De Quando A Culpa Nos Convém



De Quando A Culpa Nos Convém

 

“Qualquer forma humanamente possível de manifestação é incensurável; mormente quando desta intenta o espírito dos homens algum mínimo desejável de compreensão acerca de si”

Para consumar a lamúria de ontem, dar termo ao desagrado do instante que me hoje veste, peço ao leitor este espaço para breve declaração daquilo que me perturba e me logo mortifica; e absorve-me desde há muito na compunção que se sente naquele insólito momento em que se decide por pensar[1]; e com tal feito alcançar, talvez – quem me possa, que o diga – aquela postulada paz que mais me falta. Apraz-me principiar este com a seguinte indagação, cuja resposta não é o caso de me ser dita; e todos a guardarão para si como trauma ou qualquer contíguo a isto[2]: qual de todos os feitos vossos arrependeste-se mais? Peço que me conceda a seriedade mesma com que elaboro ainda agora esta simplória – e nem por isto menos profícua – reflexão, cujo resultado vale-nos o tempo em que se deseja e por ele ainda se espera.

Que tenhamos sob o cárcere de nosso corpo a vergonha por tal feito, não nos é segredo. Bem como menos se pede do futuro quando pouco esperamos do tempo em que estamos capazes de duvidar-nos; e quando não o bastante, projetar por sobre a pálida tela da lembrança de nós próprios cada vil feito pelo qual esperamos da sorte a satisfação de não mais existir – como se o sono perpétuo ilibasse de nosso espírito os estigmas da vida cujo erro se nos propôs como melhor método de ensino; e pelo mesmo erro como que aprendemos o valor incomensurável com que se perde aquele tão modesto e justo amor por si[3]. Como se o pretenso óbito providenciasse-nos a libertação desta necessidade quase lógica de errar para, enfim, ainda apenas nos supor[4]. Tudo parece-nos devidamente claro. E de fulgor notável que é, sentimo-nos legitimados à formulação de uma noção do Eu que, por efeito, deplora-se.

Se não bastamos para nós mesmo, interrogo-lhes: De onde a culpa? Ninguém erra sem motivos, penso[5]. E nenhum erro penso ser possível livre de alguma (ínfima que seja) relação[6]. Assevero-lhes: Creio que todo erro que se julgue possível é não mais que o desespero da moralidade humana agonizando por sobre o anseio de já não mais ter de se culpar. Que o pecado é um delírio vago e só da mente. E nenhum universo possível perceberá na manifestação do espírito dos homens o hipotético e pretenso valor moral de sua ação. Isto diz respeito apenas ao âmbito onde a razão cria suas leis e, equivocada – valendo-se do subterfúgio já não atípico: o senil esquecimento com que se tenta um justificar a si –, sente-se legitimada a estender aos exemplares outros de vossa própria espécie aquele já aludido delírio teu de eticidade.

Ontem cometi um erro[7] qual jamais olvidarei. Mais ainda: É espantosa a crueldade com que hoje culpo-me[8] pelo materialização do indevido[9]; E mais desumana é ainda a angústia agora presente pelo feito de ainda ontem. Pior de tudo? Mesmo pensando a culpa ser um ponto de vista moral[10] sobre o feito que (creio) sempre pressupõe, como qualquer manifestação de nosso espírito, uma relação – e por isto mesmo também o duplo-sujeito –, ainda penso eu ser o culpado. E quero esta culpa como apenas minha[11]. Que a moralidade da ação é apenas um juízo. Mas o que sou senão a vontade deste mesmo para além da qual, quando abnegada, já não mais percebo a suposta presença do Eu em lugar algum?

Em síntese: Não devemos[12] partir sempre do pressuposto de que há perfeita coincidência entre um ajuizamento deontológico[13] e a suposta natureza de uma ação que se supõe. Nem mesmo pensar que a ação é ali justificada pelo contexto, atribuindo-lhe assim o positivo valor moral com que se pretende desculpar-se. Talvez de fato nunca houvesse culpa; porquanto também não havia ali mais do que um suposto sujeito curioso de si mesmo. Contudo, aquele ato – deixarei tácita a natureza deste – me era objeto; e como qualquer objeto, também ele me nada profere, abrindo-me o oportuno da interpretação. A culpa é efeito do juízo por mim manifesto à pretensa ação onde a angústia pelo erro quase me torna evidente a mim. E é sempre melhor e conforme a paz que se postula sentir-se culpado de um erro hipotético, que o próprio hipotético ao erro indubitável que nos faz sentir-nos culpados.

 

Autor: David Guarniery

Idade: 24 anos

Início: 02:32

Término: 03:00

Tempo Gasto: 28 minutos

Dia: Sábado

Data: 23 de outubro de 2010

Obra: 001

Classificação: Crônica Lírica Psico-Filosófica

In Memoriam:

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Brasil/ Paraná/ Cambé


[1] Já não mais se se deve ou não, mas o valor moral da ação em que se supõe senão como princípio ao menos como orientação o erro.

[2] Neste instante, culpemos a malquista providência da memória.

[3] Eis aí um pressuposto imprescindível para que todo homem possa, enfim, estar em paz consigo.

[4] A proposta que vos apresento: Que não somente, todavia, mormente no erro colocamos nós homens a investigar quem somos. A causa disto penso ser o fator psicológico de não-gosto pela própria noção de culpa ali manifesta – de onde o sentimento de angústia, aflição, tristeza, compunção... –. Que aqui se pronuncie em corroboração desta suposição todo aquele que, tendo agido, compreendendo-lhe errado, não tenha alcançado, pela presença indesejável daquela noção de culpa do qual se quer premente libertação, a precipitada conclusão de uma existência própria injustificada; motivo pelo qual passamos a ter como bela, justa e desejável a antecipação da morte que nos é própria.

[5] Trata-se aqui de um evento – o erro, qualquer que seja – que suponho ser humanamente possível.

[6] Eis aí um termo fundamentalmente relevante para que tal inquirição tenha seu sentido e proveito.

[7] Mesmo após tais conclusões, a afirmação própria, ou ainda, minha do pecado sobre a conduta por mim assumida esforça-se por se fazer presente e legítima. Por que fazemos isto? Qual a razão de nos punirmos?

[8] Não necessariamente advém do outro a declaração de alguma culpa sobre mim; trata-se aqui de uma circunstância onde o sujeito – neste caso, eu mesmo – projeta sobre si a reprovação moral de uma ação cujo autor é ele próprio. Penso que esta forma de compreensão da condição unilateral da culpa omite a necessária relação entre os seres, onde somente a partir da vigência da aludida relação as possibilidades de um coincidem com as possibilidades do outro.

[9] Eis ainda um consciente esforço pela asserção deontológica do existir humano, sem o qual passamos a duvidar ao homem a sua possibilidade de sê-lo no suposto sentido pleno em que este é sempre proposto.

[10] Se há algum fundamento último da existência que sirva como legítimo suporte aos preceitos éticos formulados pela razão dos homens e à observância moral dos aludidos preceitos por estes últimos, tal fundamento penso ainda não ter sido alcançado pela mente humana.

[11] Quando pensamos a culpa assentar-se sobre ambas as instâncias (eu e objetos de minha consciência), a culpa cede lugar à ação conforme, porquanto a ambos é possível ver-se livre da própria culpa; podendo ainda eu atribuí-la plenamente ao Outro, isto é: o Eu projeta sobre o objeto de sua consciência a acepção que o configura como o responsável único pelo erro, cabendo a este a devida aceitação de sua intransferível noção de culpa onde ele próprio é a causa única do erro.

[12] Ou ainda: Não há lei natural que suficientemente se nos apresente como exclamação de um determínio sobre o modo de pensar, agir e sentir humanos.

[13] Bem como qualquer outro ajuizamento.


Autor: David Guarniery


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