Revolução Cairo/Egito versão 1986



Visão de uma Brasileira no Cairo/Egito/  Revolução contra Mubarak (versão 1986).

 

Motivo mudança Egito

Desde criança sempre tive um grande fascínio pelo “Egito antigo” e tudo que o constituía; os faraós, Cleópatra, os templos, as pirâmides, a arquitetura, e, inclusive a crendice da possibilidade de uma vida eterna que as mumificações ilusoriamente traziam a seus povos.

Por destino ou ordem do acaso, já adulta, fui morar no Cairo capital do Egito, local que foi palco de todo aquele universo. Tinha acabado de me formar em Administração de Empresas e estava aproximadamente com 4 anos de casada.

Em meados dos anos 80, o governo Egípcio, adquiriu algumas aeronaves de origem militar, o TUCANO, de fabricação da empresa EMBRAER- Empresa Brasileira de Aeronáutica, (o mesmo avião utilizado pela nossa “Esquadrilha da Fumaça” em suas apresentações). Como associada à aquisição havia um forte interesse por parte dos egípcios que houvesse a transferência do Konw How da empresa brasileira, ficou estabelecido em contrato que as aeronaves seriam produzidas na cidade do Cairo.

Dando prosseguimento aos trabalhos, a EMBRAER enviou uma equipe de funcionários para o Egito; os solteiros eram revezados de tempos em tempos, e os casados ficariam em caráter permanente até o final do contrato.  Ai que eu entro nesta história, o meu marido na época, foi o responsável pelo controle de qualidade do projeto/Egito.

Dias antes da partida para o Oriente Médio, a empresa nos proporcionou diversas palestras com temas pertinentes em relação às diferenças culturais entre os dois países, a religião, o islamismo, etc. Estas palestras foram bastante úteis contribuíram bastante para facilitar a nossa adaptação em terras tão distantes.

Após longas horas de vôo chegamos ao aeroporto do Cairo à noite, aliás, estava uma noite bastante movimentada.

O Cairo sua história:

O Cairo é a maior cidadedo mundo árabe e da África, além de estar em uma posição geográfica estratégica, entre o continente africano e asiático. A maior parte do território é desértica, com exceção na costa do mar Mediterrâneo e nas margens do Nilo, essencial à sobrevivência do país. A maioria da população é de árabes egípcios e a religião predominante é a islâmica.

Originalmente, formado por diversas comunidades na Antigüidade, o Egito, sofreu diversas invasões, sendo dominado por Roma por sete séculos. Passou por um processo de islamização, e alternâncias de poder, conquistando sua independência em 1922.

Egito, Iraque, Jordânia e Síria, invadiram o recém-criado Estado de Israel em (48), mas foi derrotado. Cinco anos depois  estabeleceu-se o regime republicano.  Nasser que se tornou presidente promoveu a nacionalização do Canal de Suez (56), e foi defensor da unidade árabe.

Com a morte de Nasser (70) tomou posse Anuar El Sadat. Incentivado pelos Estados Unidos, Sadat assina o acordo de paz (79) entre Egito e Israel, e recebe de volta a região do Sinai. O acordo foi repudiado por outros países árabes. Sadat foi assassinado em (81),  assumindo Hosni Mubarak em outubro de (81)

 

Chegada ao Cairo final de 1984

Retomando aqui a nossa história, chegamos ao Cairo quando Mubarak estava no início do seu (4) quarto ano na presidência do Egito. A língua oficial do Egito é o árabe, assim vocês podem imaginar o nosso grau de dificuldade para que entendêssemos “a escrita”. Grande parte dos comerciantes egípcios falava inglês, o suficiente ao atendimento ao seu ramo de negócios.

 

Logo percebi que para sobreviver e possuir certa independência deveria falar inglês. Matriculei-me em uma escola Britânica, recordo-me muito bem, meu primeiro dia de aula foi na passagem de ano (dia 31/Dez/1984, segunda-feira). Para o egípcio um dia normal, as datas comemorativas do calendário dos muçulmanos têm datas diferentes (começou no ano 632 D.C. de nosso calendário), eles comemoram em 6 de junho, data em que Mohammed fez a sua peregrinação a Meca. Na minha classe, meu professor britânico, eu a única estrangeira entre os árabes. Ninguém falava português.

Obviamente não preciso dizer que enfrentamos muitas situações curiosas, inusitadas, pitorescas, muitas delas até engraçadas, outras até perigosas por conta da dificuldade da língua e dos costumes. . .

 

Busca de um local para morar:

Pareceu-me não ter havido entendimento por parte dos corretores das imobiliárias por conta da língua, todos os imóveis que visitamos levados por eles, não correspondia ao que buscávamos. Por conta desta dificuldade moramos 3 meses em um hotel. Foi necessário aprender palavras pertinentes em árabe para indagar por conta própria quando encontrava algum prédio que me agradasse. O método adotado deu resultado e encontramos inclusive um imóvel de primeira locação que nos agradou muito. Vésperas da mudança meu marido e eu nos encontrávamos tão ansiosos pela possibilidade de fazermos uma comida brasileira, do nosso jeito, que nem conseguimos dormir direito.

 

Dificuldades por causa da lingua

O tempero muito apreciado e utilizado pelos Egípcios é o cominho.  Acreditem, era inútil pedir algo sem cominho, não adiantava vinha com cominho.

Demos boas risadas nas ocasiões que fazíamos algum pedido aos garçons em restaurantes, lanchonetes ou hotéis. Entre tantas outras situações, uma delas, aconteceu quando ainda morávamos no hotel. Todos os brasileiros do programa estavam hospedados no mesmo andar. Como o grupo retornava da fábrica de volta do trabalho com muita fome, ao chegarem ao hotel, no mesmo horário, o andar inteiro dos brasileiros pedia o mesmo sanduíche o “cheese chicken”. Tornou-se um hábito e uma preferência geral, o cozinheiro do hotel já estava acostumado com a rotina da preparação de tantos cheese chicken todos os dias. Ninguém enjoava! Depois de um longo período repetindo aquele hábito, um belo dia, fomos surpreendidos com a recusa do pessoal da copa que estranhou nosso pedido, sob alegação     que não existia aquele sanduíche, e que ele inclusive, nunca tinha feito parte do cardápio do hotel. Ninguém entendeu nada. Assim, tivemos de ficar sem os nossos adoráveis “cheese chicken”.

Toda vez que tínhamos que nos dirigir a uma farmácia com intenção de comprar algum medicamento, às vezes era necessário para que fossemos compreendidos se fazer determinados gestos que se tornavam cômicos. Era a maior gozação entre os brasileiros.

 

O chá preferência nacional

O chá é a preferência nacional. Por toda parte em cantos imagináveis e inimagináveis, a qualquer tempo e espaço, é hora de se tomar chá.  Cansei de presenciar o guarda de trânsito bebendo o seu chá ou atravessando com a sua bandeja de chá entre os carros no meio do trânsito. Outra situação presenciada com freqüência, de certa forma engraçada, acontecia nas ocasiões que o guarda bloqueava o trânsito. Os motoristas ficavam ameaçando de arrancar os carros, assim sem alternativa, o guarda acabava liberando os carros fazendo de conta que era realmente a sua intenção liberar os carros naquele momento.

 

O Bakixixi

À medida que o tempo passava íamos aprendendo um pouco da vida local. Nada parecia funcionar no Cairo sem o tal “bakixixi”, a “gorjeta”, haja bakixixi! (Moabi = Zelador). O moabi do meu prédio, este ai, era um expert, um PHD em criar situações para garantir seu bakixixi. Imaginem, ficávamos ansiosos (sem internet) para receber cartas do Brasil, assim que o carteiro entregava as cartas ele as escondia para trocá-las conosco por bakixixi. Nas ruas os tomadores de conta exerciam a mesma pressão por causa do bakixixi.

Peculiaridades do local

Um fato curioso acontecia quando ia pendurar alguma roupa no varal. Quando terminava de pendurar a última peça de roupa, a primeira, já estava seca. Era inacreditável. Creio ser por conta do ar seco do Cairo. Chuva era uma raridade, quando acontecia, à distância entre os pingos, possibilita a passagem entre eles sem nos molharmos. Lavar roupa sem amaciante nem pensar, a roupa ficava igual papel, chegava a trincar.

O inverno é bastante frio e o verão extremamente quente. No verão, nunca sabíamos qual era pior, deixar as janelas fechadas ou abertas por conta da intensidade do calor. Eventualmente acontecia um fenômeno “o ramassim” é uma tempestade de areia. O calor que precedia ao ramassim era distinto, possibilitava-nos anteceder o fenômeno.

Conheci Palestinos despatriados que sem opção moravam em um cemitério no Cairo. Senti muita pena ao saber a história de vida deles, tudo havia ficado para trás; familiares, terras, propriedades, história de vida, sem poder voltar e ainda estar vivendo em condições tão precárias no Cairo.

Seguindo os livros que comprávamos íamos explorando em loco os locais dos monumentos do Egito Antigo. A maior pirâmide Quéops, se a pessoa tiver claustrofobia possívelmente teria dificuldade de passar nos corredores de acesso, é estreito, teto baixo e extenso. Mas ao chegar às galerias principais, onde estão os sarcófagos, o desconforto desaparece. 

Cheguei a presenciar recém descoberta de uma múmia, tirei inclusive foto ao lado da tal múmia. Algumas faixas de sua mumificação estavam soltas, o que me possibilitou observar em detalhes; a pele do corpo estava escura de coloração preta, rígida como uma madeira consistente. Vi múmias de crianças no museu do Cairo que foram mumificadas com o pênis ereto.

Sem desrespeitar a cultura local, foi impossível olhar com uma visão de  uma mulher ocidental e humana que sou,  a conduta opressiva, e machista sobre a mulher muçulmana(85/86). Era discrepante o favorecimento do homem em detrimento da mulher. Ao homem, é considerado normal ter várias mulheres quantas ele puder sustentá-las, a mulher, é obrigada a acatar e ser monogâmica. Senti na pele o quanto a mulher muçulmana é tolhida em sua autonomia, em sua liberdade de expressão e de escolha. O trajar com galabias pretas e cheias de pano me parecia desconfortante e incompatível ao clima quente do local.

Em praias próximas, presenciei homens nadando de cueca todos bem à vontade, e mulheres nadando desconfortavelmente para se refrescar do calor abrasador, com galabias compridas pesadas e aquela tonelada de panos boiando ao redor delas.  Em meados dos anos 80, jovens adolescentes já trajavam calça jeans e saia, mas mantinham o véu em suas cabeças. O cabelo é considerado erótico, e as mulheres só podem mostrar seus cabelos a seus maridos. 

Os casamentos são aceitos somente entre dois muçulmanos. Uma amiga árabe sofria grande angustia por tantas imposições. Gostava de um rapaz não aceito pela família por não ser muçulmano, namorava outro rapaz  escolhido  pela família, que por sinal não gostava nem um pouco. Senti de perto o drama vivido pela minha querida amiga, minha vontade foi trazê-la para o Brasil e por fim a tanta opressão.

Desde o início me chamou atenção o excesso de buzina no trânsito. Mesmo sem ter nenhuma razão aparente à ordem parecia ser “buzine”.  Até cheguei a pensar que a buzina funcionava como um código de comunicação entre a população local.

A cerveja vendida na época no Cairo era sem álcool. Somente os estrangeiros podiam comprar nos supermercados mediante a apresentação do passaporte.

 

Revolta contra Mubarak versão 1.986.

 

Aquela manhã me pareceu ser uma manhã festiva. Havia muita agitação nas ruas, um clima distinto, uma movimentação excessiva de carros e pessoas além das famosas buzinas. Fiquei ali na varanda observando e imaginando que data festiva estaria os egípcios comemorando?

 

Como estrangeiro não estando em seu ambiente familiar às vezes o que vemos a nossa frente pode nos passar uma falsa impressão dos fatos, e foi exatamente o que conclui quando o telefone tocou... Era o meu marido alertando-me para que evitasse sair de casa e que só o fizesse para buscar uma amiga nossa que não tinha telefone em casa, haveria rumores que estava tendo grande tumulto no centro da cidade (na época não havia celular). Nossa! E eu pensando que era uma festa! Que mico!

Ao descer de elevador e alcançar a rua em frente ao prédio, alguns policiais se aproximaram de mim. Até ai não estranhei, pois naquele local sempre tinha policiais 24 h/dia, para darem guarda a um vizinho nosso que era protegido do Kadafi (da Líbia). Conversando comigo em árabe perceberam que eu era estrangeira e embora tenha percebido que eles não queriam me deixar sair fiz não entender. Dei uma de estrangeira desentendida entrei no carro arranquei e virei à esquina no final da rua e peguei a avenida principal.

Depois de andar alguns quarteirões nesta avenida, tamanho foi o meu susto quando me deparei com tanques de guerra impedindo a passagem. Vocês podem imaginar qual teria sido a reação de uma brasileira, não estamos acostumados ver tanques de guerras nas ruas, ainda mais há 25 anos atrás. Ocorreu-me que o povo árabe não tinha tido um histórico pacífico como nós brasileiros. Foi inevitável pensar que havia estourado uma guerra, e minhas pernas tremeram. Estar em terras que não é sua pátria em situação de conflito não é nada confortável e me causou muita insegurança. Os soldados dos tanques me pediram para parar o carro e fizeram inúmeras perguntas; para onde estava indo, o que fazia no Egito, qual a minha nacionalidade? Pediram meus documentos, carteira internacional de motorista, e o passaporte. Depois de trocarem algumas palavras entre eles em relação as minhas respostas depois de algum tempo me liberaram com a ressalva que deveria me dirigir para minha residência, enfim que me recolhesse.

Imaginem o meu estado quando cheguei à casa da minha amiga, tremia igual vara verde. Não sabia exatamente a dimensão da gravidade do que estava acontecendo. As informações eram poucas, notícias censuradas pelo governo. Depois de colocar minha amiga brasileira a par dos acontecimentos, pegou roupas para ela e o marido, e juntas fomos para minha casa. Escolhemos na volta um caminho secundário alternativo para evitar os soldados/tanques.

Em quanto isto em outra extremidade da cidade, o motorista árabe da fabrica onde os brasileiros trabalhavam, resolve quebrar o bloqueio e levá-los para casa. No caminho ao longo da Av. Corniche que margeia o Rio Nilo, estava um tumulto só, presenciaram ônibus queimados, tiros, prédios saindo fumaça, tanques, e veículos militares pra todo lado. Ao alcançarem uma barreira que bloqueava a passagem o motorista árabe disse ao soldado que era um general brasileiro visitando o Egito. Assim conseguiram passar, adiante o tumulto continuava, chegaram a ver barracas de soldados no meio do deserto que servia de acampamento. Enfim, depois de tanta insegurança e medo, conseguiram atravessar a cidade superar as adversidades que foram deparando e chegaram a casa Sá e salvos. Só depois da chegada de meu marido em casa e que pude me interar mais da atmosfera local.

Os dias seguintes foram de incerteza e insegurança, havia grande corrida aos supermercados por conta da ameaça de racionamento de comida. O aeroporto permaneceu fechado por um tempo. Esta medida foi à pior de se conviver, conclui-se caso precisássemos deixar o Cairo em uma emergência como faríamos com o aeroporto fechado?

Medidas se sucederam o governo Mubarak estabeleceu o “toque de recolher”, significava que a partir de um determinado horário ninguém podia sair às ruas. Com as notícias censuradas, íamos tomando conhecimento da dimensão dos acontecimentos pelo que íamos vivenciando

Certamente estamos falando de um conflito contra o governo do presidente Mubarak que há 25 anos atrás já vinha dando sinais de insatisfação pela população do Cairo. Rumores justificavam o conflito; aumento por parte do presidente Mubarak para mais um ano o período do serviço militar obrigatório de 3 anos para 4, desavenças entre policiais civis e militares, e pelas péssimas condições de trabalho.   Mas, o serviço de inteligência de Mubarak sempre esteve muito enraizado na sociedade. A população vivia reprimida com medo de expressar suas opiniões, por isso poderia acarretar perseguições, prisão e até tortura. Manifestações de descontentamento eram compelidas e abafadas pelo Governo Mubarak.

Nos dias de hoje entre outras acusações, Mubarak esta sendo julgado pela morte de mais de 3.000 militares ocorridos naquela época, durante o conflito descrito aqui. Promotoria investiga Mubarak, o ditador teria ordenado um massacre contra oficiais que protestavam em 1986...

“O procurador-geral egípcio, Abdel Meguid Mahmoud, abriu uma investigação para averiguar o envolvimento do ex-ditador Hosni Mubarak com a morte de mais de 3.000 policiais durante ações repressoras em 1986, informou o advogado das vítimas.

Segundo o acusador Shehata Mohammed, na ocasião, as Forças Armadas usaram helicópteros de guerra e aviões de combate para reprimir manifestações de agentes policiais da Segurança Central, que protestavam contra um aumento do tempo de duração do serviço militar - de três para quatro anos. "Mubarak ordenou às Forças Armadas que bombardeassem os manifestantes", acusa Shehata.

Ainda, segundo ele, além do ex-ditador, vários dirigentes militares da época, estariam envolvidos nessa repressão. Os protestos não eram espontâneos, mas planejados por redes que divulgaram o rumor sobre o aumento da duração do serviço militar com a intenção de criar problemas para o general Ahmed Rushdi, à época ministro do Interior, reconhecido por sua luta contra a corrupção, destacou o advogado.

Shehata, que apresentou esta denúncia contra Mubarak recentemente no Tribunal do Centro do Cairo, afirmou que, Rushdi ainda está vivo e que seu testemunho será importante no processo judicial.”

Histórias como esta contada aqui, servem de exemplo para ditadores como Mubarak, Kadafi, e outros tantos. O poder não lhes faz deuses, todo abuso sem limite trará algum dia a prestação de contas com o que é justo. Mesmo que demore 30 anos para ocorrer e acontecer, como a realidade vem nos provando no caso do ditador militar Mubarak, deposto e julgado. Acreditem! A justiça tarda, mas não falha.

 

Tenho grande apreço pelos egípcios que é um povo acolhedor, simples, hospitaleiro, conquistaram meu coração. Mesmo estando hoje, tão longe geograficamente, torço para que com a queda de Mubarak, os egípcios venham a encontrar e alcançar a condição que buscam e merecem.

 

Vânia Tx. Souza

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Autor: Vânia Tx. Souza


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