Da Qualidade Dos Seres



Da Qualidade Dos Seres[1]

 

Que cachorro nunca chorou às margens da fúnebre quietude de seu benquisto dono? Contudo, basta um simples movimento deste para que o agudo som quase contínuo de choro incontido se logo transmute em um agudo agora menos extenso, seguido ou não de muitas lambidas. O cachorro pareceu-me feliz. Seu rabinho em frenético movimento; e suas patas como que reanimando o corpo cuja alma parece já não mais ter a capacidade de acordar. Dormindo profundo no ininteligível abismo a que chamamos morte. Acaso o movimento efeito seja não da vontade, antes, do puro acaso de um vento hora mais vigoroso que de costume; razão talvez quem sabe daquela ainda estranha força a que se convencionou denominar gravidade? O cachorro retomou teu choro. Novamente a paz é perturbada. Agora já não mais pela estupidez de uma ação não pensada ou posta para mau fim, antes: pela indesejável ausência de uma reação qualquer.

Nos homens há, contudo, uma teoria da morte que, suponho, lhe permite a tristeza, a compunção, o simples choro e, não muito insólito, um incontido pendor ao desejo tácito de nunca ter que existir. Tal teoria bifurca-se: 1) O que é a morte? 2) Como acessá-la? Em razão da primeira aquele que vive pede a vida daquele que morreu. Não conformado, insiste em haver alguma forma de retrocesso. Porque a morte conceituada também lhe permite pensar a vida. E como que movida pelo desespero, a razão extrai do conceito de vida, então resultado daquela concepção do que seja a morte, o agora reformulado conceito desta última, transformando em certeza a dúvida oriunda daquela primeira hipótese da qual partiu o espírito para nunca ter de se conformar[2].

A segunda é, talvez, aquilo que, muito embora vigorosamente presente à consciência dos homens, parece faltar aos animais. Que nenhum cachorro vi morrer de suicídio. Pois parece-me certo que nem todos os que se prontificam a lutar por uma causa qualquer tenham já desperto a cobiça de seu próprio óbito. Pode-se até esperar a morte como possibilidade a partir do conflito, mas nem por isto tal espera confunde-se com o desejo de tê-la. Animais também defendem filhotes. E a morte destes parece-me muito mais efeito da fortuna que do gosto.

Que diríamos daquele leitão que, mesmo após o injustificado suplício que no matadouro viera a sofrer, quando abandonado em algum dos cantos, pareceu-me insistir com a vida ao tentar caminhar com as patas que já não mais possuía. Empenhou-se o quanto pôde; mas como a carne nem tudo pode suportar, deitou-se. Um corpo flagelado pela surra; alguns espasmos já não sei se do frio que se sente quando a vida nos é materialmente perturbada ou se efeito do metal ponte agudo que lhe invadira o sistema nervoso. Ali deitou-se. Um olhar que parecia fotografar na memória o pôr-do-sol daquele dia de cão que nem a dó suporta ver. Cansou-se. Descendo, as pálpebras pareciam sinalizar a despedida do espírito. Ali morreu.

Fechei YouTube, e tal como aquele cachorro do qual falava eu já no princípio, comecei a chorar a quietude[3] do porquinho. Eu tenho uma teoria da morte. E estendi toda a minha tortura de espectador ao animal daquela descabida cena da vida cotidiana. Ele sim sofreu. E apesar de humanista, confesso que me valeu ali pensar o fim dos homens. E um tal Hitler não pareceu-me agora tão equivocado e injustificado como de costume. Momento kathártico à parte, indago enfim: Se para o homem, saudade e tristeza parece-me supor pensar a morte pela prévia formulação de seu conceito, que dizer dos animais, cujas ações parecem supor uma concepção mais firme e consideravelmente ampla de dor e bondade a ponto de nunca impor aos seres alguma forma de tortura?[4]

Se animal não pensa, para sermos humanos[5] é necessário já não mais pensar. Maior desalento causa-me a aflição da carne perturbada pela peculiar inaptidão nossa em sermos bons. Mas tenho uma teoria da morte. E sei como acessá-la. Em nome da postulada paz que não soubemos nos propor, morramos todos... que a Humanidade parece ter-se vestido de tudo que é bicho. Só não vestiu-se de homem...

 

Autor: David Guarniery

Idade: 25 anos

Início: 18:00

Término: 18:26

Tempo Gasto: 26 minutos

Dia: Sábado

Data: 16 de abril de 2011

Obra: 001

In Memoriam:

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Cambé/Paraná/Brasil


[1] Tratando-se de um sistema de pensamento, suponho-me suficientemente admitir a arbitrariedade conceitual minha ante cada um dos proferidos termos.

[2] Eis o problema da circularidade do raciocínio.

[3] O conceito de morte que orientou a ação do cachorro parece, ao menos em parte, coincidir com o meu, isto é: Ambos afligimo-nos a partir de julgada a quietude; o cachorro pela falta de ação do dono; eu pela falta de ação do porquinho (era filhote).

[4] A ética se me apresenta como uma das mais expressivas manifestações de nossa incapacidade ao bem reivindicado em nome próprio. Assim parece-me: Somente os homens esforçam-se por conceituar o bem e ter ação conforme. Somente os homens empenham-se em serem éticos. Os animais simplesmente são.

[5] Com este termo intento dizer não outra coisa senão aquilo que hipoteticamente todos os homens esperam encontrar em todos os homens; e que, de modo geral ou restrito, encontramos sua maior expressão nos animais. Que dizer da lealdade dos cães, da observância dos cavalos e exemplos outros de virtudes as quais parecem todas possuirmos na infeliz medida de nosso mínimo?


Autor: David Guarniery


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