Professor de filosofia



 

Professor de Filosofia[1]

 

 

 

Aos poucos abrem-se meus olhos. Antecipo assim o acontecimento preestabelecido por mim mesmo quando, em posse do despertador, preparava-o para as cinco da manhã. Faz silêncio toda a casa. E, feito fardo, fez-se a falta de alguém[2]. Confesso que há três dias que nada como. E esta foi mais uma madrugada em que não mortifiquei-me no sono, antes: pensei minha saudade; recordei-me de um falso propósito[3]; e para um choro como aqueles de quando ainda se é criança, temi o futuro que me guarda e me fará mais breve.

 

Em alguma parte daquela estante, uma fotografia de minha pessoa aos seis anos – ali também está gravado o pretérito exemplar daquela que algum dia fora minha irmã –. Uma única foto: um marco efêmero, excesso desbotado de minha perpétua obsessão por aquilo que já não mais me constitui. E dei-me conta de que já não conseguia recordar-me daquele modo: apenas o rosto e a forma atual de pensar me são mais eu[4]. E já tão distante do momento em que me recordo, aquele outro é a mais delirante asseveração do que fui. Assim profiro porquanto ali apenas suponho-me; e já não mais me reconheço[5].

 

Após algum momento, aos poucos, o som do despertador ao lado começa a fazer sentido[6]. E posso ouvi-lo agora. Levanto, através do corpo, a alma que postula um canto quieto onde se possa, em paz, dar razão a mais choro que aquele injustificado riso da manhã, por sinal, ainda chuvosa e fria. Pernas e pés justos; cabeça aos joelhos e mãos por sobre esta: um pânico formou-se novamente em meu espírito[7]. Em minha mente, por repetidas vezes, a imagem de um refúgio calibre qualquer alivia-me da vida naquele formidável pesadelo[8] a que chamou um tal psiquiatra: tendência suicida[9].

 

Coloco-me de pé e caminho rumo à janela. Ali fico por algum tempo. Afasto a cortina para que melhor possam meus olhos ver o perigoso misto de chuva e lágrima; os fortes e ainda mais gélidos ventos que o noticiário outrora antecipava advir do sudeste viriam tocar meu corpo – seria este momento a mais pura demonstração de afeto que meu corpo recebera desde que me fiz homem[10] –. Ainda era noite. Por que noite de solstício de inverno dura tanto? – por ocasião daquela costumeira descoberta, pensei.

 

Despido da roupa quente, visto a calça amarrotada. Faltou-me o tempo de que preciso para usar o ferro… e a camisa em mesmo estado eu visto também. Pés gelados em chão frio fazem parecê-lo quente[11]. E caminhei descalço à próxima etapa do dia. Frente ao espelho, com a escova ainda na boca, perco, aos poucos, o ritmo que me compele a higiene deste corpo. Concentro-me em meus olhos. Escuros como é próprio de quem não dorme; fundos como jamais poderiam não ser se daquele que sente fome. Mas o medo da vida é maior que a exigência de mantê-la. Qual feito enfim liberta-me?

 

O refúgio em cromo de há pouco, como um conselho sábio de quem muito conhece a causa da angústia[12], sobrevém-me à mente já não sei se sã. Para ensurdecer-me logo da maldita voz que tão sedutoramente me aconselha e orienta, retiro de trás do espelho o único abismo profundo capaz de me gerar imediato conforto[13] – um buraco escuro se seguirá deste instante –. E no futuro próspero, vestido, talvez quem sabe um dia, da ausência que me cobre o corpo quando sob a calma do mármore desta vida, tenha eu a chance de que preciso para pensá-la… sem a menor obrigação… de ensinar[14].

 

 

 

Autor: David Guarniery

 

Idade: 25 anos

 

Início: 22:00

 

Término: 22:17

 

Tempo Gasto: 17 minutos

 

Dia: Sexta-Feira

 

Data: 15 de julho de 2011

 

Classificação: Crônica Lírica

 

Obra: 001

 

In Memoriam:

 

*Wilson Pedro da Silva Filho[15]

 

*Pedro[16]

 

*

 

*

 

*Jaçanã[17]

 

Brasil/ Paraná/ Cambé

 


[1] David Guarniery, graduando do curso superior de Filosofia, CLCH (Centro de Letras e Ciências Humanas) pela Universidade Estadual de Londrina. Estado do Paraná.

[2] Neste momento, meu pai, Ailton Galvão, e meu irmão, Wallison Paulineli Galvão, não vivem debaixo do mesmo tento onde passei a viver. Tenho receio de que se torne permanente tal separação.

[3] A teoria da predestinação divina assevera-nos a existência de um reino para o qual todos os espíritos saudáveis regressarão. Deste modo, tenta-se justificar a morte como via; a vida como etapa probatória onde a ocasião reivindicará do homem a exigida fé. Em nada disto creio, razão de eu ser ateu.

[4] Refiro-me aqui à dificuldade que hoje tenho de sonhar comigo mesmo aos moldes da criança que supostamente fui. Lanço aqui a hipótese: se aos setenta, a imagem com que me identificarei, mesmo que em sonho, já não será aquela que ainda hoje vejo – mas gostaria de me recordar apenas deste modo.

[5] Segundo a tradição filosófica a partir de Parmênides, o não-ser não é sequer pensável. Por conseguinte, ao contrário de se dizer “este não é aquele”, dir-se-á “este é não-aquele”, porque todo ser inexoravelmente é. Seria o caso de uma definição do sujeito por negação de seu predicado. Contudo, parece-me isto só ser o caso quando o sentido dos termos que compõem um enunciado estiver previamente determinado em um sistema dogmático de pensamento. É possível dizer o não-ser tanto quanto me é possível considerá-lo – por hora, defendo esta posição.

[6] Em minha teoria, penso que a percepção do objeto coincide com a significação mental do mesmo (percebo que os termos deste enunciado precisam de maior elucidação para o devido alcance de sentido que lhes atribuo neste momento. Contudo, tratando-se aqui de uma crônica lírico-filosófica, penso que o exposto seja inicialmente suficiente segundo o fim que me proponho).

[7] Desde os onze anos apresento este trauma psicológico.

[8] Com o uso deste termo busco ilustrar a ironia da vida. Se morrer deste modo foi pesadelo, pergunto: assim será por quanto tempo? Após o efetivo, ainda será sonho aflitivo do qual se pode o furtar do espírito? Meus repetidos pensamentos de tal natureza são apenas a trágica exclamação de meu futuro. E denomino pesadelo o dia de minha morte.

[9] Após exame, o psiquiatra com quem realizei consulta e tratamento assim denominou o caso.

[10] Nunca estabeleci relações de ordem sexual com pessoa alguma.

[11] No inverno, meu corpo torna-se extremamente frio. Devo adiantar que sou hipotérmico.

[12] Direção e equipe pedagógica do Colégio Estadual Nossa Senhora de Lourdes (Londrina/ Paraná) referente ao primeiro semestre do ano de 2011. Por via desta obra (que, como arte livre, diz respeito à vida de seu autor), delato-as.

[13] Maxapran 20 mmg. Entre 10 a 15 comprimidos. (Provoca náusea durante as duas primeiras semanas).

[14] Esta crônica delata uma história real que envolve minha pessoa; bem como a pessoa de todos os meus estimadíssimos alunos das turmas 3º AM, 3º BM, 2º BM e 2ºCM – estes, ao perceberem minha situação e terem recebido de minha pessoa o devido respeito e confiança, acreditaram em minha causa; e lutaram junto a mim contra a direção e equipe pedagógica da supracitada instituição pública de ensino (vide nota 12). Tenho atestamos médicos que comprovam a situação. – Quando em âmbito do Núcleo Regional de Educação de Londrina, pude conhecer outra professora com problemas análogos. Assim arrasta-se a aleijada educação brasileira: medo da vida e tendência suicida.

[15] Wilson Pedro da Silva Filho. Ex-aluno. Por estar literalmente ao meu lado quando em momento de maior conflito. Tua provada fidelidade não me será esquecida.

[16] Pedro. Ex-aluno. Pelo modo como tão formidavelmente empenhou-se em compreender aquilo a que me dispus lecionar. Mormente pelo respeito.

[17] Jaçanã. Pedagoga de outro colégio onde, em mesmo ano, eu lecionava. Pela compreensão de minha causa e feitos outros que me aliviaram em momento oportuno.

 


Autor: David Guarniery


Artigos Relacionados


Por Uma Definição Do Eu

Alma Em Coma

Ao Despertar à Vida – Ou Da Personificação Do Tempo

Para O Ser De Todo Eu

Metáforas Da Liberdade

Ig'é`rò

Honestamente... Uma Mentira