Pensando Eu Mesmo... Quase Feliz...



Então é isso, começou a primavera... Pelo menos é o que diz o calendário. Um novo dia amanheceu... Era para ser um lindo dia, daqueles feitos de azul morno e ensolarado, levemente salpicado do canto inocente de pássaros ariscos que ficam pulando felizes nos galhos das árvores floridas...

Um dia de flores e beija-flores. Um dia quase perfeito, daqueles que a gente olha, vê a relva verdinha, e diz: Deve ter sido assim quando Deus criou o primeiro dia...

Mas está frio e chuvoso, esse dia que acabou de amanhecer. Em parte alguma há qualquer sinal das flores da primavera que, segundo o calendário, já começou... É que esse dia de primavera é só mais um dia friorento de inverno...

Também na minha alma ainda é inverno. Na minha alma a primavera só vai começar no verão, que é quando janeiro chegar...

É engraçado isso, coisa boba, mas dependendo de quando se começa contar todo dia é fim de ano. Esse ano, de uma primavera a outra, o ano passou num suspiro... Ontem ainda era inverno, antes de ontem ainda era outono, agora já é primavera.

O tempo, sobretudo o tempo da nossa vida, voa cada vez mais rápido quando se aproxima do fim... Vinte e quatro horas é pouco tempo para um dia. Cada dia de nossas vidas deveria durar mil... Ainda bem que não dura.

Que enfado, que peso insuportável de se carregar, seria uma vida de mil anos! Setenta anos é o tempo de nossa vida. E se alguns, por sua robustez, chegam aos oitenta, o melhor deles desses anos é canseira e enfado... Diz o salmista (Salmo 90).

Daqui a uns trinta anos irei chegar ao limite demarcado pelo salmista. Será que agüentarei o enfado e a canseira dessa espera? Duvido... Há tantas outras possibilidades. Mas um, dizem, é o tempo da alma e outro é o tempo do corpo...

Falam por aí que mesmo aos setenta anos um homem pode ser jovem... Que!! Mas que loucura é essa? Quem inventou isso? Aí de mim! Acaso tenho cara de, com a cara toda enrugada, dizer que sou jovem como um menino? Não tenho assim, tanto medo da velhice... Aos setenta a alma é tão velha como o corpo... Não faço a menor questão de ter uma alma de menino presa num corpo de velho.

De qualquer forma eu não me importo nem um pouco que os dias e os anos da minha vida tenham a pequenez de um haikai... Desde que tenham a mesma densidade, não me importo. Prefiro ser um abismo sem fundo que um oceano de um centímetro de profundidade...

Quero que cada minuto do meu dia tenha o peso insuportável de uma tonelada, a leveza de uma pluma e a profundidade de um abismo. Quero morrer esgotado, acamado e arrebentado pela vida que tive. Não quero ser um tição tirado do fogo. Não quero nem respostas, nem saídas, nem caminhos fáceis... Gosto de andar aos tropeções.

Quero morrer de tanto viver, e isso pode ser hoje, agora ou amanhã, desde que seja morrer de viver. Mas eu não quero morrer de qualquer jeito de viver, porque não é qualquer jeito de viver que vale a pena morrer.

De qualquer forma, ainda ontem era inverno... O tempo voa fingindo andar. É preciso ficar de olho no tempo, porque ainda ontem era inverno... A qualquer hora janeiro pode chegar, e com ele a felicidade.

Eu não gosto do inverno... Se pudesse faria como os ursos, ficava acordado toda a primavera, verão e outono e dormia o inverno todo... Era menino ainda quando descobri, num momento de epifania, que a diferença entre o inverno e o inferno é feita de uma letra apenas... Eu não gosto do inverno, gosto da primavera, mas feliz mesmo, de verdade, eu só serei quando janeiro chegar.

A vida é mais bem vivida quando é vivida com simplicidade... Mas a simplicidade da vida... Ah, pobre de nós! A simplicidade da vida é resultado de um processo imensamente complexo e difícil de conseguir... A vida tem que ser vivida com um frio no pé da barriga.

Lindo dia esse que acabou de nascer. Já é primavera, mas, coisa estranha, ainda parece ser inverno, talvez seja. É que a primavera só começa uns quinze dias depois de começar no calendário...

Lindo dia, contudo, que hei de fazer com ele quando há tantas outras coisas esperando para serem feitas de urgência?

Detesto coisas urgentes... Detesto gente cheia de urgências. Coisas urgentes são ladras da poesia, porque poesia é coisa que se faz divagando devagar, sem pressa, sem compromisso com o relógio, sem compromisso consigo mesmo... Poeta que se priva ainda não é poeta.

Para que me serve um dia novo de primavera - que ainda se parece com inverno - quando a alma está cheia dessas urgências, horários, agendas e feridas velhas? Quando a alma é velha tudo o mais é velho... Quem liga para uma flor que desabrocha, quando a hora de sair para o trabalho já passou da hora?

Prefiro as noites de primavera à luz fosca desses dias primaveris que ainda parecem dias de inverno...

Mas a noite para mim só começa depois da meia-noite.

Qualquer hora antes da meia-noite ainda é dia... Dormir antes da meia noite é dormir de dia. Eu e a noite somos irmãos de sangue, solidão e angústias... Ao contrário do que se pensa não é de demônios que a noite está cheia... De poetas - poetas mortos, porém mais vivos que os poetas vivos - é do que elas estão cheias...

Mas a noite, isso não podemos negar, tem dois lados, o lado de lá e o lado de cá. Falo do lado de cá da noite, porque do lado de lá não há poetas nem primavera, é um eterno inverno escrito com "f" ao invés de "v", terra de prostitutas, gigolôs, culpas e desculpas e sabe-se lá o que mais... Mas essas são noites de inverno. Falo das noites de primavera, pois não conheço outras noites (Minto, conheço sim. Também já sujei a alma nas noites infernais, quer dizer, nas noites invernais... Contrariando Heráclito, já mergulhei muitas vezes no mesmo rio... Mas depois me lavei no orvalho do amanhecer das noites de primavera, que são as noites do lado de cá da noite). Mas de qualquer forma ainda prefiro o celibato às prostitutas... Mas pensando bem, talvez isso não seja verdade (É, e não é). Como qualquer outra pessoa eu também, às vezes ? só às vezes ? tenho compulsão pelas coisas sujas e nojentas. É que as coisas puras demais, santas demais, sacerdotais, urgentes demais, enjoa, entorpecem e cansam a alma. O que seria da vida sem as parafilias... As mais leves, é claro.

Não nego, muito das melhores coisas que pensei e sonhei, e das idéias que tive e dos escritos meus, foram concebidos em deliciosos momentos de pecado. Ah, quem me dera poder pecar de novo esses pecados...

Mas enfim, melhor me é a solidão dessas noites de primavera (e de pecado), que me lava a alma das hipocrisias do dia ? noite de poetas, poesias e prostitutas ? do que os dias ensolarados onde perambulam as multidões viciadas nas respostas fáceis do senso comum.

Fiz disso a minha regra de fé e vida: Onde houver mais de duas ou três pessoas reunidas, eu não estarei no meio delas... Deus já está com elas, não precisam de mim. Eu só gosto de ir aonde ninguém vai... Só gostos dos lugares vazios, porque eles enchem a minha alma de encanto... Não gosto de barulho, gosto de sussurros.

A escuridão não me fere os olhos. A luz do dia está repleta de ilusões, mas a escuridão da noite está cheia de poesias. As palavras proferidas na madrugada são sussurradas ao ouvido, e não necessita esforço para ouvi-las e entende-las, mas os gritos gritados à luz do dia, quem os ouve, quem os entende?

Não, o silêncio sepulcral da madrugada não me assusta o coração.... O terrível não é não ter com quem conversar, o terrível é ter uma multidão que não te entende, por isso o que me espanta e apavora a alma são os demônios que correm ao meio-dia dos dias ensolarados... Nunca entendi uma palavra que tivesse que ser gritada para ser ouvida.
Não é a solidão do meu quarto que me rói os ossos, mas a solidão das multidões, essa me apavora. A solidão do dia me esmaga a alma, mas a noite liberta a alma dos seus arreios, pois a solidão da noite é como uma bebedeira para o espírito.

(Se voce nunca se embriagou de alegria com a solidão das madrugadas silenciosas, não perca seu tempo tentando entender o que eu estou dizendo. Volte para seu Harry Potter ou ligue a TV e veja mais uma vez o Silvo Santos ou o Datena. Se voce, feito galinha, dorme cedo e corda cedo... Se não é apaixonada (o) pelo House, se não é fascinado (a) pelo Dexter... Se não sofre de insônia crônica, se não é depressivo e levemente suicida, esqueça o que eu digo, mais te vale ir a uma locadora e pegar um DVD do Crepúsculo. Se não consegue ver o valor de uma vida infame, então, fazer o que, continue olhando para o próprio umbigo... Se bem que isso é a coisa mais infame que uma pessoa pode fazer).

Uma vez disseram que eu devia procurar tratar minha insônia e curar a minha depressão, uma e outra, crônicas. Tentei. Mas a vida perdeu a graça e a inspiração... Calmantes são demônios em forma de pílulas. Nem só de manhãs ensolaradas vive o espírito do homem, mais vale para ele uma noite de insônia que dez manhãs ensolaradas.

Não temo a solidão da águia que voa solitária, temo a algazarra dos pardais... À luz do dia sou um ser desconcertado e sem jeito. À noite floresço; de dia morro de saudade. De noite perambulo sorrindo pelos labirintos da alma... De dia me desespero, choro e durmo. O que me consola os dias são as memórias da noite. De dia sou corpo, de noite sou alma, sou espírito... De dia sou um, de noite sou outro.

Não incorra no erro grosseiro que pensar que sou a mesma pessoa o tempo todo. Quem me ama de noite me odeia de dia... Sou tão diferente de mim mesmo quando o dia amanhece. É de noite que mais me pareço comigo mesmo. De dia sou letargia, de noite sou alegria e paz. Se isso parece loucura não é culpa minha, pois a noite me amou primeiro que o dia, e o dia que sempre me teve me desprezou e nunca me amou. O dia me fez feridas que só a noite tem poder de curar, por isso não durmo, para não morrer. (Quando eu morrer, aí sim, dormirei.)

A escuridão e a solidão sempre me amaram mais que a luz (que para mim é trevas)... Prefiro a luz de velas a qualquer outra luz. Os fantasmas que procuro no meu passado se deixam ver melhor à luz de velas...

Conheço seres da luz do dia, são rasos e superficiais. Faltam-lhes as olheiras da insônia, a pressão-alta dos notívagos, os bigodes de um Nietzsche, a angústia de uma Florbela Espanca, o pessimismo de um Schopenhauer, a loucura de um Van Gogh, a melancolia de um Caio Fernando Abreu. Falta-lhes a depressão crônica de uma Cecília Meireles, e a alegria diante da morte de um Wittgenstein. Falta-lhes o surrealismo de um Salvador Dali, e o olhar triste e a voz sepulcral de Johnny Cash. Faltam-lhes tantas coisas... Falta-lhes, sobretudo aprender com Manoel de Barros qual é o valor das coisas ditas imprestáveis.

Alguns desses profetas do amanhecer disseram-me certa vez que a noite é fuga. Que seja então a escuridão da noite fuga... Mas o que é a luz do dia, essa luz que não revela nada, que não mostra nada, que mais parece uma reprise - 365 dias por ano reprisada -, do ontem e do antes de ontem, uma antecipação do amanhã que nem sabemos se virá, não é fuga?

O dia é só a máscara da noite... Aquilo que a luz do dia esconde, a escuridão da noite revela, mas é preciso aprender a ver no escuro para ver as sujeiras que o dia esconde. De dia todos usam máscaras, por isso dormem de noite, para não se verem como são, porque a noite desmascara os homens com a violência da sua solidão.

Toda noite, à meia-noite, o sol raia nas profundezas da minha alma... E a luz desse sol ilumina mais que o sol do meio-dia, porque é uma luz salpicada pela voz de muitos poetas.

Então, de repente, sem avisar, ainda disfarçada de inverno, mais uma primavera começou... E com ela nasceu em mim ? de novo - o desejo de rever a vida e de fazer uma faxina na alma...

De todas as coisas que busquei... Só as que nunca encontrei me deixaram saudades de verdade...
Morro cada dia de saudade das coisas que nunca aconteceram... Morro e renasço, porque só morrer sem renascer não tem graça, é fácil demais.

Gosto mais das coisas que não existem que das coisas que existem... O meu mundo preferido ainda aguarda ser criado, porque esse nosso mundo ainda é caos, ainda é massa informe e sem sentido. Talvez quando Cristo voltar, talvez quando o homem acordar...

Meus heróis já morreram todos, mas não foi de overdose. Foram assassinados, entre eles Gandhi, Luther King, Malcom X e Zumbi...

Morro de saudade das pessoas que nunca conheci... Dos poetas que morreram antes deu nascer... Das pessoas que conheci quase não tenho saudades, porque não as conheci... Morro de saudade das pessoas que nunca vi... Das pessoas que vi, porque não se mostraram de verdade, poucas me deixaram saudades.

Às vezes gosto de passar o tempo ? Se algum alguém que não tem nada na vida para relembrar não vier me perturbar com suas urgências do agora, é bom que se diga ? Mas enfim, contratempos à parte, eu gosto de passar as horas relembrando os passos, descompassos, caminhos, descaminhos e começos e descomeços da minha vida... Da vida sonhada, mas nunca realizada por falta de tempo, por falta de coragem, por falta de querer de verdade.

Muitas vezes perco-me nos labirintos dessas distâncias, dessas impossibilidades dos meus amores que não deram certo (que só eu sei por que não deram certo). Volto ao passado, pé ante pé ? porque o passado é arisco e se assusta com facilidade - e lá, espiando da fresta do tempo, fico arrumando e rearrumando algumas coisas, querendo fazer dar certo na imaginação, o que fracassou na razão... Vivendo de novo o que nunca foi vivido uma vez sequer. Simulando a vida, só para ver como ela poderia ter sido.

Ah, O que seria de mim sem as memórias dos amores que nunca aconteceram? As lembranças das coisas que não vivi e dos amores que nunca tive são infinitamente maiores e deliciosamente mais gostosas de se relembrar que as memórias das coisas que tive, e das mulheres que tive sem que nem uma delas me tivesse...

De fantasia em fantasia, amei muitas mulheres... Só essas mulheres que nunca tive de verdade - mas que amei desesperadamente -, deixaram em mim verdadeiras saudades de repetir, porque essas foram as únicas mulheres que me possuíram de verdade a alma, o corpo e o espírito. As outras, aquelas que tive de "verdade", foram só arranhões na superfície... Piadas das quais não ser ri duas vezes.

Quando enfim, chegar a hora de morrer, com um sorriso nos lábios, cerrarei os olhos e entrarei na eternidade, pensando naquela que sempre amei, mas que nunca vi, nunca ouvi, nunca toquei... De todas as impossibilidades, ela foi a que mais desejei. E que talvez por isso mesmo a amei tanto, por ser impossível.

Imaginar como as coisas poderiam ter sido é muito mais prazeroso que relembrar as coisas que aconteceram de verdade. É fato que a vida que não tivemos é mais doce que a vida que tivemos... Que horror seria a minha vida sem as lembranças da vida que nunca tive.

Começou a primavera. Isso é bom? Primavera, verão, outono, menos inverno, para mim tanto faz... Gosto mais das noites floridas e perfumadas da respiração da alma das flores, que das manhãs ensolaradas de verão. Não gosto do inverno, pois sou alma errante e solitária pelos caminhos profundos da noite... E o inverno não foi feito para os solitários, mas para os enamorados... Quanto a mim ? é sempre bom repetir ? sou um solitário irrecuperável. Gosto das coisas e dos amores que nunca tive... Prefiro a fantasia à realidade, fora isso eu não gosto de mais nada.

Sou obcecado pelas memórias das coisas que nunca aconteceram... Adoro sobremodo essas coisas que fingiram que iam dar certo, mas não deram. Essas coisas são tão mais gostosas ? e mais tristes ? de se relembrar...

Eu tenho em mim muitas dessas lembranças de coisas que quase aconteceram, mas que acabaram não acontecendo...

Sou um homem onde muitas coisas e muitos amores quase aconteceram. Minha alma está repleta desses quase.

Minha alma é um celeiro desses sonhos e desejos quase realizados, onde as mulheres mais bonitas e os amores mais amores, quase acontecidos, deixam atrás de si um passado gostoso de ser relembrado. Faço isso ? relembrar esses quase ? para que quando alguém me perguntar se fui feliz, eu possa responder sem medo de errar: Quase fui!

PS ? comecei essa crônica ? quem disse que isso é uma crônica? ? falando em fazer uma faxina da alma. De fato, a casa da minha alma está bem desarrumada... Mas há tanta coisa para viver, tanta coisa para relembrar que, ai, quem já viveu até hoje com a casa assim desarrumada, pode deixar essa faxina para fazer amanhã... Hoje quero viver, ainda que seja viver das recordações das coisas e amores que quase aconteceram.

Autor: V.B. Mello


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