "qualquer concentração de álcool por litro de sangue sujeita o condutor às penalidades previstas no art. 165".

Além disso, a nova lei passou a impelir o condutor à realização dos testes de alcoolemia, sendo que sua negativa importará na aplicação das penalidades administrativas como se embriagado estivesse, dispositivo inexistente anteriormente.

Algumas questões de ordem técnica merecem serem destacadas, em especial quanto à obrigatoriedade a realização dos exames de alcoolemia por parte do condutor em que pese às conseqüências administrativas da eventual negativa.

O presente estudo não tem a intenção de aprofundar o assunto, mas simplesmente tratar de algumas situações práticas e que trazem dúvidas quanto à extensão da obrigatoriedade na realização de exames de alcoolemia para fins da aplicação de penalidades administrativas.

1. Numa fiscalização de rotina todo e qualquer condutor será obrigado a submeter-se aos chamados testes de alcoolemia previstos no art. 277 do CTB?

A resposta é negativa.

O artigo em relevo informa que "o condutor de veículo automotor, envolvido em acidente de trânsito ou que for alvo de fiscalização de trânsito, sob suspeita de dirigir sob a influência de álcool será submetido a testes de alcoolemia, exames clínicos, perícia ou outro exame que, por meios técnicos ou científicos, em aparelhos homologados pelo CONTRAN, permitam certificar seu estado".

Contrario sensu, vale dizer que o condutor que não esteja envolvido em acidente de trânsito ou sob suspeita de estar dirigindo sob a influência de álcool não poderá ser obrigado a submeter-se aos testes de alcoolemia.

Mesmo tratando-se de norma com efeitos de ordem administrativa, o direito constitucional[2] de que ninguém é obrigado a fazer ou deixar de fazer algo, salvo em virtude de lei, é perfeitamente aplicável ao caso.

Interpretação similar foi adotada em julgamento recente de liminar concedida em habeas corpus[3] no Tribunal de Justiça de Santa Catarina pelo Desembargador Paulo Henrique Moritz Martins da Silva em que assegurou o direito do impetrante em negar-se a realizar o teste do bafômetro.

Na liminar concedida, assim aduziu: "Observe-se que, pela lei, se houver suspeita de condução de veículo automotor, estando o motorista sob a influência de álcool, será ele submetido a provas de alcoolemia, exames clínicos ou técnico-científicos, desde que em aparelhos homologados pelo CONTRAN, podendo ser aplicadas as penalidades previstas no art. 165 do CTN, em caso de recusa.

É evidente que a conseqüência jurídica da não submissão ao teste de alcoolemia desborda dos limites previstos na Constituição Federal, que não lhe empresta, por isso, figurino constitucional.

Aqui reside o temor suficiente para que se conceda o salvo conduto, a evitar esse possível constrangimento.

É dever do Poder Judiciário assegurar à paciente o direito de se opor ao autoritarismo, à deformação da autoridade, porquanto anormal, ilegítima e imoral."

Mais ainda destaca:

"Esse ato a que se busca prevenir, coação ilegal da paciente para realizar o teste de bafômetro na hipótese de diligência policial, sob pena de condução coercitiva à repartição policial, aplicação das penalidades administrativas e penais decorrentes desta abstenção constitucionalmente garantida, merece ser albergado pelo salvo conduto.

Situação diversa, entretanto, é aquela do motorista que mesmo sem consumo de qualquer substância esteja colocando em risco a segurança pública, de forma objetiva, por sua postura irresponsável no trânsito."

A lei, no caso em exame, restringe a obrigatoriedade a duas situações: a) estar envolvido em acidente de trânsito; b) sob suspeita de estar dirigindo sob a influência de álcool;

2. Uma vez o condutor envolvido em acidente automobilístico ou sob suspeita de dirigir sob influência de álcool poderá negar-se a fazer os testes de alcoolemia? Sua negativa importará na aplicação das penalidades do art. 165 do CTB [4]?

A carteira nacional de habilitação tem como natureza jurídica tratar-se de uma autorização. O Poder Público concede ao particular autorização para trafegar nas vias públicas dentro do território nacional.

A autorização é definida pelo saudoso Hely Lopes Meireles[5] como um "ato administrativo discricionário e precário pelo qual o Poder Público torna possível ao pretendente a realização de certa atividade, serviço ou utilização de determinados bens particulares ou públicos, de exclusivo ou predominante interesse, que a lei condiciona à aquiescência prévia da Administração, tais como o uso especial de bem público, o porte de arma...."

Ainda refere "na autorização, embora o pretendente satisfaça as exigências administrativas, o Poder Público decide discricionariamente sobre a conveniência ou não do atendimento da pretensão do interessado ou da cessação do ato autorizado...." e mais adiante assinala: "Não há qualquer direito subjetivo à obtenção ou à continuidade da autorização, daí por que a Administração pode nega-la ao seu talente, como pode cassar o alvará a qualquer momento, sem indenização alguma".

Para tanto, o particular deve submeter-se a alguns requisitos[6] e realizar alguns exames[7] para ser concedida a autorização, bem como atender a legislação pertinente, no caso o Código de Trânsito Brasileiro, Lei nº 9.503/98.

Tal licença é precária e com validade expressa, podendo ser renovado o período, conforme a reafirmação de alguns requisitos (testes médicos e de conhecimento).

O desatendimento dos requisitos para a concessão da licença ou a infringência às normas administrativas que regulam o tráfego viário implicará na negativa a expedição da CNH ou sua cassação ou suspensão, conforme for à penalidade prevista a infração praticada.

Sem embargo a entendimento diverso (como é o caso da liminar do TJSC já examinada), aquele que é flagrado envolvido em acidente automobilístico ou sob suspeita de dirigir sob influência de álcool não poderá invocar direito supra-constitucional de que "ninguém é obrigado a formar prova contra si".

Esse direito é especificado por Flavia Piovesan[8] da seguinte forma: "a partir da Carta de 1988, importantes tratados internacionais de direitos humanos foram ratificados pelo Brasil", dentre eles a Convenção Americana de Direitos Humanos, que em seu artigo 8º, II, g, estabelece que toda pessoa acusada de um delito tem o direito de não ser obrigada a depor contra si mesma, nem a confessar-se culpada, consagrando assim o princípio segundo o qual ninguém está obrigado a produzir prova contra si mesmo.

Numa outra interpretação à mesma regra, Sylvia Helena de Figueiredo Steiner[9] ensina que "o direito ao silêncio, diz mais do que o direito de ficar calado. Os preceitos garantistas constitucional e convencional conduzem à certeza de que o acusado não pode ser, de qualquer forma, compelido a declarar contra si mesmo, ou a colaborar para a colheita de provas que possam incrimina-lo".

Repisando a CNH, tão-somente, trata-se de autorização concedida e não de um direito do cidadão em possuir uma carteira de habilitação, daí porque a inobservância a premissa legal que impele o condutor a submeter-se aos exames de alcoolemia autoriza o Poder Público a cassar-lhe ou a suspender a mencionada autorização precária. É um ato administrativo vinculado[10] à lei, praticado pelo Poder Público.

Portanto, a §3º[11] do art. 277 é perfeitamente aplicável ao condutor do veículo que se nega a realização de exames de alcoolemia, até porque os exames de alcoolemia, para fins de aplicação das penalidades do art. 165, podem ser supridos por "outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor" (§2º, Art. 277).

3. Inobstante exista uma fiscalização com um equipamento alveolar (bafômetro) para constatação da ebriez, o condutor poderá escolher qual o teste de alcoolemia a se submeter, p.ex., o exame clínico?

Muito embora no texto do §3º do Art. 277 conste a expressão "se submeter a qualquer dos procedimentos", tenho que o condutor poderá, sim, optar em submeter-se ao exame clínico e não ao bafômetro (do inglês "breath alcohol analyzer", que permite determinar a quantidade de álcool no sangue, ingerido na forma de etanol em bebidas alcoólicas, através do ar expirado por uma pessoa).

Registre-se que o condutor obrigado à realização dos testes de alcoolemia não está negando-se a realização dos testes que alude o art. 277, mas sim apenas indicando a qual deles quer submeter-se. Essa concordância impediria a aplicação das penalidades do art. 165.

Não havendo condições do condutor se submeter a outro teste que não o bafômetro em determinada operação policial, estando o condutor com sintomas de embriaguez, o agente fiscalizador de trânsito dispensará a realização do exame de alcoolemia, aplicando ao caso o que preceitua o §2º do art. 277, assim inscrito "A infração prevista no art. 165 deste Código poderá ser caracterizada pelo agente de trânsito mediante a obtenção de outras provas em direito admitidas, acerca dos notórios sinais de embriaguez, excitação ou torpor apresentados pelo condutor".

O agente fiscalizador poderá arrolar testemunhas do estado de ebriez do condutor ou também cercar-se de outros meios de prova admitidos, p.ex., filmagens do estado do condutor (cambaleante, sem condições de falar), apreensão de objetos (bebidas que estavam dentro do veículo) e outros.

No caso em exame, note-se que os efeitos práticos da escolha por parte do condutor em submeter-se a este ou aquele teste de alcoolemia diante da possibilidade de aplicação do §2º do art. 277 é a mesma da negativa descrita no §3º do artigo já referido, qual seja: aplicação da multa de trânsito e conseqüente apreensão da CNH. Mas as duas não se confundem.

Existem diferenças significativas quanto à motivação para a aplicação da medida punitiva nos dois casos.

A primeira decorre da obtenção de outras provas para configurar a infração de trânsito, que não os testes de alcoolemia.

A segunda decorre simplesmente como conseqüência da negativa do condutor em submeter-se aos respectivos testes de dosagem de álcool, inovação da lei recentemente em vigor e inexistente no ordenamento anterior.

Por certo, existirão críticos a essa possibilidade do condutor escolher o teste de alcoolemia a que irá ser submetido, sob a alegação que o Estado está franqueando ao administrado a possibilidade de ser realizado um dos testes previstos na lei, cabendo a ele (administrado) a submissão a isso, sem faculdade de escolher a um ou a outro teste.

Para os defensores dessa tese, no caso de uma blitz policial inexistir outro teste à exceção do bafômetro, o condutor que escolhesse outro teste de alcoolemia inviabilizaria que Estado viesse a responsabilizar o condutor eventualmente flagrado bêbado ao volante.

Resumidamente, esses argumentos não encontram sustentação por três motivos.

a) Primeiro, como já foi visto, porque poderá o agente de trânsito aplicar a medida administrativa prevista no art. 165, valendo-se de outras provas admitidas em direito e com suporte legal no §2º do art. 277. Portanto, ao condutor ébrio seriam aplicadas as penalidades administrativas igualmente.

b) Segundo, porque em sendo impossível o agente escolher o teste a se submeter, flagrado o condutor em estado de ebriez e obrigado a realizar o teste do bafômetro, caso o resultado venha a ser de 6 (seis) decigramas ou mais de álcool por litro de sangue, estaria o condutor formando prova contra si em delito a ser apurado no art. 306 do CTB. Essa obrigatoriedade – caso fosse legal – seria um abuso e iria de encontro ao direito supra-constitucional já abordado anteriormente.

O Estado, sob o manto da necessidade de aplicar uma medida administrativa, por via transversa, estaria obrigando o administrado a formar prova contra si.

Arrematando com as palavras de Sylvia Helena de Figueiredo[12], "não se concebe um sistema de garantias no qual o exercício de um direito constitucionalmente assegurado pode gerar sanção ou dano".

c) Terceiro, porque, numa situação hipotética em que o Estado disponibilizasse apenas o exame laboratorial (extração de sangue), caso o condutor fosse obrigado à realização desse teste, com certeza o agente estaria extrapolando na função, agindo em flagrante ilegalidade e abuso de poder.

Vale referir, a esse respeito, que "ninguém é obrigado a cumprir ordem ilegal, ou a ela se submeter, ainda que emanada de autoridade judicial. Mais: é dever de cidadania opor-se à ordem ilegal; caso contrário, nega-se o Estado de Direito"[13].

4. Parado numa blitz rotineira, o condutor de veículo que esteja com sintomas de uso de outra substância psicoativa que determine dependência poderá ser obrigado a submeter-se aos testes previstos no art. 277?

Não. O condutor flagrado nestas circunstâncias não poderá ser impelido a realização dos testes a que alude o artigo mencionado.

O artigo 277 é bastante específico e restrito aos casos em o condutor será submetido aos exames, quais sejam:

a) o condutor envolvido em acidente de trânsito; b) quando o condutor esteja sob suspeita de estar dirigindo sob a influência de álcool.

O trânsito realmente é uma tragédia nacional em que são registradas cerca de 35 mil mortes por ano, 400 mil feridos, 1,5 milhão de acidentes e 22 bilhões de reais por ano só para cobrir os gastos com os acidentes das estradas federais.

A chamada política de tolerância zero, essa é a bandeira da Lei 11.705/2008, é oportuna. Não se toleram mais tantas mortes no trânsito. Os números de acidentes e de mortes vinham num crescendo, dia a dia superavam as estatísticas anteriores.

Mesmo muito recente, a lei já produziu efeitos e mudou hábitos.

"A nova lei seca completa um mês no fim de semana. Desde 20 de junho, os motoristas flagrados depois de beber estão sujeitos a multa e suspensão da carteira de habilitação por 12 meses, além de prisão nos casos mais graves. Para motoristas e donos de bares e restaurantes, a saída é investir na criatividade" JURID – Biblioteca Jurídica Virtual. Disponível em: http://www.jurid.com.br/new/jengine.exe/cpag?p=jornaldetalhejornal&ID=50586, acesso em 21.07.08).

Ainda, as notícias publicadas dão conta que a após a vigência da "Lei Seca" houve sensível diminuição dos números de acidentes de trânsito e, por conseqüência, de socorros prestados pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência - SAMU.

Estimativa feita pelo Ministério da Saúde e reportada no sítio www.saude.gov.br, constatou que a norma reduziu em média 24% as operações de resgate. O universo da pesquisa abrangeu 14 cidades, que cobrem cerca de 25,3 milhões de pessoas.

A lei é cercada de excelentes dispositivos, porém possui diversas imperfeições e desde já carece de revisões e alterações. O legislador, infelizmente, como é comum acontecer, agiu com pressa. Não foi feito um exame detalhado da matéria, remetendo aos operadores do direito a interpretação e aplicação das normas legais recentes.

No afã de conter a onda crescente de acidentes e na necessidade de dar efetividade à nova lei é possível a ocorrência de muitos exageros, equívocos e abusos.


[1] O autor é Delegado de Polícia no Estado do Rio Grande do Sul, Especialista em Direito Penal e Direito de Processo Penal.

[2] Art. 5º, inciso II – ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

[3] Habeas Corpus n. 2008.040712-9, TJSC.

[4] Art. 165.  Dirigir sob a influência de álcool ou de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008) Infração - gravíssima; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008) Penalidade - multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses; (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)

[5] Direito Administrativo Brasileiro, 20º ed., São Paulo, 1990, p. 170 e 171.

[6] O art. 140 da Lei nº 9.605/97, de 23.09.1997, estabelece que para conduzir veículo automotor e elétrico será apurada por meio de exames que deverão ser realizados junto ao órgão ou entidade executivos do Estado ou do Distrito Federal, do domicílio ou residência do candidato, ou na sede estadual ou distrital do próprio órgão, deverá o condutor ser penalmente imputável; saber ler e escrever; possuir Carteira de Identidade ou equivalente.

[7] O art. 147 da Lei nº 9.605/97, de 23.09.1997, determina que o candidato à habilitação deverá submeter-se a exames realizados pelo órgão executivo de trânsito, dentre eles o de aptidão física e mental; o escrito, sobre legislação de trânsito; o de noções de primeiros socorros, conforme regulamentação do CONTRAN; o de direção veicular, realizado na via pública, em veículo da categoria para a qual estiver habilitando-se.

[8] Direitos Humanos e o Direito Constitucional Internacional, 3. ed., São Paulo, Max Limonad, 1997, p. 254.

[9] A Convenção Americana sobre Direitos Humanos e sua integração ao processo penal brasileiro, São Paulo, Revista dos Tribunais, 2000, p. 125.

[10] "são aqueles para os quais a lei estabelece os requisitos e condições de sua realização"

[11] § 3o  Serão aplicadas as penalidades e medidas administrativas estabelecidas no art. 165 deste Código ao condutor que se recusar a se submeter a qualquer dos procedimentos previstos no caput deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)

[12] Ob., cit. p. 125.

[13] HC 73.454, Rel. Min. Maurício Corrêa, j. em 22-4-1996, DJ de 7-6-1996.


Autor: Danilo Dal Zot Flores


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