Reformando a igreja institucionalizada



 

A mensagem cristã surgiu entre os judeus, considerados bárbaros pela civilização romana. E, apesar de choques e hostilidades, conseguiu firmar-se no Império.

O Cristianismo defrontou-se com um mundo consolidado: um mundo onde, desde as conquistas de Alexandre, o Grande (356 -323 a.C.), predominava a cultura greco-romana, que se difundiu entre os povos da Antiguidade e abalou suas culturas nacionais. Nessa vastidão que incluía quase toda a Europa, a Ásia Menor e o norte da África, o clima espiritual era contraditório.

A religião oficial de Roma caracterizava-se pelo pragmatismo político. Ao politeísmo greco-romano, em geral eclético e teologicamente frágil, contrapunham-se inúmeras religiões de mistérios, cada vez mais divulgadas e acrescidas de novos adeptos. Roma procurava garantir suas tradições e supremacia através das divindades nacionais, regionais ou locais, mas não deixava de utilizar deuses estrangeiros para submeter os povos conquistados.

Mas no séc. III d.C., o Império Romano encontrava-se à beira da derrocada. Suas fronteiras estavam ameaçadas e os imperadores, sucedendo-se ininterruptamente, eram impotentes para garantir a segurança das províncias. A aristocracia, ameaçada, começou a constituir Estados independentes. A população sofria privações de todo tipo e praticava atos de banditismo.

 No início do séc. IV Diocleciano buscou a consolidação estatal, instaurando uma monarquia absolutista. O imperador foi transformado em descendente dos deuses, o exército e a religião tornaram-se a garantia do poder despótico. Apesar de numerosas semelhanças com outras crenças monoteístas, o Cristianismo trouxe uma proposta fundamentalmente nova. Pelo fato de deixar sua pátria, a Palestina, pôde desligar-se de suas características nacionalistas e irrompeu no mundo romano como um movimento messiânico de amplitude internacional. Além de valorizar o homem, atribuindo-lhe alma *imortal, tornou-o membro de uma nova família universal, presidida por um Deus único que se manifestara sob forma humana e histórica. Simples e consistente na doutrina, a nova religião trazia uma mensagem escatológica, relativa ao final dos tempos, centrada na idéia da ressurreição e glorificação, inédita no mundo antigo.

A mensagem de salvação imediata baseava-se na transformação espiritual a partir da conversão individual a Jesus Cristo: embora não operada pelos homens, mas pela graça divina, a salvação consistia numa opção possível a todos. Penetrando mais facilmente entre os escravos da cidade, o Cristianismo atingiu todas as camadas da população. O Estado romano vivia um momento de transição e, diante da inquietação gerada pela crescente crise político-econômica, a mensagem de salvação espiritual representava importante compensação. E o Cristianismo pregava antes de tudo o distanciamento dos problemas terrenos, prometendo a instauração de um mundo novo para além do mundo visível. Por outro lado, as comunidades cristãs viviam em comunhão de bens, pregando a igualdade de todos perante Cristo. Dessa forma, embora visando essencialmente a salvação espiritual, a mensagem cristã ganhou a conotação de revolução social e atraiu a população injustiçada.

 Desta forma, no séc. III, com a decadência dos cultos tradicionais romanos, o cristianismo passou a ser uma força considerável. Quando o imperador Constantino decidiu aceitar o Cristianismo, no início do séc. IV, seus motivos foram predominantemente políticos, mas tiveram um significado transcendental, pois, posteriormente, o Cristianismo tornar-se-ia a religião oficial do império. Para poder consolidar o Cristianismo, foi necessário criar estruturas mais complexas para manter tanto a disciplina como para proteger a pureza da doutrina. É contra estas estruturas que vivo digladiando dia a dia.

 A igreja tem duas dimensões: organismo e organização, corpo místico de Cristo e instituição religiosa, que convivem e se misturam enquanto fenômeno histórico e social. O grande desafio é fazer a dimensão institucional diminuir para deixar o organismo espiritual crescer. O que se observa hoje, entretanto, é um movimento contrário, no qual muitas comunidades cristãs caminham a passos largos para a institucionalização, sem falar naquelas que estão com os dois pés fincados no terreno da religiosidade formal. Se não, observe o que eu chamo de marcas da institucionalização da igreja:

1. Liderança personalista.
Quando a comunidade acredita que algumas pessoas são mais especiais do que outras, abre brecha para que alguém ocupe o lugar de Jesus Cristo e se torne alvo de devoção. Ocorre então uma idolatria sutil e, aos poucos, um ser humano vai ganhando ares de divindade. Líderes que confundem a fidelidade a Deus com a fidelidade a si mesmos se colocam em igualdade com Deus e, em pouco tempo, pelo menos na cabeça dos seus seguidores, passam a ocupar o lugar de Deus. Quando não ficam descontentes e começam novos grupos, em seus próprios lares.

Não há nada de mágico em reunir-se em uma casa. Felicity Dale, uma das vozes da Igreja nos lares nos EUA juntamente com seu esposo Tony Dale, afirma que muitas Igrejas nos lares nos EUA estão se formando dentro dos mesmos moldes do institucionalismo cristão, o que resulta em comunidades e líderes desgastados logo em seus primeiros anos de funcionamento. É possível congregar nos lares e, mesmo assim, funcionar dentro dos mesmos moldes litúrgicos e estruturais da religião organizada. Muitas comunidades caseiras sucumbiram ao mesmo mal da religião institucional: o controle centralizador por parte de alguns que se acham donos da Igreja e sufocam a manifestação da multiforme sabedoria de Deus, por meio do sacerdócio universal.

É muito comum ver grupos familiares que giram em torno do carisma ou da persona de um único profeta ou mestre. Igualmente, assim como ocorre na instituição, também comumente se observa a formação de aristocracias familiares em que uma determinada família é a dona da Igreja – são as chamadas “Igrejas familiares”, que não devem ser confundidas com os grupos familiares da Igreja.

A mudança nestes casos é somente geográfica, perpetuando assim o status quo do sistema de castas clericais com suas liturgias mecânicas que inibem a espontaneidade carismática – algo tão orgânico quanto o Homem de Ferro e o Robocop.


2. Ênfase na particularidade do ministério.
Uma vez que o projeto institucional se torna preponderante, a ênfase não pode recair nos conteúdos comuns a todas as comunidades cristãs. A necessidade de se estabelecer como referência no mercado religioso conduz necessariamente à comunicação centrada nas razões pelas quais “você deve ser da minha igreja e não de qualquer outra”. Torna-se comum o orgulho disfarçado dos líderes que estimulam testemunhos do tipo “antes e depois de minha chegada nesta igreja”.

3. Ministração quase exclusiva à massa sem rosto.
Ministérios institucionalizados estão voltados para o crescimento numérico e valorizam a ministração de massa, que se ocupa em levar uma mensagem abstrata a pessoas que, caso particularizadas e identificadas, trariam muito trabalho aos bastidores pastorais. Parece que os líderes se satisfazem em saber que “gente do Brasil inteiro nos escreve” e “pessoas do mundo todo nos assistem e nos ouvem”, como se transmitir conceitos fosse a única e mais elevada forma de dimensão da ministração espiritual. Na verdade, a proclamação verbal do evangelho é a mais superficial ministração, e deve ser acompanhada de, ou resultar em relacionamentos concretos na comunhão do corpo de Cristo.

4. Busca de presença na mídia.
Mostrar a “cara diferente”, principalmente com um discurso do tipo “nós não somos iguais os outros, venha para a nossa igreja”, é quase imperativo aos ministérios institucionalizados. A justificativa de que “todos precisam conhecer o verdadeiro evangelho”, com o tempo acaba se transformando em necessidade de encontrar uma vitrine onde a instituição se mostre como produto.

5. Projetos ministeriais impessoais. Ministérios institucionalizados medem seu êxito pela conquista de coisas que o dinheiro pode comprar. Pelo menos no discurso, seus desafios de fé não passam pelos frutos intangíveis nas vidas transformadas, mas em realizações e empreendimentos que demonstram o poder das coisas grandes. Os maiores frutos da missão da Igreja são a transformação das pessoas segundo a imagem de Jesus Cristo e da sociedade conforme os padrões do reino de Deus.

6. Exagerados apelos financeiros. Conseqüência de toda a estrutura necessária para sua viabilização, os ministérios institucionalizados precisam de dinheiro, muito dinheiro. As pessoas, aos poucos, deixam de ser rebanho e passam a ser mala-direta, mantenedores, parceiros de empreendimentos, associados.

7. Rede de relacionamentos funcionais
. A mentalidade “massa sem rosto” somada ao apelo “mantenedores-parceiros de empreendimentos” faz com que as relações deixem de ser afetivas e se tornem burocráticas e estratégicas. As pessoas valorizadas são aquelas que podem de alguma forma contribuir para a expansão da instituição. Já não existe mais o José, apenas o tesoureiro; não mais o João, apenas o coordenador dos projetos Gideão, Neemias, Josué, ou qualquer outro nome que represente conquista, expansão e realizações.

8. Rotatividade de líderes.
Não se admira que muitos líderes ao longo do tempo se sintam usados, explorados, mal amados, desconsiderados e negligenciados como pessoas. O desgaste de uns é logo mascarado pelo entusiasmo dos que chegam atraídos pela aparência do sucesso e êxito ministerial. Assim a instituição se torna uma máquina de moer corações dedicados a esvaziar bolsos de gente apaixonada pelo reino de Deus. O movimento migratório dos líderes de uma igreja para outra é feito por caminhões de mudança carregados de mágoas, ressentimentos, decepções e culpas.

9. Uso e abuso de conteúdos simbólicos.
A institucionalização é adensada pelos seus mitos (nosso líder recebeu essa visão diretamente de Jesus), ritos (nossos obreiros vão ungir as portas da sua empresa) e artefatos (coloque o copo de água sobre o aparelho de televisão), enfim, componentes de amarração psíquica e uniformidade da mentalidade, onde o grupo se sobrepõe ao indivíduo e a instituição esmaga identidades particulares. Os símbolos concretos (objetos, cerimônias repetitivas, palavras de ordem) afastam as pessoas do mundo das idéias. Quanto mais concretos os símbolos, mais amarrado e dependente o fiel.

10. Falta de liberdade às expressões individuais. Ministérios institucionalizados, personalistas, dependentes de fiéis para sua manutenção financeira e psicologicamente amarrados pelos conjuntos simbólicos não são ambientes para a criatividade e a diversidade. Todos brincam de “tudo quanto seu mestre mandar, faremos todos” e, inconscientemente, acabam se vestindo da mesma maneira, usando o mesmo vocabulário, gestos e linguagens não verbais. Seus rebanhos são compostos não apenas por “massa sem rosto” e “mantenedores-parceiros de empreendimentos”, mas também por “soldadinhos uniformizados”, o que, aliás, é a mesma coisa.

 Apesar de sair da instituição ser um passo importante, é apenas o primeiro, e tirar a instituição dentro de você é bem mais complicado. Mesmo quando entendemos e cremos no sacerdócio universal, colocá-lo em prática é bem mais complicado do que parece. Temos que lutar não apenas contra a nossa carne, mas também com anos e anos de “programação” humana.

Tirar as pessoas da instituição é algo relativamente fácil comparado à dura tarefa de purgar a instituição das pessoas. Isso não é nenhuma novidade para os que acompanham os grupos restauracionistas do Brasil. O medo de “se organizar”, dando à luz uma cria, miniatura do denominacionalismo, neutralizou algumas vozes que há décadas já difundiam os conceitos da Igreja orgânica, mas que nunca desenvolveram uma atitude mais prática no tocante ao congregar e discipular (o que para mim é o extremo oposto ao institucionalismo, sobre o qual pretendo escrever em uma ocasião futura).

Assim como ser carismático não quer necessariamente dizer “ser pentecostal”, Igreja orgânica não é necessariamente sinônimo de Igreja nos lares. Pela força do hábito, eu mesmo uso o termo “igreja orgânica” de forma intercambiável com “Igreja nos lares”, mas penso que para entendermos melhor o que Deus está fazendo nos dias atuais, é melhor entendermos a Igreja orgânica não como um movimento distinto, mas como um mover que está sendo difundido no Corpo de Cristo em geral, um conceito que algumas comunidades estão abraçando de maneira mais profunda, e outras de forma parcial.

O grande problema é que normalmente associamos o odre com a estrutura, mas penso ser este um grande equívoco. Deus não depende de estruturas e não tem compromisso com elas, sejam caseiras ou institucionais. O odre não é uma estrutura física, seja uma casa ou um auditório, e sim o coração do homem. Embora a volta da Igreja para os lares seja imprescindível na agenda de Deus em nossa geração, o odre que precisa ser renovado não é o lugar de reuniões, e sim a maneira como vemos a Igreja e nosso modus operandi. Uma mudança geográfica sem mudança de mentalidade representa somente uma mudança cosmética sem transformação real de conteúdo – um odre que não pode conter o vinho novo que Deus quer derramar sobre nós nos dias atuais. Trata-se de uma propaganda enganosa da reforma que o Espírito de Deus está promovendo em nossos dias.

 Percebo que a geração neoprotestante não consegue enxergar com objetividade cristalina o desenvolvimento do conceito bíblico-eclesiológico através dos séculos, talvez por conta da radicalidade das mudanças que acontecem no mundo global. A globalização é um fenômeno histórico-social de impacto no comportamento das pessoas, ou seja, elas reagem às mudanças, porém, não conseguem refletir a respeito delas com a profundidade que a vida e o reino de Deus exigem. A Igreja Orgânica tem uma filosofia muito bonita e desafiadora, contudo, não consegue instruir e formar discípulos com fidelidade objetiva às Sagradas Escrituras e nem adaptados para responder com sabedoria espiritual e praticidade as transformações da sociedade do conhecimento. Pouquíssimas igrejas estão conseguindo enxergar as tendências sociais antes de poder responder aos seus desafios. Vamos repensar a Igreja Orgânica? Prefiro interferir e mudar a igreja institucionalizada.

 

 Fontes de consulta:

DENIS, Léon. Cristianismo e Espiritismo.

Atlas da História Universal.

SAVELLE, Max. História da Civilização Mundial.

Dicionário Prático Ilustrado. Lello & Irmãos Editores, Porto.

Enciclopédia Britânica.

MIRANDA, Hermínio C. Cristianismo: a mensagem esquecida.

Diversas Religiões. Abril Cultural.


Autor: Geraldo R. Rocha


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