Feliz natal



                                                           

Feliz Natal

 

      Às vezes nos deparamos com fatos que embora pertençam à nossa intimidade, não os conhecemos de todo. Foi o que me ocorreu há poucos dias, numa abordagem desconcertante, tanto pela importância quanto por haver passado despercebido por tantos anos.

      - Já nos conhecemos há algum tempo e não tenho notado qualquer interesse da sua parte pelas coisas natalinas. Até nas confraternizações há um ceticismo disfarçado. Será isso algum trauma? Alguma convicção?

      Essa observação levou-me a refletir. Em verdade, esse clima natalesco não me agrada e somente agora me dei conta. Também me surpreendeu que mesmo os empolgados têm lá seus desencantos. São as confraternizações que não confraternizam; os presentes e prendas que somos obrigados a ofertar sem sequer conhecer os gostos do beneficiário; as inutilidades que recebemos em troca; os discursos sobrecarregados de aforismos plagiados e pretensões impossíveis; a roupa nova do fim-de-ano. Ah! A roupa!  Talvez a causa da desmotivação.

      Essas festas que o convencionalismo exige roupa nova já me causaram complicações e possíveis seqüelas.

                                                            ~~~

      Dez irmãos vivendo numa barranca às margens do Rio São Francisco. Cinco meninos e cinco meninas, dentre eles eu, segundo homem da prole. Meu pai exercia os ofícios de carpinteiro, lenhador e agricultor de subsistência. Minha mãe cuidava da casa e dos filhos o que já era uma tarefa estafante e, em épocas de festa, varava noites numa máquina de costura a manivela, sob a luz tênue de um candeeiro a querosene.

      O campanário do Convento de São Francisco, em Penedo-AL, tinha para aquela gente ribeirinha importância especial. Da nossa morada ouvia-se com nitidez o repicar dos sinos, cada um com som diferente, ora se alternando, ora repicando todos em conjunto. Umasonoridade mágica que ainda ecoa em minhas recordações. Esses sons transmitiam mensagens codificadas pela “universalidade da música”.  Alguns deles foram interpretados pela minha mãe, que como nós também se embevecia com aqueles recursos harmoniosos. Sabíamos, por exemplo, quando falecia alguém importante, pelas badaladas de um sino murmurante, de som grave e compassado, durante todo o dia, como lágrimas rolando uma a uma. Quando o falecido era menos importante, esse repicar era de alguns minutos, apenas enquanto escoava o cortejo fúnebre.

       Incluo entre as reminiscências mais presentes do tempo em que vivi naquele paraíso, o repicar firme e alegre daqueles sinos, todo fim de tarde. Uma sonoridade bela, hipnotizante, que coincidia com os últimos raios de sol cintilando sobre as águas mansas do Velho Chico. Nesse instante minha mãe punha-se de pé, meu pai descobria-se, postava o chapéu de palha sobre o peito e ambos assumiam semblante contrito. Era a hora da Ave Maria. Minutos mágicos que se completavam com o desaparecer do sol, como se devorado pelas águas do rio, persistindo por algum tempo uma auréola cor de brasa que aos poucos também se esvaía. Um cenário indescritível. O lusco-fusco apreciado às margens do “Rio São Francisco e sob a sonoridade do campanário do Convento de São Francisco”. Aquele espetáculo povoou minha mente com mistérios que me intrigaram por muitos anos: porque as aves voavam em bandos, alguns até traçando figuras geométricas? Porque grupos voavam rio acima, outros, rio abaixo, enquanto outros se embrenhavam nas matas? Aquela desorganização – era o que me parecia – foi revivida anos depois, quando passei a morar em cidades grandes. Espetáculo idêntico. Pessoas da zona norte trabalhando na zona sul; as da zona sul trabalhando na zona norte; uns apressavam o passo para chegarem mais cedo em casa; outros que vinham de casa apressavam-se para assumir seus postos de trabalho noturno. O teatro era o mesmo, mudavam os figurantes.

      No fim do ano os sinos emitiam sons mais afinados, mais audíveis, mais alegres. A explicação desse repicar diferente fez-me compreender que o tempo era dividido em anos e que os anos tinham fim,  embora a vida seguisse o seu ritmo regularmente; as águas caudalosas do Grande Rio deslizavam com a mesma lentidão; os dias amanheciam e anoiteciam invariavelmente. Tudo isso parecia uma desobediência natural aos convencionalismos.

      Mas o repicar dos sinos era diferente. Até dançávamos ao ritmo das badaladas. Coisas de criança!

      Também havia mudanças na dinâmica da minha família. Meu pai ficava mais pensativo, apressava-se para entregar as encomendas de portas toscas que produzia sob uma grande mangueira onde à noitinha e ao amanhecer alguns pássaros entoavam cantos estridentes. Minha mãe virava noites na velha máquina de costura para dar conta das encomendas: vestidos de chita, que as mocinhas passeavam na Festa de Natal, agarradas nos braços umas das outras com caranguejos encangados. Tempo curto para os meus pais atenderem aos compromissos de fim de ano. Tempo bem aproveitado por nós, as crianças. Saltar das barrancas nas águas quentes do rio; caçar ninhos de passarinhos; armar arapucas e mundés e várias outras traquinagens... Doce negligência! Afinal, era Natal!

      Mais próximo da festa minha mãe abria um imenso baú com roupas guardadas há anos para reaproveitamento. Comprava-se o mínimo. Apenas o indispensável. A roupa usada pelo irmão maior no natal anterior era a roupa nova do irmão menor do próximo natal. Essa era a ordem natural dos fatos.

      Como havia um irmão mais velho que eu, não me lembro de ter usado alguma vestimenta que não fosse daquele baú. A ausência de vaidade, a simplicidade infantil somada a outros condicionantes fazia-me aceitar tudo com naturalidade.

      Passou-se o tempo, até que um desses dias de seleção das alfaias festivas, as posições se inverteram. Estava mais alto que meu irmão mais velho, porém muito magro. Um fiapo.

      - A calça ficou ótima! – amenizava minha mãe. – Basta descer um pouco a bainha! A camisa está curta, mas quase não dá pra notar!... Esse está pronto. Quem é próximo?

      Um silêncio intrigante. Apenas minha mãe falava, explicava, justificava... Os filhos sentados em volta, cada um esperando o seu momento. Meu pai assistia a tudo, impassível, embora de uma lassidão indisfarçável. Se consultado era sempre lacônico. Aquela cena não lhe agradava. Tínhamos certeza que sofria em silêncio. Nãoera aquilo que ele pretendia para nós. “Mas entre o querer e o poder há uma lacuna quase intransponível para a maioria dos mortais comuns”.

      Os sapatos. Outro malote aberto. O odor de mofo e de couro fermentado era impregnante. Quando mexidos então, tornava-se quase insuportável. Mesmo assim, aos poucos iam se formando os pares. Às vezes eram apenas parecidos. Quem iria perceber? À noite e, por tão pouco tempo...

      - Force mais o pé, menino! Colabore! Insistia minha mãe num apelo aflito. Colaborar não estava em minhas pretensões. A roupa já fora escolhida. A que o meu irmão vestiu no Natal anterior. O sapato permitia-me burlar a observação para usar algo novo pela primeira vez, aliás, momento por demais esperado.

      - Resolvo isso já!  Disse minha mãe. Retirou-se e em poucos minutos estava de volta. – Calce essa meia! Calcei. Agora tente novamente! Enfiei o pé no sapato e ela muito habilmente pôs uma colher no meu calcanhar e... Que frustração! Na primeira tentativa estava eu de sapato velho. Nada mais cabia senão protestar. Meu pai assistia a tudo sem mover um músculo. Talvez tão frustrado quanto eu, pelos mesmos motivos, mas em planos diferentes.

      - Isso deve ser castigo! Esbravejei. Até a Missa do Galo, do Nascimento de Jesus Cristo tenho que ir com um sapato menor que o pé! E continuei disparando o meu elenco de teimosia natural da idade.  Quando o protesto margeava o abuso, uma voz firme ecoou na sala: - Moço, sente aqui!... Era o meu pai, arrastando para perto de si um banquinho de três pernas. Olhou-me no fundo dos olhos e com a lassidão natural dos que padecem, fez sua homilia quase desesperada: preste bem atenção, rapaz: todo dia nasce e morre vários Jesus cristos! Aquelas palavras causaram-me sobressalto. Era algo parecido com heresia, com profanação.E continuou ele a narrativa: a diferença do Cristo que você que ir à sua missa de  sapatos novos com os que acabei de me referir é que Aquele carregou uma única cruz e foi chicoteado por algumas horas. Os cristos que me refiro, carregam várias cruzes e são chicoteados por toda a vida!   Aquelas palavras incisivas, aquela comparação em princípio esdrúxula deixaram-me atordoado. Levou vários anos para que eu as compreendesse.

     - Reveja seu comportamentocontinuouou terás que enlarguecer os ombros para conduzir várias cruzes. Trate também de engrossar o couro das costas porque a vida bate sem piedade!... A sua voz já estava trêmula ao proferir as últimas palavras. Eram afirmações fortes no dizer, porém havia algo de piedade naqueles olhos brilhantes, úmidos. Retirei-meem silêncio. Faltaram-me argumentos.

      Passaram-se alguns natais, até que um dia dei-me conta que estava de roupa nova, comprada para aquela ocasião e com etiqueta de marca famosa. Coisas do destino.

      Também não demorou muito para a vida me fazer sentir o impacto da vergasta.

      Com ou sem razão, inocente ou culpado, venho acumulando cruzes dia a dia, mesmo não possuindo ombros largos como me fora avisado. As palavras ditas pelo meu velho pai com tanta sabedoria e que no passado soaram como insulto, hoje ecoam com a decantação quase profética dos homens sensatos, que meditam antes de se fazerem ouvir!

 

     ... E Antes que me esqueça,

 

                                                       FELIZ NATAL!

 

                                         Recife-PE, dezembro de 2009.

 

 

 

                                                     ARIONALDO DE SÁ

 

 

 


Autor: Arionaldo De Sá


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