Terras de sombras: projeto Vietnã: eu / outro



Introdução

Para entender um pouco melhor o contexto empregado por Coetzee em sua obra “Terras de Sombras”, antes de tudo se faz necessário entender um pouco sobre a teoria pós – colonialista inglesa. Como sabemos o pós-colonialismo é, atualmente, um termo utilizado para descrever toda a cultura produzida desde o início da colonização até os dias de hoje. A teoria pós-colonial, aplicada na literatura, portanto, analisa a literatura produzida pelos povos colonizados desde antes do período de independência, e as influências que o processo colonial trouxe para as regiões e povos colonizados. A teoria pos – colonial pode ser identificada em três períodos, no início a produção literária das colônias eram feitas pelos viajantes, administradores soldados e suas esposas que eram representantes das colônias. Os Estudos Culturais abrangem um vasto campo de estudos. Dentre eles encontra-se a teoria pós-colonial, que enfoca as influências sofridas pela cultura dos povos colonizados, desde o princípio da colonização até o momento atual. A crítica pós-colonial abrange desta forma, a cultura e a literatura que, como produções humanas, foram afetadas pela dominação imperial européia de forma significativa. O objetivo desta modalidade crítica é desvendar os efeitos desta dominação espelhados pela literatura.

  No início, a produção literária das colônias era realizada por viajantes, administradores, soldados e suas esposas, pelos representantes da colônia. Os textos tratavam, basicamente, da descrição da colônia, do ambiente físico, dos costumes indígenas, mas com clara subjetividade de seus escritores que acabavam, quase sempre, denotando no discurso a ideologia colonizadora européia que depreciava os costumes locais. No segundo momento a literatura produzida nas colônias era supervisionada pela metrópole, sendo produzida por sujeitos coloniais que haviam sido educados na metrópole e que utilizavam à língua européia, acabando por reproduzir, também, a ideologia do império. Já o terceiro momento da produção literária foi aquele produzido por sujeitos coloniais que afastarem-se dos padrões e da ideologia ditados pela metrópole, o que acabou por iniciar um novo tipo de literatura pós-colonial, na medida em que buscava denunciar os problemas decorrentes da colonização. A abrangência da teoria pós-colonial permite a observação da maneira como os colonizados eram tratados, assim como a verificação das estratégias de colonização utilizadas pelos colonizadores e do binômio Outro/outro que cerceiam a relação entre sujeitos colonizadores e colonizados.

            Outro fator importante a ser destacado é a questão da Apartheid regime que influenciou a África do Sul por um longo período. Apartheid (significa "vidas separadas" em africano) era um regime segregacionista que negava aos negros da África do Sul os direitos sociais, econômicos e políticos.  Embora a segregação existisse na África do Sul desde o século 17, quando a região foi colonizada por ingleses e holandeses, o termo passou a ser usado legalmente em 1948. No regime da apartheid o governo era controlado pelos brancos de origem européia (holandeses e ingleses), que criavam leis e governavam apenas para os interesses dos brancos. Aos negros eram impostas várias leis, regras e sistemas de controles sociais.

O apartheid – regime de discriminação étnica, política e social que restringiu até a obliteração os direitos da população negra durante décadas na África do Sul – é considerado um dos maiores crimes do século XX. Teve a duração de aproximadamente 50 anos e durante sua vigência, o acesso à propriedade da terra e à participação política foi totalmente vedado aos negros e estes passaram a viver como segregados. O regime de apartheid deve ser visto no contexto de uma África marginalizada e privada de qualquer direito à voz ativa, visto que neste período, as leis governamentais e as instituições sociais eram inspiradas pelos brancos e visavam apenas a promoção destes.  Este sistema vigorou até o ano de 1990, quando o presidente sul-africano tomou várias medidas e colocou fim à apartheid.  Entre estas medidas estava à libertação de Nelson Mandela, preso desde 1964 por lutar com o regime de segregação. Em 1994, Mandela assumiu a presidência da África do Sul, tornando-se o primeiro presidente negro do país. 

Os anos pós-1994 foram marcados por profundas mudanças políticas e sociais. Apesar de ser lento e difícil o processo de reconstrução do país, as novas leis visavam resolver os problemas da crise racial. Neste contexto começa-se a notar uma inversão de atitudes, já que o negro começa a apresentar sinais de superação da exclusão a que foi submetido durante séculos. Contudo, embora as leis do apartheid já tivessem sido extintas, restou no país um legado de pessoas marginalizadas, sem moradia e educação. Além da necessidade de equilíbrio nas divisões do poder, como forma de diminuir as contínuas explosões de violência originária dos aparelhos ideológicos do apartheid, que marginalizou e excluiu o negro de toda sua condição humana. Além disso, a disparidade entre as classes sociais até hoje impedem o progresso e a convivência pacífica no país. A pobreza e a miséria se estendem por todo território, e a falta de controle sobre algumas doenças, notadamente a AIDS, assolam a população negra. Portanto, as conseqüências do apartheid revelam que o sonho de uma África do Sul não racista está longe de ser concretizado.

Devemos voltar nosso olhar também para os fatos relacionados à guerra do Vietnã, pois só assim saberemos o motivo que levou Coetzee escrever uma obra relacionada com este tema. A Guerra do Vietnã foi um conflito armado que começou no ano de 1959 e terminou em 1975. Na qualidade da primeira guerra televisionada, a guerra do Vietnã entra dentro dos lares americanos, trazendo-lhes continuamente à mente sua participação e responsabilidade na guerra.

 As batalhas ocorreram nos territórios do Vietnã do Norte, Vietnã do Sul, Laos e Camboja. O Vietnã havia sido colônia francesa e no final da Guerra da Indochina (1946-1954) foi dividido em dois países. O Vietnã do Norte era, comandado por Ho Chi Minh, possuindo orientação comunista pró União Soviética. O Vietnã do Sul, uma ditadura militar, passou a ser aliado dos Estados Unidos e, portanto, com um sistema capitalista. A relação entre os dois Vietnãs, em função das divergências políticas e ideológicas, era tensa no final da década de 1950. Em 1959, vietcongues (guerrilheiros comunistas), com apoio de Ho Chi Minh e dos soviéticos, atacaram uma base norte-americana no Vietnã do Sul. Este fato deu início a guerra.  Entre 1959 e 1964, o conflito restringiu-se apenas ao Vietnã do Norte e do Sul, embora Estados Unidos e também a União Soviética prestassem apoio indireto.

Em 1964, os Estados Unidos resolveram entrar diretamente no conflito, enviando soldados e armamentos de guerra. Os soldados norte-americanos sofreram num território marcado por florestas tropicais fechadas e grande quantidade de chuvas. Os vietcongs utilizaram táticas de guerrilha, enquanto os norte-americanos empenharam-se no uso de armamentos modernos, helicópteros e outros recursos. No começo da década de 1970, os protestos contra a guerra aconteciam em grande quantidade nos Estados Unidos. Jovens, grupos pacifistas e a população em geral iam para as ruas pedir a saída dos Estados Unidos do conflito e o retorno imediato das tropas. Neste momento, já eram milhares os soldados norte-americanos mortos no conflito. A televisão mostrava as cenas violentas e cruéis da guerra.  Sem apoio popular e com derrotas seguidas, o governo norte-americano aceita o Acordo de Paris, que previa o cessar-fogo, em 1973. Em 1975, ocorre a retirada total das tropas norte-americanas. É a vitória do Vietnã do Norte. O conflito deixou mais de 1 milhão de mortos (civis e militares) e o dobro de mutilados e feridos. A guerra arrasou campos agrícolas, destruiu casas e provocou prejuízos econômicos gravíssimos no Vietnã.

O Vietnã foi reunificado em 2 de julho de 1976 sob o regime comunista, aliado da União Soviética. O Vietnã foi o país mais vitimado por bombardeios aéreos no século XX. Caíram sobre suas cidades, terras e florestas, mais toneladas de bombas do que as que foram lançadas na II Guerra Mundial. Para tentar desalojar os guerrilheiros das matas foram utilizados violentos herbicidas - o agente laranja - que dizimou milhões de árvores e envenenou os rios e lagos do país. Milhares de pessoas ficaram mutiladas pelas queimaduras provocadas pelas bombas de napalm e suas terras ficaram imprestáveis para a lavoura. Por outro lado, aqueles que não aceitaram viver no regime comunista fugiram em precárias condições, tornaram-se boat people, navegando pelo Mar da China em busca de um abrigo ou vivendo em campos de refugiados em países vizinhos.

 O Vietnã regrediu economicamente a um nível de antes da II Guerra Mundial. Os Estados Unidos por sua vez saíram moralmente dilacerados, tendo que amargar a primeira derrota militar da sua história. Suas instituições - a CIA e o Pentágono - foram duramente criticadas e um de seus presidentes, Richard Nixon, foi obrigado a renunciar em 1974, depois do escândalo de Watergate. Nunca mais o establishment americano voltou a ganhar a integral confiança dos cidadãos.

 Então podemos afirmar que a literatura da África do Sul reflete as condições sociais e políticas do país. A transição da condição de sociedade colonial para pós-colonial é marcada na escrita dos primeiros escritores europeus ou sul-africanos filhos de europeus a escreverem no país e sobre o país.

Após termos percorridos uns dos principais contextos dos quais serão tratados por Coetzee em sua obra passamos agora descrever um pouco sobre a novela analisada “Projeto Vietnã” que esta na obra “Terras de Sombras” (Dusklands, 1974), nessa novela Jacobus Coetzee analisa a mentalidade comum da penetração e da exploração efetuadas através de guerras e de expedições que exploravam as colônias. “Projeto Vietnã”, narra-se a desintegração mental de Eugene Dawn, mitógrafo que escreve relatório sobre os métodos de propaganda americanos empregados na guerra do Vietnã.

 

Desenvolvimento

 

 No romance o personagem Eugene Dawn, relata a passagens de sua vida cotidiana e também a sua revolta contra a ordem de seu superior com relação ao ensaio que escrevera sobre a guerra do Vietnã: “Coetzee pediu – me para revisar meu ensaio. Para ele, está duro demais: Quer que fique mais suave, ou então ira elimina-lo”. (COETZEE, 1977, p. 11). A linguagem usada por Dawn na elaboração do ensaio não fora aceita por Coetzee por acha – la complexa demais para que as pessoas comuns pudessem entender. No entanto o que se percebe já na introdução do ensaio de Dawn o principal objetivo de seu texto era analisar a guerra psicologia sofrida pelas pessoas que participaram da guerra do Vietnã, pois de acordo com o autor a pior guerra era aquela sofrida psicologicamente, visto que esta não tinha como acabar. A culpa iria sempre perseguir os americanos. Na primeira das duas novelas em que se divide a obra, “Projeto Vietnã”, narra-se a desintegração mental de Eugene Dawn, mitógrafo que escreve relatório sobre os métodos de propaganda americanos empregados na guerra do Vietnã.

Quando Coetzee cria um personagem com a capacidade de escrever relatório sobre estratégias militares para a guerra no Vietnã dá ao próprio autor, Coetzee, a oportunidade de explorar a ironia desse discurso duplo, que diz objetivar a tutela dos povos asiáticos, mas recomenda sua destruição para assegurar sua subserviência e utilidade para as políticas prioritárias da nação americana.

Para Coetzee, o personagem da novela, as pessoas tinham uma forma “lenta” de entender os fatos, por isto não era possível escrever algo que eles não compreendessem. Para ele, como Dawn iria convencer as pessoas de sua visão dos fatos, com aquela linguagem difícil: 

Como você sabe, devido a seus contatos com eles, os militares enquanto classe, francamente falando tem raciocínio lento, são desconfiados e conservadores. Mas, afinal, são essas pessoas que você terá de convencer  sobre o acerto de suas recomendações. Acredito – me, não terá êxito se falar difícil. Nem terá sucesso se os abordar com espírito de totalidade, de foracidade intelectual que encontra em nosso debate interno aqui em Kennedy. ( COETZEE, 1997, p. 13).

 

Ao que se percebe dada passagem do texto é que o próprio autor era contra a linguagem elaborada, enfeitada e muitas vezes de difícil entendimento. Se o texto estava se referindo a um fato que havia acontecido realmente então teria que ser compreendido por aquelas pessoas que realmente tinha alguma ligação com a Guerra. As recomendações dadas por Dawn estavam relacionadas às modificações quanto ao programa de radiodifusão a fim de aumentar sua efetividade, ou seja, destruir a moral do inimigo. Como o personagem enfatiza, “a guerra psicológica é a função negativa da propaganda: sua função positiva é criar a confiança de que nossa autoridade política é forte e duradoura” ( COETZEE, 1997, p. 31). O mitógrafo criado por Coetzee parte do exame do fator que torna a constituição psíquica e psicossocial dos revoltosos resistentes à penetração dos programas americanos, a fim de sugerir estratégias mais penetrantes. Convencer para depois dominar, talvez fosse essa ideia de Coetzee.

Dawn considerava os vietnamitas como seres subservientes, se fossem um não eu, aqueles que não tinham vontade própria e nem poder de decisão. Na verdade, Dawn concebe o vietnamita como um não eu: não insolente, respeita hierarquias; ordeiro e meticuloso é certamente amante do asseio; afeito ao trabalho intelectual, Dawn orgulha-se de seu saber.

 As atrocidades cometidas contra os vietnamitas acabam por ser considerada pelos americanos como uma forma de punição por serem um povo inferior aos próprios americanos. Possivelmente, Dawn deveria usar um discurso linguistico que fosse capaz de encantar, mas ao mesmo tempo persuadir as pessoas que fossem ler o ensaio. A própria vida de Dawn era conturbada, o personagem não tinha um convívio familiar agradável, nem mesmo com seu filho Martin, pois acreditava que o filho e sua esposa Marilyn o atrapalhavam em seus momentos de estudos. Sendo assim, Dawn é apresentado em toda novela como sendo um homem amargurado, rancoroso, e até mesmo como sendo uma pessoa que não tem paz de espírito. O seu principal papel, no romance, era ser considerado o homem americano, o responsável pela guerra do Vietnã.

As fotos tiradas durante a Guerra do Vietnã são analisadas pelo mitógrafo durante o romance e a cada cena elas vão afetando ainda mais o psicológico do personagem que se consome em culpa por ver as cenas de brutalidades registradas naquelas folhas de papel. Como analisar fotos que trazem à mente a culpa, “a propósito disto, Dawn reflete: Não quero ver os filhos da América envenenados pela culpa”. “A culpa é um veneno negro”. (COETZEE, 1997, p.63).

             Em todo romance percebemos a tentativa de separação entre o Outro (americano) e o outro (os vietnamitas), no entanto o que se percebe dada narrativa é o  fato de que não existe uma maneira de se desvincular uma “entidade” da outra, porque para os americanos dos anos após a guerra do Vietnã restou a culpa de seus antepassados. A tentativa de apropriar - se de algo que não lhes pertencia, como terras, como também matar pessoas inocentes entre elas mulheres e crianças que não tinham nada e ver com as batalhas deixou marcas que jamais serão esquecidas pelo povo americano. E existe um meio bastante persuasivo que de tempos em tempos retoma e reafirma essa culpa que a televisão, as propagandas, as lembranças sempre voltam e perseguem de forma destruidora a mente das pessoas. Dawn reforça essa visão dos fatos,

Nos velhos tempos, eu costumava sentar na biblioteca sentindo a culpa negra zombando em minhas veias. Eu estava ficando tomado. Eu não era mais eu mesmo. Isso era insuportável. A culpa estava entrando em nossas casas através dos cabos de televisão. Nós fazíamos refeições sob o olho de vidro da besta brilhando no canto mais escuro. A comida saudável descia em nossas gargantas em poças corrosivas. Não era natural suportar tal sofrimento. ( COETZEE, 1997, p. 63).

                Com essas palavras do personagem, criado por Coetzee, podemos perceber o quanto os americanos se consideravam culpados após a guerra, porém essa culpa, esse sofrimento não passava nem perto daquela sofrida pela população do Vietnã. Porque sentir culpa era fácil se não sentiu na pele a dor a revolta, então essa culpa agora não tinha valor, pois não ia recuperar a dor e o sofrimento sofrido pelos vietnamitas. Em todo romance a sempre a questão do discurso duplo, e esse tipo de discurso acaba por abrir duas maneiras para se interpretar um mesmo fato. O olhar que se volta para texto com esse recurso nos faz perceber, em se tratando da literatura do pós - colonialismo. Um dos objetivos do pós-colonialismo é verificar que efeito produziu e produz a dominação européia do período moderno (século XV em diante) sobre a literatura e a cultura dos países colonizados. Para isso, não emprega somente um único método ou teoria, recorrendo a uma grande variedade deles.

 Tratando – se da questão do discurso nas obras do pos – colonialismo percebe que este, consiste num conjunto de afirmações através das quais conhece a realidade, organiza a existência e o lugar ocupado pelos indivíduos nas relações sociais, construindo a relação entre sujeito e objeto, colonizadores e colonizados, notaremos que o discurso tem sido elaborado de maneira a favorecer as elites dominantes. O discurso do poder colonial articula diferenças raciais e sexuais estrategicamente com o objetivo de colocar o “outro” na inferioridade, negando-lhe uma identidade original, uma singularidade. E isso no romance acontece quando Dawn se refere a sua esposa e seu filho como pessoas que serviam apenas para atrapa – lo nos mementos que estava escrevendo, assim o diz:

Minha vida com Marilyn tornou - se uma contínua batalha para manter minha tranquilidade mental contra os ataques histéricos e a pressão de meu próprio corpo inimigo. Preciso ter tranquilidade mental para fazer meu trabalho criativo. Preciso de paz, amor, alimento e luz solar; essas preciosas manhãs em que meu se descontrai e minha mente paira não devem ser desperdiçadas pelos choros e gritos entre Marilyn e seu filho. ( COETZEE, 1997, p. 19).

 

Essa passagem é bastante intrigante, porque se formos analisar com olhar voltado para os acontecimentos relacionados a guerra do Vietnã, iremos notar que o homem europeu não se preocupava nenhum pouco com as necessidades do sujeito colonizado, porque o que acontecia no momento da colonização era uma forma de apropriação. Uma tomada a força dão espaço do outro. Não se preocupavam quais eram as reais necessidades dos povos que viviam na colônia no momento da invasão. Assim era Dawn, ele estava apenas preocupado com o seu bem estar, com sua comodidade e não queria se incomodado. Existe toda uma ideologia voltada para suprir as necessidades do homem europeu.

             Desde as primeiras paginas do romance podemos perceber a questão da voz masculina, ou seja, o poder da voz patriarcal  no momento que Dawn recebe ordens de seu superior, Coetzee, e também nos momentosem que Dawnfala sobre a esposa e o filho. Para o personagem a esposa e o filho deveriam somente fazer aquilo que fosse satisfazer as suas necessidades e não a deles.

            Como o relatório de Dawn, sobre a Guerra do Vietnã, tinha como intuito fazer valer a “voz do pai” só que este pai não era uma pessoa, mas sim Os Estados Unidos que se considerava um pai bondoso, zeloso e a guerra fora apenas uma forma de castigar o povo que não pertencia a sua colônia. Por isso ao analisar as propagandas televisivas a voz paterna surgi como uma ordem dada para os americanos e estas tinha que obedecer, sem questionar. “Todas as propagandas que eram passadas na televisão o e no radio acabava por trazer de volta as “lembranças” que estava, talvez, adormecida”. Como sabemos toda propaganda passada na televisão tem como objetivo convencer o telespectador de alguma coisa, um fato, ou seja, tem o poder de persuadir; Dawn ressalta que,

Ao promover a guerra psicológica, pretendemos destruir a moral do inimigo. A guerra psicológica é a função negativa da propaganda: sua função positiva é criar a confiança de que nossa autoridade política é forte e duradoura. Com uma promoção eficaz, a guerra de propaganda desgasta o inimigo enfraquecendo sua base civil e o recrutamento, e deixando seus soldados inseguros em combate e propensos a desertar mais tarde, ao mesmo tempo em que fortalece a lealdade da população. Nunca é demais enfatizar seu potencial político – militar. (COETZEE,1997, p. 31).

 

Se o país que possui maior poder aquisitivo tem nas mãos a chance dominar, então porque não o fazê – lo? Os Estados Unidos tinha suas formas de atacar as colônias que colonizava que era através do poder que sempre teve, porém depois de anos dessa dominação, a propaganda veio como forma de punição para os americanos que sempre se consideravam tão poderosa. Atacar o psicológico das pessoas fez com estes não conseguissem ter paz. Assim acontecia com Dawn, seu comportamento ia se alterando ao longo do romance porque o a cada contato que tinha com os horrores da guerra o faziam se atacado interiormente. Seu psicológico estava sendo afetado. E se isto acontecia com o personagem de Coetzee, então certamente acontecia com os próprios americanos. O que inicialmente pode ser tomado como certa estranheza comportamental repete-se com crescente intensidade.

Dawn, em seu relatório, faz algumas recomendações para que os Estados Unidos pudessem continuar dominando, posteriormente, a guerra os vietnamitas sem o uso da violência física, que seria por meio da voz paterna. Para ter um total domínio deve se levar em conta o comportamento dos indivíduos, pois estes sempre terão seu meio de sobrevivência e querer acabar com isso a força, não iria funcionar, “é um erro pensar nos vietnamitas como indivíduos, pois sua cultura os prepara para subordinar o interesse individual aos da família, do grupo ou da aldeia. Os impulsos racionais de interesse próprio têm menor importância que o conselho do pai e irmão” (COETZEE, 1997, p. 32). Com isso poderia conseguir total dominação sem ter o controle o conhecimento da sociedade, de sua maneira de viver. O relatório preparado pelo mitógrafo prossegue registrando como a voz paterna é um recurso já de longa tradição na propaganda, e como, nos Estados totalitários, é identificada com a voz do Líder. O “pai do país” em tempos de guerra exorta seus filhos ao sacrifício patriótico e, em tempos de paz, à maior produção. Baseado nesse raciocínio, Dawn propõe que se permita aos vietnamitas operar a voz fraterna, enquanto a América opera a voz do pai,

A voz do pai se expressa apropriadamente vinda do céu. Os vietnamitas a chamam de a “morte sussurrante” quando ela provém dos B – 52, mas não há motivo pelo qual ela não possa vagar pelas ondas do rádio com igual devastação. O pai é autoridade, infalibilidade, ubiqüidade. Ele não pede. Ordena. ( COETZE, 1977, p. 33).

 

O que se percebe ao longo do romance com relação à “voz de comando” é a questão da união, os vietnamitas eram unidos, daí por que o protagonista recomenda que a voz paterna derive da regra básica na guerra psicológica no sul asiático: fragmentar e individualizar, romper os vínculos grupais. A partir daí poder-se – ia obter a submissão absoluta, que corresponderia ao esmagamento, pelo pai, da rebelião dos filhos. Somente então poderia o pai mostrar seu lado mais benévolo: “O pai não pode ser um pai bondoso até que seus filhos tenham se ajoelhado diante de sua mão” (COETZEE, 1997, p. 37). Em seu relatório Dawn procura separar a todo o momento a seu “eu” pessoa, com o “eu” que esta sendo obrigado a escrever sobre os terrores da guerra do Vietnã, no entanto o que se percebe é  que o personagem não consegue fazer essa distinção, visto que, acaba sendo torturado psicologicamente durante suas pesquisas. Um exemplo disso são as fotos que integram o relatório sobre o Vietnã, porém, está longe de mostrar a América como o pai bondoso. Porém as fotos que Dawn carrega para fazer suas anotações para elaborar seu relatório sobre a Guerra do Vietnã mostram que a América cometera violentos ataques contra vietnamitas e, portanto, estão longe de mostrar como queria parecer, um pai bondoso que se preocupa com os seus “filhos”. E além do mais a batalha não deixara marcas apenas nos vietnamitas, mas também nos americanos e isso aparece nessa fala de Dawn:

Não há duvida de que sou um homem doente. O Vietnã me custou demais. Uso a metáfora da ferida dolorosa. Algo está errado em meu reino. Dentro do meu corpo, debaixo da pele, dos músculos e da carne que me guarnecem estou sangrando. Às vezes acho que a ferida é em meu estômago, que ela sangra lodo e desespero [...]. Outras vezes imagino uma ferida gotejando em um ponto da caverna atrás dos meus olhos. Não há duvida de que preciso descobri – la e tomar os devidos cuidados, senão morro por causa disso. [...].Propriedade é um valor importante, mas, afinal de contas,a vida é mais importante. (COETZEE, 1997, p.45).

 

O fato é se para o personagem a sua consciência não o deixava em paz, e se Coetzee o criou com o intuito de demonstrar e criticar a sociedade americana envolvidas no conflito, então percebe - se que o conflito interior acaba por dominar o exterior. Visto que, ao longo do romance a personalidade do personagem fica cada vez mais abalada com as os resultados encontrado pelo mesmo. E isso acontece tanto nas imagens encontradas nas fotos, quanto nas propagandas que assistia na televisão. Desde o inicio do romance a forma exacerbada pela qual o protagonista reage ao pedido para que revise seu ensaio sobre o Projeto Vietnã, e sua exagerada apreensão quanto à entrevista que terá com seu superior no dia seguinte, deixam claro que é portador de certo desequilíbrio.

Quando partimos para o final do romance percebemos que a identidade do personagem Dawn começa a se transformar percorrendo por caminhos que antes julgava ser o dominador. Quando se separa da sua esposa Marylin e resolve levar consigo seu filho Martin, não estava preocupado com a segurança do menino mais sim em te – lo ao seu lado para domina – lo e faze – lo fazer a suas próprias vontades. Nessa perspectiva, percebemos que da mesma forma que a América não fora um pai bondoso para os asiáticos, ele também não estava sendo para seu filho, porque o havia levado de junto com sua mãe sem a sua vontade. E aquela criança que antes só servia para atrapalhar sua vida nos momentos em que queria escrever seu relatório, agora era sua única companhia:

Martin brinca calmamente no chão ao meu lado. Ele se adaptou bem a essa vida de motel sem queixas. Nós dormimos juntos na cama de casal, cada um do seu lado. Ele gostou desse arranjo e eu o tolero por causa dele, embora crianças sejam companhias que tiram o sossego do sono. (COETZEE, 1997, p.50).

 

Agora Dawn se sentia bem ao lado do filho, no entanto em outros momentos o desprezava e nem ao menos brincava com o menino. Quando já não tinha mais ninguém que pudesse acalmar sua entender o seu desespero, ou até mesmos a sua loucura, via no silêncio inocente do filho a única paz que ainda lhe restava. Sendo que esta suposta paz poderia ser vista também como uma forma de dominação que antes não possuía sobre o filho, por causa dos cuidados e da intervenção da mãe. Até o momento que ainda tem seu filho ali sobre seu olhar, sua dominação Dawn consegue ter domínio contra sua “loucura”, porém a partir do momento que vê sua esposa chegando para buscar o filho juntamente com a polícia, acaba por perder o controle. A chegada da polícia e de Marylin representava para Dawn uma forma de invasão daquilo que pensava já ser seu. Não queria perder o filho.

No momento que a polícia invade o quarto, pode ser comparado com a questão do colonizador ao chegar à colônia e entrando a força para dominar. O personagem se sente tão coagido quanto os povos que estavam nas colônias e não podiam fazer nada para impedir que o colonizador entrasse, “uma chave está deslizando para dentro da fechadura: eles têm uma chave conseguida na portaria”. (COETZEE, 1997, p. 55). Todos os tormentos que perseguiam Dawn ainda não o faziam perceber o seu envolvimento com a guerra, porque a sua mente começou a ser afetada no momento que começará a escrever o relatório e se via analisando as fotos ou reportagem a respeito dos fatos. Ele não havia conseguido fazer a distinção do “Eu” e do “outro”, e as consequências disto estavam vindo à tona. À medida que a tensão emocional cresce, Dawn desenvolve mania persecutória também em relação à esposa, de cuja fidelidade suspeita, e sobre quem projeta a responsabilidade pro seus fracassos. Não reconhece ainda, porém, seu envolvimento com a guerra como a fonte de seu desequilíbrio.

            Dawn, assim como o colonizador, não aceitava os direitos do “outro” com relação aos fatos. Queria que tudo fosse feito de seu jeito. O colonizador quando chegava numa colônia também não aceitava as diferenças e vontades do povo que vivia ali, querendo a todo custo impor a sua língua, o seu discurso a sua cultura, porque queria dessa forma dominar totalmente o “outro”, pois acreditava que era o único que tinha uma cultua capaz de se dominar e conquistar. Quando o colonizador chagava numa colônia já esperava que a forma de resistência fosse através da força, da luta corporal e se sendo dessa forma então já sentia o vitorioso, porque o povo colonizado não era preparado para lutar contra as armas dos americanos.

            Ao final do romance quando Dawn esta internado numa clínica psiquiátrica e ali tenta fazer amizade com as pessoas que trabalham ali, no entanto, ninguém dá atenção. Isso lhe causa certa insegurança, mas também lhe mostra o quanto ele havia sido imprudente durante o tempo que esteve som sua família. Nessa época não dava espaço para sua esposa e seu filho se aproximarem dele. Causando sempre a divisão entre o “eu” que era Dawn e o “outro”, sem valor sem perspectivas. O primeiro contato com os funcionários foi de indiferença:

Sou insignificante, mas, por outro lado não sou uma pessoa vil. Nos primeiros dias aqui tentei fazer amizade com o guarda do meu corredor, para que ele viesse, a saber, quem sou realmente e quem fui; mas é difícil se aproximar dessas pessoas. ( COETZEE, 1997, p..60).

 

Então, o personagem sabia de sua condição de inferioridade, por isso não culpava os outros por esse momento da sua vida. Mesmo não se culpando por ter esfaqueado o filho num momento de loucura, percebia que não podia mais impor sua presença e preferia assim se calar e ocupar apenas seu lugar de internado, ou até mesmo de doente. Porque naquele lugar não passava de apenas um louco que por causa de seu envolvimento com a guerra do Vietnã acabara por perder o equilíbrio.

O que se nota aqui uma cisão entre o pensamento e a sensibilidade. A contaminação do primeiro pela brutalidade da guerra, pela violência também onipresente na própria sociedade descarrega-se na única forma de cópula possível: a penetração por meio de um objeto perfura cortante. A loucura esta também na falta de empatia em relação ao outro. A loucura de Dawn; torna-lhe impossível se colocar no lugar do outro. No episódio do Loco Motel, por exemplo, não há qualquer menção a dor, qualquer alusão ao sofrimento do filho. Sua razão está inconsciente da doença que a aflige – a violência – e se vê independente, autôma. Ele delira, mas se enxerga como coerente. Mesmo em seus delírios não se culpava pela crueldade que havia cometido contra seu filho.

O que se percebe ao final do romance é que o próprio personagem já não suporta a vida que esta levando e precisa buscar uma nova forma para viver. Quer a todo custo se livrar das lembranças tanto da Guerra como do crime que cometera contra seu próprio filho. Queria ter uma chance para ter uma nova vida. Sabe que ficará para sempre marcas em sua vida, mas quer encontrar uma forma para esquecer:

A hipótese que eles testam é que o contato íntimo com o projeto de guerra me deixou calejado para sofrer e criou em mim uma necessidade de soluções violentas para problemas da vida, ao mesmo tempo infectando – me com sentimentos de culpa que se manifestaram em sintomas nervosos. [...] eu só me entreguei a Guerra do Vietnã porque queria vê – la terminar. Eu queria um fim par ao conflito e a rebelião, de forma que eu pudesse ser feliz, para que todos nós pudéssemos ser felizes. (COETZEE, 1977, p. 63).

 

Nesse momento o que fica aparente é que mesmo estando em desvantagem, porque estava preso, o personagem não consegue fazer a diferenciação entre o “Eu” e o “outro”, a todo o momento pensa apenas em seu bem estar e não se preocupa com o “outro” com tudo aquilo que sofrera. Para o personagem não importava todo sofrimento que os vietnamitas haviam passado, mas sim o seu próprio interesse. Queria apenas recomeçar sua vida e esquecer tudo que presenciara, “estou ansioso para confrontar a vida uma segunda vez, mas não estou impaciente para sair”. (COETZEE, 1997, p.64).

 Ao finalizar o romance percebemos que a mensagem que Coetzee procura nos mostrar é que é impossível ferir o próximo sem ferir a si próprio. Assim aconteceu na guerra do Vietnã, os americanos ao tentar destruir um outro país acabaram por levar consequências para o futuro que mesmo tendo passando anos após o seu término deixou ferida que talvez jamais vão se cicatrizarem.

 

Conclusão

 

Enfim, finalizar este estudo sobre o romance “Projeto Vietnã” da obra “Terras de Sombras” do autor J. M. Coetzee, com o olhar voltado para a tentativa de desconstrução do binarismo Eu/outro percebemos que a formação desses sujeitos envolve várias dicotomias entre elas a questão de estar cada um preocupado consigo mesmo. E como nos afirma Bonnici e Zolin( 2005, p.230) para que se construa um sujeito seja ele colonizador ou não é necessário seguir uma hierarquia;

A opressão, o silêncio e a repressão das sociedades pos  - coloniais decorrem de uma ideologia de sujeito e de objeto mantida pelos colonizadores. Nas sociedades pos – coloniais o sujeito e o objeto pertencem a uma hierarquia em que o oprimido é fixado pela superioridade  moral do dominador. (BONNICI e ZOLIN, 2005, p. 230).

 

Os estudos pós-coloniais não constituem propriamente uma matriz teórica. Trata-se de ma variedade de contribuições com orientações distintas, mas que apresentam como característica comum o esforço de esboçar, pelo método da desconstrução dos essencialismos, na referência epistemológica crítica às concepções dominantes de modernidade.

Um dos principais fatos presentes em todo texto é a questão da culpa que persegue os americanos em relação aos vietnamitas, a guerra que causou horrores na vida das pessoas envolvidas no conflito deixou cicatrizes por toda vida. A todo o momento são feitas reportagens, documentários sobre o conflito e isso faz com que esse episódio tão marcante não seja esquecido. É por meio da dor, do sofrimento indizível, que se procura quebrar a alma do indivíduo, a sua construção psíquica da subjetividade. A linguagem usada por J. M. Coetzee no romance mostra apenas a valorização da culpa do “Eu”, ou seja, do personagem de Dawn, em nenhum momento é usado um discurso a favor do “outro”, de sua família.

            Por ser o romance baseado num fato histórico existem sempre passagens que são apenas fictícias e outras que fazem realmente parte da realidade. No mundo da Literatura há sempre essa fusão do real e da ficção. Por isso, nem sempre se podem afirmar com precisão os fatos estudados.

             O que se percebe a respeito da guerra do Vietnã e do Apharteid com relação aos acontecimentos vivenciados pelo personagem do romance é que a Guerra deixou marcas que hoje ainda demonstra através dos jornais, da televisão e de todos os meios de comunicação que suas consequências dura até os dias atuais. Já q questão do Apharteid, que era pra ser uma forma da população negra reivindicar direitos, na verdade ficou apenas no papel e não foi cumprida totalmente

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Autor: Simone Valentim


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