A Imagem Caipira No Cinema De Mazzaropi



Refletir sobre o papel do cinema nacional principalmente a partir da década de 50 juntamente com suas dificuldades em mostrar nossa realidade social e cultural para o público brasileiro, foi um desafio diante a aquela que vinha de fora, pois fomos acostumados culturalmente a eleger padrões de cinema norte-americano, e este nos parecia mais enriquecedor artisticamente pela qualidade sonora e visual.

A imagem do Brasil caipira no cinema só seria aceitável logo após o país tornar-se referência do moderno urbano-industrial. O olhar da elite consumidora dos modernos valores importados se preocupava em não apresentarmos ao mundo uma imagem de índios, negros, caipiras e cangaceiros, sendo como indigno de ocupar espaço em nossa cinematografia que preconizava um fundamento de preconceito de classe social ao mostrar o país real, pois se tornara uma ameaça à nossa imagem diante do estrangeiro.

Mazzaropi produziu 32 filmes, dos quais 21 foram escritos por ele, isso mostra seu considerável conhecimento sobre os problemas e ansiedades que os brasileiros enfrentavam diante do advento de uma agressiva cultura capitalista elitista. É evidente a todos os que assistiram a algum filme de Mazzaropi, demonstra seu interesse particular por algum grupo social, ou seja, os caipiras. Seu personagem mais bem-sucedido, Jeca, pode ser visto como uma forma de representação de caipiras, bem como referência sobre cultura popular, como ele próprio afirma:

O que eu entendo por cultura popular? As raízes do povo brasileiro. Assim, negar o caipira brasileiro é negar a própria raiz. Acho que cultura é justamente não esquecer o passado, não esquecer nossas tradições. O meu público está comigo há 40 anos e não me larga. Quer dizer que ele me entende [1].

O cinema de Mazzaropi, de linha cômica como apontam os ensaístas, foi objeto de um reduzido número de estudos. Os autores detectam o pouco interesse pelas películas brasileiras que constantemente alcançaram um bom número de espectadores e cópias comercializadas desse artista. A pesquisadora Eva Paulino Bueno é quem vai chamar atenção, no segmento de estudo sobre a cultura popular brasileira através de Mazzaropi.

A história apresentada nos filmes de Mazzaropi não é também uma tentativa sistemática de proporcionar uma releitura de figuras-chave brasileira. Já que Mazzaropi atua como personagem principal, e por causa do tipo físico e do caráter de Jeca a ele associados, seu protagonista não personifica da figura heróica tradicional. (...) De fato, embora a finalidade seja provocar o riso no público, seus filmes tratam de problemas básicos da história brasileira, ou seja, a existência da escravidão, o conflito entre as culturas urbana e rural, as profundas diferenças regionais no Brasil, a luta para manter o Brasil livre de influências culturais norte-americanas e as ligações sentimentais com Portugal, entre outros. (Bueno, 1999, p. 107)

Quanto ao público que prestigiava nosso ícone caipira, o crítico de cinema Jean-Claude Bernardet descreveu que o cinema de Mazzaropi era reacionário e conservador, baseando seus filmes em problemas reais vividos pelo público, segundo ele:

[...] as importantes discussões que se desenvolvem atualmente sobre o que seja cinema popular, não podem ignorar os filmes de Mazza. Não porque sejam produtos comerciais de grande audiência, nem porque, pensaria em imitar a linguagem desses filmes e enxertar nela mensagens não conservadoras, o que seria uma tolice. Mas, porque esses filmes só tem um efeito alienante, à medida que se comunicam com o público, a partir de seus problemas, canalizando sua tensão, dentro de uma sociedade de classe. (Bernardet, 1978, p. 11)

A personagem de Mazzaropi repercutia o próprio desenvolvimento da civilização brasileira, sem, contudo, deixar escapar os elementos culturais que compunham a sua essência, ou, seja, com o passar do tempo não perdia a memória do que efetivamente é: a síntese das origens do povo brasileiro.

Também o professor e pesquisador Nuno Cesar de Abreu observa que o público de Mazzaropi era formado sobretudo pelo contingente que migrou do campo para as cidades nas décadas de 1950 e 1960, período que coincide com o processo de desenvolvimento e modernização da cidade e com a industrialização e o crescimento econômico. Nesse contexto de negação do atraso, em que o rural surge como imagem do atrasado, a personagem de Mazzaropi vem representar para as novas massas urbanas o conservadorismo do campo.

E foi através de uma figura literária de imensa ingenuidade representou o Brasil caipira: Jeca Tatu, personagem fruto da imaginação do escritor José Bento Monteiro Lobato, descreve em sua obra Urupês o caipira como algo improdutivo que estava em desarmonia com a natureza, citado como um 'piolho-da-terra', capiau sem vocação para nada, a não ser para a preguiça, incapaz de viver junto à civilização e adaptar-se aos novos tempos.

Mazzaropi astuto tirou proveito da fama criado pelo personagem Jeca, de Lobato, mas depois abandonou a idéia desse caipira franzino e aproximou-se da essência de outro personagem de Lobato, Zé Brasil, que agora com o devido reconhecimento da importância da figura do caipira o autor observa com outro olhar ao compreender que as dificuldades vividas pelos lavradores brasileiros não existiam por opção, mas por imposição de um sistema econômico de exclusão social e pela ausência de investimentos do Estado nesses trabalhadores que apenas sobrevivam do campo na condição de excluídos.

Podemos relacionar esta conclusão de Monteiro Lobato com o que nos apresenta Antônio Cândido, em sua obra Parceiros do Rio Bonito, ao estabelecer o processo de mudança na ordem econômica do país:

Um grupo que se sentia equilibrado e provido do necessário à vida, quando se equiparava aos demais grupos do mesmo teor, sente-se bruscamente desajustado, mal aquinhoado, quando se equipara ao morador das cidades, cujos bens de consumo e equipamento material penetram hoje no recesso da sua vida, pela facilidade das comunicações, a multiplicidade dos contactos, a penetração dos novos estilos de viver. Em conseqüência muda, para o estudioso, o problema dos seus níveis de vida, que passam por nossos dias por uma crise aguda, já referida, em que a ampliação das necessidades não é compensada pelo aumento do poder aquisitivo. Colocando em face desta situação, o caipira reage de duas maneiras principais; rejeita em bloco as suas condições e emigra, proletarizando-se; ou procura permanecer na lavoura, ajustando-se como possível (Candido, 1998, p. 217)

Candido ao pesquisar o homem pobre rural que vive com o mínimo indispensável e que tira da natureza apenas o necessário para sobreviver. Mas que a partir da década de 1950, a cultura do parceiro caipira está em fase de transformação com a pressão exercida pela modernização que cada vez mais a pressiona com o ritmo avassalador do homem do campo. Assim o autor vê que determinados elementos da cultura caipira foram se ajustando a uma nova conjuntura econômica, a uma nova sociedade e a urbanização crescente.

Assim, com o processo de modernização do país, nosso cinema pode exibir sem restrições o 'Jeca' nas telas, como afirma a pesquisadora Célia Tolentino:

Contudo, vale lembrar que se nos finais dos anos 50 o Jeca era reclamado como sinônimo de brasilidade, é porque alguma coisa mudara substancialmente: o caipira já podia constituir-se em ficção. A industrialização brasileira já se mostrava como idéia dominante e como fato, assim como a urbanização galopante das cidades, e o Jeca não mais deporia contra a imagem do país, como décadas antes, quando fora rejeitado veemente. Em 1931 o país agrário queria ver-se diferente nas telas, tal como fazia o nosso modelo, o cinema americano. (Tolentino, 2001, p. 22)

O caipira fílmico de Mazzaropi pode ser visto como uma representação caricatural do caipira, ele é indolente, simples e conformado, porém, manhoso e valente quando necessário, além de possuir valores de honestidade. Este caipira vive entre o mundo conservador rural com suas regras sociais claramente estabelecidas e o mundo moderno urbano, com seus novos processos de produção, circulação e consumo de bens criado pela moderna indústria nacional.

Mazzaropi viveu um momento histórico do Brasil. Adaptando-se a cada década, ele buscou representar as transformações sociais produzidas e impostas pelo sistema socioeconômico, ocasionadas pela desigual distribuição de renda no país, e superou a deficiência técnica, acreditando ao retratar as tradições populares por meio das imagens representativas dos modos de vida de brasileiros ao expor conflitos migratórios rural-urbano, bem como a solidariedade, simplicidade, liberdade e desejo de justiça social.

Referências Bibliográficas

BUENO, Eva Paulino. O artista do povo: Mazzaropi e Jeca Tatu no cinema do Brasil. Maringá: Eduem, 1999.

CANDIDO, Antônio. Os parceiros do Rio Bonito: estudo sobre o caipira paulista e as transformações de seus meios de vida. São Paulo: Duas Cidades, 1998.

LOBATO, Monteiro. Urupês. 37. ed. Obras completas, São Paulo: Brasiliense, 2004.

SILVA, Kleber Eliandro. Mazzaropi, um caipira-cangaceiro, encontro de culturas no cinema brasileiro. Dissertação de mestrado – São Paulo, Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2007.

TOLENTINO, Célia Aparecida Ferreira. O rural no cinema brasileiro. São Paulo: Unesp, 2001.

Periódicos

[1] Mazzaropi, entrevista dada ao Folhetim da Folha de São Paulo, 02/07/78.

[2] BERNARDET, Jean-Claude."Nem pornô, nem policial: Mazzaropi". Jornal Última Hora, 22-23 de julho de 1978, p. 11.


Autor: Kleber Eliandro da Silva


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