Repetições ao meio-dia



Repetições ao meio-dia

 

O lema da CBN é tocar a notícia. O “repórter CBN” vai ao ar a cada meia hora. É natural que a intervalos tão curtos muitas notícias saiam repetidas. É natural que, com o passar do tempo - a CBN está completando vinte anos  – a emissora  desenvolva, assim como se desenvolvem as lesões por esforços repetitivos, uma visão peculiar   do   significado das repetições.

O que não me parece de bom aviso, no entanto, é que o ouvinte, com o passar dos anos, se deixe aculturar e, sem perceber, incorpore os mesmos condicionamentos da emissora.   

Para evitar a  contaminação, o ouvinte deve, antes de ligar o rádio, recorrer a uma teoria e, ato contínuo, testá-la a céu aberto.

Mais ou menos assim:  repetir, isto é, tornar a fazer, pensar, dizer ou escrever alguma coisa,  salvo, é claro, o segmento das repetições neuróticas, representa ser um ato elaborado ao comando de  sensações.  

Dito de outro modo: toda repetição saudável estriba-se numa dialética real.  

É o que ocorre no teatro quando as pessoas aplaudem e pedem bis.  O artista canta de novo. Repetição saudável. Dialética real. 

A televisão utiliza maciçamente a técnica do  replay,  na convicção de que o torcedor anseia por rever o lance. Repetição saudável.  Dialética real.

O apostador joga na mega-sena. Marca seis números e assinala a opção   da “teimosinha” por três concursos, porque aspira melhorar de vida. Repetição saudável.

Dialética real.

O poeta repete o verso, para potencializar a expressividade. Repetição saudável.

Dialética real.

O xamã repete o ritual, para facilitar a migração das almas. Repetição saudável. Dialética real.

Assim embasado, o ouvinte estará apto a perceber que, a certa altura,  as repetições na CBN  discrepam do modelo  teórico levantado. A fórmula “repetição saudável/ dialética real”, presente nas edições do “repórter CBN”,   transfigura-se ao meio-dia, quando, no correr de poucos minutos, uma notícia chega a  repetir-se  por quatro vezs: no “repórter CBN”, nos comentários do Âncora, nas “manchetes” e nas “reportagens”.

Se ainda não estiver contaminado, o ouvinte estranhará aquela overdose informativa e, com muita calma, verificará o seguinte: 1) que, no “repórter CBN”, de meia em meia hora, as repetições, quando as há, estribam-se numa dialética real, estruturada nas  sensações filantrópicas do redator, que repete a notícia, imaginando a possibilidade de o ouvinte ter perdido a edição anterior, ou convencido de que a repetição será educativa; 2) que, assim nutridas, as repetições do “repórter CBN” credenciam-se ao galardão de repetições saudáveis; 3) que, no entanto, ao meio-dia, como Cinderela à meia-noite, as repetições na CBN mudam de aspecto. Ainda hospedam  uma dialética. Ainda contam uma história. Mas   já se distanciam da efetividade cósmica, da concretude sedimentar da existência.   

Com efeito, repetir a mesma notícia por quatro vezes  no correr de poucos minutos, convenhamos, beira os domínios da fantasia, da pantomima ou da simulação;  4) que,  ao meio-dia,  as repetições na CBN ignoram a dimensão material do mundo, da qual o ouvinte participa, e negligenciam  a natural aversão do ser humano pelos inchaços, pletoras e intumescências; 5)  que, ao meio-dia, as repetições na CBN estruturam-se  não mais em função do ouvinte, mas ao sabor de uma  dialética virtual, ou seja, à feição das possibilidades.  As repetições do meio-dia na CBN  acontecem pela única e singela razão de que são possíveis de acontecer. Possíveis de acontecer, porque existem espaços  que precisam ser ocupados, justamente os espaços virtuais do Âncora, das “manchetes” e das “reportagens”.

Vou parar por aqui.  Começo a me preocupar com o ouvinte que, a estas alturas, com justa razão, deve estar apavorado. Afinal o triunfo das representações sobre a realidade é a catástrofe dos tempos pós-modernos.

Antes de me retirar, porém, dou-lhe um último conselho: ao meio-dia, ligue o rádio e  ouça apenas o “repórter CBN”. Despreze o resto. Pague na mesma moeda.

  


Autor: Osorio De Vasconcellos


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