Toque de recoher e o estatuto da criança e do adolescente



É comum, encontrar adolescentes, mesmo aqueles considerados menores impúberes, em festas, shows, e outros eventos que atraem de uma forma geral o público juvenil. Muitos desses adolescentes permanecem, sem a companhia de seus representantes legais, “na rua”, até altas horas da noite, fazendo uso de bebidas alcoólicas, cigarros e até mesmo o uso de drogas consideradas ilícitas. Tal situação, os colocam em situação de risco, exigindo das autoridades públicas a tomada de providências que visem a sua proteção integral, conforme preconizada pelo ECA.

Sabe-se que adolescência, é uma fase de desenvolvimento físico e psicológico e que é cheia de questionamentos e instabilidade, onde se busca constantemente a auto-identificação, ou seja, a própria identidade. Nessa fase, todos os padrões pré –estabelecidos pela sociedade são questionados, bem como são criticadas todas as interferências feitas pelos pais, buscando-se assim, a liberdade e auto-afirmação.

Nesse sentido, Sandra Mara Pereira[1] comenta, que ao adolescente atribuem-se atitudes, “subversivas, provocadoras e contestadoras” por configurar um posicionamento de questionamento ou de revolta diante da família, da sociedade e de si mesmo. Para a autora citada, “a adolescência é um momento fértil para diversas atuações, uma vez que o fascínio está no outro, na descoberta do novo, no diferente”. Nisso, prossegue a autora, demonstrando que comportamentos de risco são muito freqüentes em nome da “adrenalina”, e que por conseqüência “passaram a ser presentificados num dia a dia respectivo: roubos, furtos, surfe no ônibus, esporte radicais, “baladas”, gravidez precoce, DST/Aids e tantos outros eventos”.(PEREIRA, 2006)

            Pode-se observar, que a vida noturna exerce um certo fascínio na fase da adolescência, onde a descoberta é terreno fértil, haja vista a sensação de liberdade que de uma forma geral é sonhada em ser conquistada.

Muitos juízes, observando o aumento de crianças e adolescentes envolvidos com bebida alcoólica, drogas e prostituição, resolveram tomar sérias providencias, impondo o toque de recolher, ou seja, proibindo a circulação nas ruas de crianças e adolescentes a partir de um horário determinado.

Tal medida, tem como fundamento a análise do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), baseando-se em alguns de seus artigos, como art. 6º, assim redigido:

Art. 6º Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento”.(ECA, art.6º)

 

Nisso, observa-se que a medida visando retirar das ruas as crianças e adolescentes, a partir de certo horário noturno, com o objetivo de impedir a prostituição, a ingestão de bebidas alcoólicas, o uso de drogas, os atos infracionais, a violência, a criminalidade e outros males, é socialmente relevante, e tem como escopo, a proteção destas, bem como o atendimento as exigências do bem comum, uma vez que se destina também, a promover a segurança, a tranqüilidade e a paz social.

Pode-se comprovar, aonde foi aplicada tal medida, houve a diminuição do número de atos infracionais:

A cidade paulista Fernandópolis é uma das pioneiras no toque de recolher e, nesta semana, após quatro anos que a medida vigora na cidade de 62 mil habitantes, foi anunciado que houve uma redução de 80% dos atos infracionais e de 82% das reclamações do Conselho Tutelar. Para as autoridades, o responsável pela redução destes números é o toque de recolher.(STEFANELLI,Bárbara.Bate rebate: toque de recolher para menores divide a opinião de especialistas.Disponível em: http://virgula. uol.com.br/ver/noticia/inacreditavel/2009/04/29/202189-bate-rebate-toque-de-recolher-para-menores-divide-a-opiniao-de-especialistas,acesso em: 24 de set. de 2011)

 

O toque de recolher, visa impedir que crianças e adolescentes, andem sozinhas pelas ruas, sem acompanhamento dos seus responsáveis, prevenindo situações que os coloquem em risco, bem como incentivando a aproximação entre os próprios familiares. 

Nestes termos, em uma entrevista com juiz da cidade paulista de Fernandópolis, que determinou o toque de recolher nesta cidade, após as 23:00 hs,  comenta, que depois de quatro anos, já tem que se comemorar os avanços alcançados:

[...] Após quatro anos do toque de recolher em ação, Pelarin também comentou sobre as melhoras da cidade. “Hoje em dia, observamos uma juventude um pouco mais organizada. Vemos os pais indo para a festa com filhos. A medida acabou estimulando uma presença maior dos pais com os filhos”.(STEFANELLI,Bárbara.Bate rebate: toque de recolher para menores divide a opinião de especialistas.Disponível em: http://virgula .uol.Com.Br/ver/noticia/inacreditavel/2009/04/29/202189-bate -rebate-toque -de-recolher-para-menores-divide-a-opiniao-de-especialistas,acesso em: 24 de set. de 2011) (grifei)

 

A medida também faz com que a própria comunidade se organize, como forma de proporcionar lazer as crianças e adolescentes depois do horário noturno proibido, incentivando assim, em espaços determinados, a prática de esportes e de entretenimento, com a fiscalização dos próprios responsáveis, afastando-os assim, da violência e da criminalidade. Nisso, o próprio juiz mencionado acima, declara que a medida imposta, tem como objetivo impedir que as crianças e adolescentes convivam em ambientes que o coloquem em situação de risco, não proibindo que os mesmos freqüentem outros espaços, depois do horário do toque de recolher, considerados sadios: “Depois do toque de recolher, surgiram novas opções de lazer; a própria sociedade foi criando novas opções e comportamentos sadios”(STEFANELLI,Bárbara.Obra citada.)

O próprio poder público, pode realizar programas com as comunidades, como forma de promover uma maior integração entre as famílias, como faz, por exemplo, a Secretaria de Estado de Segurança Pública do Distrito Federal, que apóia um projeto piloto denominado de “esporte à meia noite” que tem como objetivo:

Combater, de forma preventiva, a criminalidade juvenil, por meio do desenvolvimento de ações esportivas, de qualificação profissional e de lazer, destinadas à expressão de seus valores culturais e voltadas à construção de sua cidadania; Propiciar a maior integração dos jovens em suas famílias por meio de informação e participação dos pais e responsáveis nas atividades do projeto;Promover a interação do sistema de segurança pública com as comunidades beneficiadas pelo projeto, de modo a difundir sua nova Desenvolver atividades esportivas, culturais e educativas para adolescentes, no período noturno, com o objetivo de diminuir a criminalidade juvenil.

(GDF,Secretaria de Estado de Segurança pública do Distrito Federal, esporte  a meia noite.Disponível em: http://www.ssp.df.gov.br/005/00502001.asp? ttCD_CHAVE=9014, acesso em 24 de set. de 2011)

 

De uma forma geral, o ECA, tem como objetivo a proteção das crianças e dos adolescentes, e é obrigação do poder público e de toda a sociedade, velar pela dignidade destes, “pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor”(ECA, art. 18)

                 Embora no ECA não haja previsão, de forma expressa, a possibilidade de impor, pelo magistrado, o toque de recolher para crianças e adolescentes, depois de certo horário noturno, entende-se que em uma interpretação sistemática de todo o diploma, autorizaria o juiz, analisando o caso concreto, a aplicar tal medida, para assegurar a preservação de todos os direitos assegurados no Estatuto que visem a proteção desse grupo de pessoas.

Nesse mesmo sentido, caso haja qualquer restrição da liberdade das crianças e adolescentes, visando a sua proteção, é perfeitamente aceitável, haja visto que no conflito de princípios: LIBERDADE x PROTEÇÂO, deve-se fazer um juízo de ponderação destes, afim de  se reconhecer a prevalência de um princípio sobre o outro.               

Dessa forma, “o juízo de ponderação entre os pesos dos direitos e bens contrapostos deve ter uma medida que permita alcançar a melhor proporção entre os meios e os fins”(STUMM,1995,p. 80)

Assim, se a constrição da liberdade, com a finalidade de assegurar a proteção as crianças e adolescentes, tendo como estatísticas comprovadas, que o horário noturno proibido é prejudicial ao desenvolvimento físico e psíquico destes, colocando-os em situação de risco, é perfeitamente aceitável que o princípio da proteção prevaleça sobre o princípio constitucional da liberdade de ir e vir.

Nesse entendimento, José Sérgio da Silva Cristóvam, compreende que o magistrado em análise deve exercer um juízo de ponderação, observando tambévm se a decisão obteve um resultado favorável:

[...]O Judiciário, quando da análise de situações que contemplem conflitos entre princípios constitucionais, deve exercer um juízo de ponderação entre o direito efetivado pela decisão e o por ela restringido, a fim de ponderar acerca da justiça da situação amparada. Deve o juiz valorar, segundo as circunstâncias e peculiaridades do caso concreto, se a decisão obteve um resultado satisfatório, e se o direito limitado deveria sucumbir frente ao efetivado, em uma "relação de precedência condicionada". Como se pode aferir, a valoração das circunstâncias demanda considerável juízo subjetivo.

(CRISTÒVAM, José da Silva. Resolução das colisões entre princípios constitucionais.Disponível em:http://jus.com.br/revista/texto/3682/a-resoluc ao-das-colisoes-entre-principios-constitucionais, acesso em 25 de set. de 2011)

 

É importante observar que o adolescente, devido a fase de puberdade em que se encontra, em um pleno desenvolvimento físico e mental, é considerado pela norma, absolutamente ou relativamente incapaz de exercer os atos da vida civil, por isso, também, na análise do caso concreto, pode ser considerado também, incapaz de se locomover, sem o acompanhamento de um adulto, depois de certo horário noturno, haja vista que este pode estar exposto, a uma série de fatores, que o condicione a uma situação de risco, como o uso de drogas, álcool, a prática de atos infracionais, prostituição etc.

Nesse mesmo sentido, a criança, por sua vez, não deve, de maneira nenhuma, transitar, qualquer que seja o horário, desacompanhada dos pais ou responsável, pois presume-se que esta esteja em constante situação de risco, podendo os responsáveis, responder, na forma da lei, pela sua negligencia ou abandono.

Portanto, o juiz na análise do caso concreto, pode para promover a proteção integral das crianças e dos adolescentes, preconizada pelo Estatuto da Criança e do adolescente (ECA), impor medida a impedir a sua locomoção depois de certo horário noturno, sem acompanhamento dos pais ou responsável, objetivando assim, impedir que esse grupo de pessoas, devido a condição de desenvolvimento físico e psicológico em que se encontram, lançarem-se em uma situação de risco que comprometa a sua saúde e dignidade.

O problema com a restrição da liberdade das crianças e adolescentes, em determinado horário, diz respeito, a sua fiscalização. Quem fiscalizará? A polícia Militar, que tem atribuição constitucional promover a ordem e a paz social, combatendo a criminalidade? creio que não. O conselho tutelar, que em muitas cidades, está mal equipado materialmente, com deficiência de quadro pessoal e cheio de demandas ? acho difícil. Como se vê, algumas dificuldades são percebidas para a aplicação do toque de recolher, sobretudo naquelas cidades consideradas mais complexas, em que demanda um maior dispêndio com a sua aplicação, o que explica, de uma forma geral, as reiterada criticas, feita por vários estudiosos acerca da sua inexequibilidade.

É preciso uma maior conscientização de toda a população visando a proteção de nossas crianças e adolescentes, afastando-os de situações que os coloquem em risco social, tornando assim, o toque de recolher, uma medida desnecessária a “tapar” o buraco do descaso, da negligência, do abandono, e da falta de consciência de todos os co-responsáveis: a sociedade e o Estado.


[1] PEREIRA, Sandra. O uso e o abuso de drogas na adolescência.Belo Horizonte: Autentica 2006.


Autor: Thiago Alves Bessa


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