Para o Ser De Todo Eu



 

Para O Ser De Todo Eu

 

 

 

Declaram-nos: É na pessoa do outro que todo espírito se faz. Pois, bem. Também na efígie alheia temos a noção de nós. E, como que um parasita da análise semântica, hospedamos nossos juízos na carne para além na nossa com um intuito mais do que bem justificado: Saber de nós. Isto, e nunca outro motivo, creio ser o causa de nossa própria descoberta. Que somente o anseio desesperado de quem por si procura o conduz, a partir de um pressuposto arbitrário de afirmação daquilo que está – ou ao menos parece estar – para além do espírito. Do nosso espírito.

 

Que sou a síntese de suas opiniões sobre mim é coisa muito óbvia para insistirmos nisto. E é sempre necessário ir além. Dizer que me reconheço no silêncio costumeiro das rochas – ao menos quando estas ainda não estão inebriadas pelas formas de algum delírio meu que as faça tagarelar e viver – será já um bom princípio. Que me pareço ainda distinto do vento que nos assopra a pele, trás de longe o arrepio inesperado. Talvez não seja eu o arrepio do corpo, se me digo também distinto deste, depositando ali o absurdo desta reflexão. Todavia, ter consciência de mim através de tudo o que se mostra como objeto de mim mesmo torna árdua a busca por um momento onde a extensão do eu se inicia.

 

É ai que já não sei se sou apenas o corpo… ou se me estendo à forma impura do teu cigarro. Talvez seja eu teu vício. E se isto procede, penso que não soará estranho o apelo de que mais me fume, a fim de que me possa confundir-me com teu corpo. Fazer da face tua a extensão da minha. Que do teu rubro humor, causa da vida tua, faça-se o breve anúncio de minha personalidade. Já não mais direi que tenho um gênero. Que na união dos corpos, represento agora a exata revelação da humanidade em um particular modelo de homem também essência. Se através do outro me percebo, no outro me confundo, também neste outro misturo-me às angústias outrora não minhas. É mais claro dizer que somos enfim uma só coisa: Tudo.

 

Mas e quando se morre? Quem morreu? Direi que foi você ou eu? Uma parte de mim penso que seja mais correto. Senão correto, mais sensato. Mas é possível que se morra a parte de mim que não necessariamente me corresponde? Com tua morte estou eu morto ou vivo? Ou aquele que morreu não era eu? – se confirmada a fúnebre suposição, devo então dizer que já não era eu o defunto –  Isto porquanto ha minutos afirmara que por compreender-me no outro, neste mesmo me confundo. Pois não abordo o corpo mais do que procuro eu.

 

Seria um problema filosófico, no fosse o fato de ser apenas um problema de linguagem, creio[1]. Há aí de se fazer a sábia distinção entre o ser e o compreender. O ser não se assegura pelo compreender; o compreender é um reflexão eminentemente lógica. Disto se seque que lógica alguma assegura-nos o ser. E com a própria lógica conduzi este raciocínio. Pergunto pois: Assegura ou não, se a negação desta corroboração pela lógica fora elaborada por ela mesma?

 

Esqueça a lógica, que lógica alguma dá jeito. Quero apenas esta última tragada. Seria eu, apenas por mais este instante, as cinzas que caem, a nicotina que me toma o corpo. A fumaça negra me sai do nariz. Sobretudo, tu me foras o vício. Que te beijava a boca. Respirava teu hálito. E agora que morta – já não sei se por doença ou prostituição da carne própria pelo estúpido hábito do fumo – não mais preciso tragar o dobro do teu costume apenas para vencer e bem suportar o amargo sabor que por tua boca me trouxeste. Posso nunca ter sido teu cigarro... mas fumei-te enquanto te pude possuir.

 

 Lembro-me do teu corpo em chamas… ou era ainda o meu cigarro?

 

 

 

Autor: David Guarniery

 

Idade: 24 anos

 

Início: 01:00

 

Término: 01:26

 

Tempo Gasto: 26 minutos

 

Dia: Domingo

 

Data: 02 de maio de 2010

 

Obra: 001

 

Classificação: Crônica Lírico-Filosófica

 

In Memoriam:

 

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Brasil/Paraná/Cambé

 


[1] Toda a filosofia deriva da consciência; a consciência deriva da linguagem (enunciados que possuem uma estrutura e um sentido). Logo: A filosofia deriva da linguagem. E tem por objeto de investigação os problemas de linguagem.  A filosofia é uma reflexão não acerca dos objetos, mas da acepção a estes objetos. Na medida em que esta não admite ser orientada senão pelo rigor da lógica, o que esta visa é não outra coisa do que propor a harmonia semântica.

 

 


Autor: David Guarniery


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