Do Ceticismo Ao Ordinário



Do Ceticismo ao Ordinário[1]

 

Vejamos quanto pode o homem quando cedo se levanta, deixa em casa o motivo pelo qual a vida, ao menos por hora, justifica-se – a mulher que se ama e o filho recém. Quando retorna, recebe do silêncio costumeiro o aviso do sono. Senta-se à mesa para poder mais: o milagre perpétuo daquele mesmo choro. Pálido é o instante em que já não mais se pode ouvir e ver… arrisco ainda um sentir. E mais uma vez nega-se a mente a imaginar a cena, por cujo motivo ainda se quer viver.

Vejamos o poder da fantasia[2]. O olhar estéril por sobre o papel em branco. E o recado que se escreve ante os olhos já não mais advém de um empenho das mãos, que, estáticas, anunciam a alucinação do schopenhauriano verbo: Intua a mulher em-si, e queira apenas o em-si do filho. Única percepção real de que pode o homem desfrutar sem dor[3]. E como que só de intuição estivesse o espírito do homem comum disposto a perfazer-se, talvez na fotografia da face própria ali se negue e se rejeite e se minta[4] ao messiânico modo de afirmação daquilo em que já não mais se crê[5].

Ainda mais que outrora, doravante, quer, este homem, no berço o manto simples daquela falsa certeza que o aquece[6]; e mais amará teu filho, que, procedente do pecado[7] e da vontade aflita[8], é mais puro e belo que a maldita ataraxia[9] divina[10] com que se perfaz o sétimo dia deste mesmo silêncio por sobre as formas da percepção fugaz. Vejamos por quantas jurará a veracidade da carne, real o arbítrio daquele que lhe profere, dizendo: “Será que tenho a fortaleza das pedras, e será de bronze minha carne?/ Eis que vou logo me deitar por terra; Tu me procurarás, e já não existirei[11].

Eis aí o motivo único pelo qual se quer mais a singularidade e a diferença, a fascinante efemeridade de tudo o que se cobre com as desbotadas vestes do gignestai[12]: Não há no em-si idéia de parentesco que se justifique. Também não a duplicidade de um mesmo é razoável proferir ao íntimo de toda forma, lugar onde tudo o que existe é sempre um excesso extravagante do mesmo. Neste nível da existência febril, impossível é a manifestação da saudade. Porque tudo é um só mesmo; e cada mesmo é um presente contínuo em toda parte. Donde o tédio.

Por isto dizer que quem se perde no delírio das formas e da carne já não mais emprega por sobre o supra-sensível a mesma estima com que se recebe a fugacidade da forma. Vejamos quanto pode o homem amar a face própria mais do que a ti mesmo – a idéia de homem, que não mais corresponde à singularidade de homem algum.

É aí, na genealogia do percebido, desafiado o homem a hipotetisar os sentidos: Como se nascesse novamente o dia, o mesmo. Como se a infância; a despedida ao túmulo e o medo de Hamlet[13]. Como se o homem em teu silêncio prévio, a mulher vendo em seu corpo o vestígio mínimo de futuro algum: o filho e a vida pródiga. Como se a noite não implicasse o medo da solidão que se nos dita própria, e perceber aí também contida a graça breve – e como sempre tão breve – daquela tão postulada distração da consciência minha que possa, enfim, gerar o riso... como se.

E já não se vê ou não se quer que tudo que se guarda na memória tenha existido apenas no lúrido plano da imaginação. Fantástico é pensar que tudo existiu. E esplêndida é a capacidade humana de não duvidar para não sofrer. Como se ao menos quem sofre não sofresse como se.

 

 

 

Autor: David Guarniery

Idade: 24

Início: 23:00

Término: 23:28

Tempo Gasto: 28 minutos

Dia: Domingo

Data: 11 de julho de 2010

Classificação: Crônica Lírica

Obra: 001

In Memoriam:

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Brasil/ Paraná/ Cambé


[1] O que há de mais ordinário no homem hodierno que a afirmação de sua própria liberdade, seja esta última resultante da mais cega e irracional causalidade, seja de uma exclamação divina? Pois bem. Já de princípio deixo à vossa excelência, caro leitor, que pense para si algum momento onde seja possível a compatibilidade plena – do contrário não faria o menor sentido o uso deste termo – entre a suposta liberdade humana e a veracidade de qualquer coisa (incluso a própria ocorrência da liberdade, que como verdade já se me apresenta tão contraditória em si mesma).

[2] Com este termo ensejo não outra coisa senão a possível redução de tudo que se percebe por via dos sentidos a meros efeitos psíquicos, de natureza fantasiosa, isto é, imaginária. A boa e breve alucinação de uma vida inteira.

[3] Este enunciado é mera síntese de parte do pensamento de Schopenhauer em O Mundo Como Vontade e Como Representação.

[4] Tu te negarás por três vezes.

[5] Para, aos pés da mulher, te jurar a própria carne depois.

[6] No derradeiro, é comum dos homens buscar ascender ao gritante plano do indubitável aquilo que lhe corrobora algum conforto. Que por medo queira o homem materializar o imaginário, nada mais natural.

[7] Eis aí, segundo o Cristianismo, o motivo de nossa efemeridade; daquela condição demasiado ilusória com que se perfaz a história humana, conforme o mencionado prisma.

[8] Em termos schopenhaurianos, “vontade enquanto querer” (ver Mundo, I - 219, página 254, editora UNESP).

[9] Termo grego cunhado pelo filósofo de Abdera, Demócrito, para designar: Imperturbabilidade.

[10] Se houver um criador consciente e bom, este hoje dorme a aflição humana.

[11] Jó (Cap. 6. Ver. 12; Cap. 7. Ver. 21).

[12] O mesmo que Devir, ou mudança. Reporta ao filósofo grego Heráclito de Éfeso, quando este nos assevera: “panta rei”, ou seja, “tudo corre” ou “tudo flui”.

[13] Shakespeare, em Hamlet, Ato III, Cena I, apresenta-nos a mesma questão quando, em cena, nos profere o personagem de mesmo nome:  “To be or not to be, that's the question”.


Autor: David Guarniery


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