O câncer do Lula



O Câncer do Lula 

(Introdução: Trata-se naturalmente de uma notícia envelhecida da qual nada mais se pode extrair. Portanto, tranquilizem-se: serei breve.) 

Susan Sontag abriu seu ensaio “A Doença como Metáfora” lembrando que “As fantasias inspiradas pela tuberculose no século passado, e pelo câncer agora, constituem reflexos de uma concepção segundo a qual a doença é (...) um mal não compreendido numa era em que a premissa básica da medicina é a de que todas as doenças podem ser curadas”. Parece ter sido com esse espírito moderno, nada empírico, que Lula aceitou sua nova doença. Digo “nova” porque certamente esta não foi a primeira. Parece também que esse espírito moderado e tranquilo (e até piadista) surgiu impulsionado mais pelo exemplo próximo do que pelo conhecimento que ele tem sobre a doença: Dilma, sua herdeira, também teve câncer e, pelo que dizem, curou-se. Ou seja, com ele não há de ser diferente.

Não ficou claro, entretanto, por que exatamente ela tenha sido escolhida como exemplo de perseverança e vitória, afinal de contas, José Alencar, outro amigo de Lula, e também do meio político, morreu da mesma doença recentemente. E, com justiça, em matéria de perseverança, ele leva muito mais mérito. Segundo desconfio, essa tranquilidade suspeita do ex-presidente deve-se menos ao conhecimento de sua doença do que ao mal conhecimento da doença em si, como um mal geral e engenhoso, que ceifa uns e poupa outros ao sabor da vontade...

 *

 O câncer é a doença do momento. Por todos os lados encontra-se alguém que dê testemunho dele: atores, apresentadores de tv, jovens, idosos, políticos. E por se tratar de uma doença ocasional, ou seja, que não é adquirida por contágio como a gripe ou a AIDS, o mito em torno dele parece ter-se deslocado: o que antes se fixava no medo, no prenúncio de morte ou de mutilação (como no caso de câncer de mama e, num grau menor, no de pele), agora se concentra nas bordas. O canceroso fala de seu mal como se não o levasse a serio, assim como se se referisse a um visitante inconveniente que insiste em instalar-se em nossa casa, mesmo sabendo que não é bem-vindo. Esse deslocamento é impensável quando o assunto são doenças contagiosas, e isso porque a sobrevida do paciente é, por si só, estigmatizada. A culpa não se dissolve, nem depois da cura. Ocorre o mesmo em casos epidêmicos. Vejamos a dengue: quando uma comunidade é atacada, ela sabe que não é por má sorte, mas sim por descuido. Todas as campanhas divulgadas alertam para a responsabilidade de cada um de combater o mosquito, em outras palavras, se seu filho for picado, a culpa é sua — afirmação facilmente contestável, mas, por incrível que pareça, utilizada e aceita por todos. No câncer, a culpa não tem lugar. O doente é a vítima que não pôde optar, é a casa invadida por um malfeitor: “de todas as casas do condomínio, logo a minha foi escolhida” — esse sempre foi e continua sendo o lema do canceroso. Mas tornou-se um lema bonachão, do qual até se pode rir. É o lema do azarado.

Talvez, o mito (ou o lema) mais eficaz do câncer que tenha se mantido intacto seja o da queda dos cabelos, aparentemente inevitável. Com efeito, as declarações dos doentes ilustres a respeito da careca temporária que os espera remete a uma insuportável irreverência, em muitos casos totalmente incoerente com suas personalidades — como no caso de Dilma, que, à época, era conhecida pela seriedade e pela discrição. Essas declarações, de certa forma, cooperam para a história moderna do câncer: há menos de 20 anos, a última preocupação de um canceroso seria com a possibilidade de perder os cabelos. Hoje, a certeza de morte se afastou de tal maneira que já é possível falarmos com bom humor do “entorno” da doença. Isso talvez demonstre que tenhamos evoluído. Fazer piadas daquilo que nos ameaça sempre foi um presságio de emancipação, tal como o filho crescido que relembra com humor as surras que levava da mãe. “Gracejar” da morte iminente talvez seja um meio de não morrer.

 Triste é pensar que o câncer é de todos nós, e não apenas dos mais conhecidos. E quando digo “todos”, refiro-me àqueles de quem pouco ou nada se ouve falar. Em 2001, o então coordenador do Ambulatório do índio da Unifesp, Jorge C. Filho, declarava ao jornal O Estado de São Paulo que “índio também tem câncer”, alertando para o crescimento dos casos da doença entre os indígenas “mesmo sem estarem expostos a agentes químicos cancerígenos”. Declaração que, sem dúvida, cria uma contradição indissolúvel: cabe ainda evocar a teoria do fator genético quando o assunto é câncer nos índios? Se sim, teríamos consequentemente que afirmar que essa é uma doença (da genética) dos brancos. Mas existe genética branca, indígena ou negra?

Mais recentemente, em julho, Nelson Carmelo, chefe do Distrito de Saúde Especial Indígena do MS, relatou à imprensa que na aldeia de Porto Lindo, em Japorã, a mãe de uma índia de 8 anos de idade, que tem câncer na perna, quer que seja realizado um ritual de cura pelo rezador da aldeia, apesar de os médicos afirmarem que o único meio de cura seria a amputação do órgão da criança.

Essas notícias — além de deixar claro que as piadas dos cancerosos sobre a queda de cabelo durante a quimioterapia são, sim, estúpidas e insensíveis — nos lembram que o Câncer não é só do Lula ou da Dilma. Na verdade, o Câncer não é nem dos cancerosos; ele é um Ser independente, que quer ou precisa existir a todo custo. Talvez a metáfora mais cruel sobre ele — e que escapou à Susan Sontag em seu ensaio — é que o câncer é também uma Pessoa, é um viajante livre que se instala onde quer e que não se prende a ninguém. É exatamente isso o que deveria nos afligir: o câncer, esse nosso amigo, não é de ninguém. 

Sodine Üe (30 de outubro de 2011) 


Autor: Sodine Üe


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