Quando Não Mais Me Suporto



Quando Não Mais Me Suporto


Creio não haver neste mundo um só homem que em algum momento não se tenha deparado consigo[1]. A efígie pela qual reconhecemo-nos, projetada por sobre a superfície lisa de qualquer coisa, não nos é menos objeto de nós mesmos que aquele pelo qual nos é possível ver-nos. E, como para qualquer fenômeno percebido, na medida em que me tomo como coisa muda, surpreendo-me a impetuosamente julgar quem sou. Primeiro, julgo que aquela imagem seja Eu; depois projeto sobre a mesma a lembrança, ainda que muito pálida, de um sucesso que se prolonga no tempo. Elevo-me em voz dizendo: Sou isto que vejo; e para além do que vejo, também isto sou eu. Sou a memória de ainda ontem e a esperança do porvir. Guardemos, por hora, este raciocínio… a fim de memorar um episódio.

Ontem, ao passar pelo calçadão da cidade de Londrina, ouvi a conversa de duas jovens que deveras riam de um não muito insólito evento, qual seja: Não outro senão a vergonha que sentiam de, vestidas com o uniforme do trabalho[2], serem vista por dois rapazes os quais julgo despertarem nestas a lascívia de mulher[3], em momento, oprimida pelas vestes da profissão da qual pouco ou nada podem o orgulhar-se. Em seus dizeres aos risos: “Eu tenho vergonha dele”. Caro leitor, eis aí o tema de minha modesta inquirição, também assunto desta tão confusa crônica às pressas elaborada. O que poderia[4] ser o constrangimento? Qual a origem do acontecimento deste na emotividade humana?

Resposta à primeira indagação penso ser: Em um momento, um abalo emotivo. Já a causa deste abalo e nunca o fenômeno por ele mesmo penso ser a via humanamente possível de afirmação da natureza do sentimento desperto. Portanto, eis, a partir do exposto, a possível resposta à segunda: Somos objetos de nós mesmo; e, em tese[5], vimos que atribuímos aos objetos um significado – isto o torna, para nós mesmos, significante[6] –; O mesmo processo penso ocorrer com o objeto a que julgamos ser o Outro, e nem haveria motivo para assim não ser, uma vez dado o devido aceite às asseverações dos parágrafos anteriores. Quando relacionamos os valores que atribuímos a nós mesmos com os valores atribuídos ao Outro, também objeto de nossa percepção; e, quando já estabelecida a devida e necessária relação valorativa, terminamos por julgar inferiores os valores a nós correspondentes, penso termos o acontecimento do abalo emotivo então denominado Vergonha ou Constrangimento.

Certamente não é a este instante de nossa reflexão que ensejo chegar, mas a outro não menos relevante e curioso. Pelo raciocínio feito, somos, a fortiori, levados a concluir que não estamos em posse de um bom enunciado lingüístico quando dizemos o mesmo que as jovens de minha observação, o que seja: “Eu tenho vergonha dele”. Pois, como vimos, não nos é possível a vergonha do outro; antes, resta-nos apenas este enunciado a que julgo perfeitamente adequado: Eu sinto vergonha do que creio que sou diante do que penso você ser. Pois somente diante de você enquanto valores por mim projetados; e projetados como superiores é que sentirei imediata vergonha de mim.

Disto se segue que quando não mais somos capazes de tolerar o significado por nós atribuído a nós mesmos; e também por nós posto em relação com aqueles valores[7] que tornam significante o objeto de nossa consciência, despertamos creio que um desequilíbrio na emotividade, saindo assim do Trívia[8] para aquele específico abalo supracitado. Situação embaraçosa, estranha por natureza e digna de vergonha é, partindo do pressuposto de que o resultado desta modesta análise seja verdadeiro tanto quanto possam ser as premissa sob as quais assenta-se, rir de si; rir do significado posto por nós mesmo; achar graça não daquilo que interpretamos, mas da própria interpretação, feita em conformidade a despertar o riso.

Rimos e nos sentimos constrangidos, alegre, felizes e até mesmo tristes não por aquilo que vemos, sentimos e ouvimos… mas por aquilo que pensamos ver, sentir e ouvir, fazendo mentalmente coincidir a natureza da coisa percebida[9] e a semântica do juízo feito. Vemos assim que a piada nunca teve sua graça; Que a morte nunca foi triste e nem ao menos veste-se com toda a lúgubre aparência que nos afligi. Não é deplorável o estar só, nem é mais bela a companhia. Minha lágrima é meu efeito porquanto é dela que sou causa. Rio de mim mesmo; tenho medo de mim; E já não há no mundo homem que, enquanto homem, nunca tome por herança a dúvida de ter vivido só, ao lado de um objeto cuja vida era não mais do que apenas pressuposta.

O irônico agora não é mais o rir de si, antes, porém, se de concordado com o proposto, ter buscado por esta, atentado-se ao sentido próprio de cada verbo e ainda assim ter lido apenas a si próprio. Se o sentido é você quem concedeu; o objeto, você quem escolheu[10], o autor deste mundo é você. Justificados que estamos pela suposta natureza daquilo que nos supomos exemplo, cito agora isento da sepulta obrigação da referência: “o ântropos to metro olon ton pragmáton (O homem é a medida de todas as coisas)”[11].

 

Autor: David Guarniery

Idade: 24 anos

Início: 19:29

Término: 19:42

Tempo Gasto: 13 minutos

Dia: Sábado

Data: 18 de setembro de 2010

Obra: 001

Classificação: Crônica Lírico-Filosófica

In Memoriam:

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Brasil/ Paraná/ Cambé


[1] Não é de todo uma alogia dizer: Pensamos apenas a nós mesmos.

[2] Tratava-se do horário de almoço, motivo pelo qual não as encontrei no âmbito de seu ofício. Este detalhe não é posto aqui por acaso, mas não mais do que isto aprofundar-me-ei neste em virtude da proposta brevidade deste texto.

[3] Uso Mulher apenas como termo cuja semântica espero evocar a idéia de gênero e já não de um do muitos modos possíveis de identificação etária.

[4] Apraz-me reiterar que sou cético.

[5] Apresentada cronicamente já no primeiro parágrafo desta.

[6] Tornamo-nos significantes para nós mesmo; E evitamos com isto uma não percepção e mesmo a omissão imediata de nós.

[7] Estes valores, bem como qualquer outro, penso advir sempre do sujeito cognoscente, portanto, é posto pela mente humana por um processo de relação entre o conteúdo mental prévio e o objeto percebido.

[8] Termo por mim introduzido para designar o sentimento resultante daquilo que julgamos ser-nos trivial.

[9] Partindo sempre do pressuposto de que haja algo exterior ao espírito humano; e que tal coisa possui, por conta disto, uma natureza própria e já não uma natureza pressuposta.

[10] Em última instância, admitindo-se que a consciência possui uma intencionalidade, todos os objetos poderiam, com efeito, serem interiores ao espírito humano e, por conta disto, efeito de um desejo próprio.

[11] Autoria: Vossa senhoria, O Leitor.


Autor: David Guarniery


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