Est'dion



Est’dion

 

Declaro aos hipotéticos: De muito longe é que me vem tal teimosia: quero perder onde a vida há de me jurar o ganho. Que o ímpeto ancestral atravessou milênios, multiplicou-se já no mínimo… e dos milhões de exemplares incompletos, desejosos de um invólucro qualquer, mundo menor onde possa a vida humana forma adquirir, eis um sucesso. E no dia vinte e oito de novembro de 1985, o choro de uma criança nasceu maior que o menino assustado. Entre fados e sinas vejo os excessos do destino. E tive silenciada a fome quando em meu corpo presente fez-se os derivados do trigo.

Por toda vida herdei da minha um turvo corpo que definha. A angústia que me tinha por ausência tua, talvez. Para o regozijo daquela, aprendi culinária, cultivei sementes. E para a alegria dos entes, não joguei no chão. Evitei aversão, para que assim durma a ira dos homens de Einstein. Quando mais jovem, alimentei cão de rua. Precisei de padrinho. E, caminhando sozinho, julguei no tempo o que restou de alguma estrela: deste divino entusiasmo cósmico terá meu corpo teus vinte e seis. Algumas voltas em torno do baricentro deste sistema jurou-me isto[1]. Tenho, enfim, o que me quer a vida. Falta-me agora apenas aquilo que quero.

Quero mulher atrevida quando da força da vida se fizer meu tédio. Um só sincero amigo basta-me para me confessar[2]. Peço do mundo o segredo; uma existência sem medo. Quero uma jura sincera, o otimismo da espera… a honestidade do amor. O calor do teu sangue. Uma voz para o meu silêncio. E uma dignidade… para minha nudez. Quero a vida de meu defunto para o perpétuo direito de se morrer segundo a vontade. Quero um corpo sem prazo. E para do sono o atraso, quero dormir minha eternidade… ciente de que é sono; e que apenas durmo[3].

E para o pretenso desagrado ao reino dos simplórios e santos, ao érebo dos ímpios orientados mais pela urgência da carne que das coisas do espírito, quero propor-me a mim como nova opção. E quando sem deus e diabo, quero jurar-me guiado apenas por mim. Eu estarei em paz comigo. E me prometo perdão[4]. Quero o tempo à contramão. Do retrocesso, ter a seguridade do berço onde o sono foi, de fato, tranqüilo – o macacão azul de algodão me deixará fofinho[5] –. Darei fim à qualidade de mãe, rehospedando-me em teu útero; a desfazer no teu sangue as ruínas do meu tempo… sobre a pele[6].

Por isto me hoje testo senhor de mim, razão de minha sina. Um jogo onde o destino a nada pertence; e que me venha desta sorte o prazer de minha morte. Aposto milhões de êxitos teus, oh Vida, por uma vitória só minha. E para assegurar-me da miséria que busco, aposto mesmo o que de vossa força ainda me resta: meus olhos cansados, muitos sonhos desbotados. Um Eu de açoites, descalço… pela estrada da vida. Aposto meu nome, certidão de nascimento e esta espúria identidade. Minha personalidade. Escolho o número entre três e cinco. Eis que me surge a bola quatro e meio[7]...

 

 

 

 

 

 

 

 

Autor: David Guarniery

Idade: 25 anos

Início: 04:02

Término: 04:26

Tempo Gasto: 24 minutos

Dia: Sexta-Feira

Data: 29 de julho de 2011

Classificação: Crônica Lírica

Obra: 001

In Memoriam:

*Wallison Paulieli Galvão[8]

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Brasil/ Paraná/ Cambé

 

“Nada sou que não se tenha dito; Ouçam e me saberão”

(David Guarniery)


[1] Neste parágrafo procuro apresentar a natureza ínfima (segundo minha óptica) das conquistas de uma vida que, em tese, toma o ente como meio e nunca como fim, contrário ao que rezava-nos o filósofo estagirita Aristóteles ao versar acerca do modo desejável das relações humanas em Ética A Nicômaco.

[2] Aos meus amigos: René S. Rodrigues, Hernani Pereira, Ricardo Lopes, Adriano Borges, Vercalterren de S. Abel, Bruno Vinícius, Jessé A. Barto e Zulmira Herrera. – (Nenhum indivíduo socialmente reconhecido como santo entre os homens cumpriria aqui a cumplicidade destes grandes. Profiro cumplicidade em razão do entendimento segundo o qual do contrário resulta a infactibilidade da confissão segundo seu propósito vulgar, qual seja: aliviar do espírito as aflições anímicas que lhe perturbam quando em hora tão trágica o morrer já não basta por si).

[3] Em detrimento daquele, neste parágrafo me é intento apresentar a natureza ímpar (segundo minha ópitica) de meus propósitos e anseios. Que tenha a matéria bruta pulsado pela primeira vez, eis aí um momento de espanto ante o acontecimento milagroso e absurdo que nos agraciou com vida. Que a matéria cesse de pulsar, eis ai a tragédia inconcebível e tanto quanto deplorável àquele cuja vida se desfaz como um encanto, fazendo nascer da carne, outrora tida como inexplicável conquista, a frieza lítica de onde emergira para nunca ser, somente sendo; tornando ausente de qualquer razoável propósito todo o espantoso percurso que sai do pó à consciência; e para o pó regressa.

[4] Quando aos dezoito anos, elaborei um ideograma cujo pensamento por ele expresso aqui está contido, ainda que sob a pena da síntese que me compele as poucas linhas. A tal ideograma chamo: Dai-Ttara, sendo este a exclamação maior de meu humanismo.

[5] Trata-se da memória que tenho de uma fotografia (hoje destruída pelo tempo) onde, ainda bebê, vestia eu o referido; sendo, por vezes, tomado como gracioso. Mulher tem destas coisas; e aprecia quase tudo o que vê.

[6] Dado a saber meus pressupostos, penso que: deste retrocesso, não mais a sucessão ordenada dos fatos, antes, a vontade, quando por livre deliberação, é que se pretende a potência única  causadora de sua morte, ao subverter o horizonte do próprio espírito desejante; transmutando em dever às leis do mundo a urgente antecipação dos seus eventos sempre que postulada pela convicta disposição de uma consciência suicida.

[7] Com este termo, intento não outra coisa senão apresentar a contraposição entre Destino e Liberdade onde, em razão do resultado, segue-se necessariamente a obrigatoriedade de continuar existindo. Deste modo, chamo ainda atenção à questão bioética não apenas da pena de morte e do direito de morrer, mas o naturalmente mal fadado ato deliberativo da vontade de continuar vivendo daquele a quem, por incapacidade da hipotética espécie da qual é parte, deixou de existir por compelida observância aos teus limites e em favor de coisa alguma senão destes.

[8] Meu irmão. Em razão de seu contínuo empenho e constantes frustrações.


Autor: David Guarniery


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