Uma análise foucaultiana da sexualidade



INTRODUÇÃO

 Durante séculos o tema sexo foi condenado a viver reprimido entre quatro paredes. Falar de sexo era uma transgressão deliberada às normas sociais e aos bons costumes. Nas última décadas, no entanto, tem-se falado muito do assunto. O tema é abordado sob vários aspectos e por áreas de interesse diversas: saúde, educação, economia, etc.

Em seu livro História da sexualidade, volume I, A vontade de saber,  Foucault faz uma análise histórica da relação sexo e poder, evidenciando o que ele chama de “discursos hipócritas” que levaram nossa sociedade** a negar seu sexo, associando-o ao pecado e questiona porque, ainda hoje, pecamos contra o nosso sexo, por abuso de poder?
 

UMA ANÁLISE FOUCAULTIANA DA SEXUALIDADE

 

Durante muito tempo, em nossa sociedade, a sexualidade foi vista com naturalidade e franqueza. Sem segredos. Até o final do século XVI, falava-se em sexo sem constrangimentos, sem disfarces. Havia certa tolerância ao que se referia a sexualidade, aos códigos da grosseria, da obscenidade e da decência.

Gestos diretos, discursos sem vergonha, transgressões visíveis, anatomias mostradas e facilmente misturadas, crianças astutas vagando, sem incômodo nem escândalo entre os risos dos adultos: os corpos pavoneavam. (FOUCAULT, 1988, p. 9).

Contudo, a partir do século XVII, essa tolerância acaba. O sexo deixa de ser visto com naturalidade. Em torno dele, cria-se uma série de mecanismos de repressão que o condena ao desaparecimento, impõe-lhe o silêncio e afirma sua inexistência. Declara-se que, acerca do sexo, não há nada para dizer, nem para ver, nem para saber. O sexo passa a ter uma única função: a de reproduzir. É transportado para dentro de casa e condenado ao único lugar de sexualidade reconhecida: o quarto dos pais. Local utilitário e fecundo. Tudo o mais é negado e reduzido ao silêncio.

Isto posto, Foucault (1988, p. 11) questiona: “estaríamos liberados desses dois longos séculos onde a história da sexualidade devia ser lida, inicialmente, como a crônica de uma crescente repressão?”.

O próprio Foucault responde: muito pouco. Ele considera que, devido a ligação entre poder, saber e sexualidade, seria pagar um preço muito alto para se alcançar a liberdade.

 Seria necessário nada menos que uma transgressão das leis, uma suspensão das interdições, uma irrupção da palavra, uma restituição do prazer ao real, e toda uma nova economia dos mecanismos de poder; pois a menor eclosão de verdade é condenada politicamente (FOUCAULT, 1988, p. 11).

 

A ligação entre poder, saber e sexualidade, a que Foucault se refere, relaciona-se com o momento histórico em que ocorre a repressão. Esta se dá, coincidentemente, com o desenvolvimento do capitalismo.

O sexo, que viveu séculos de expressão livre, passa a ser incompatível com a nova ordem social. Como, numa sociedade capitalista, o importante é a produção, nenhum prazer poderia desviar a atenção da força de trabalho. Por conta disso, o sexo só era tolerado em sua função de reprodução.

O sexo e seus efeitos não são, talvez, fáceis de decifrar; assim recolocada, sua repressão é facilmente analisada. E a causa do sexo – de sua liberdade, do seu conhecimento e do direito de falar dele – encontra-se com toda legitimidade, ligada às honras de uma causa política: também o sexo se inscreve no futuro (FOUCAULT,1988, p.12).

 Segundo Foucault (1988), mesmo quando tentamos tirar do sexo sua natureza pecaminosa, pecamos contra ele por ter imaginado que ele tivesse essa natureza falível. O autor considera que a repressão ao sexo está tão profundamente firmada que será necessário um longo trabalho, uma batalha contra os poderes repressivos, que reprime com particular atenção as chamadas, energias inúteis, a intensidade dos prazeres e as condutas irregulares.  Portanto, não se podem esperar os efeitos dessa liberação imediatamente, eles demoram a se manifestar.

O fato de falar-se do sexo livremente e aceitá-lo em sua realidade é tão estranho a linguagem direta de toda uma história, hoje milenar, e, além disso, é tão hostil aos mecanismos intrínsecos do poder, que isto não pode senão marcar passo por muito tempo antes de realizar a contento sua tarefa. (FOUCAULT, 1988, p. 15)

 Partindo desses pressupostos, Foucault, levanta alguns questionamentos acerca do que se falou sobre sexo no seio das sociedades modernas a partir do século XVII, no intuito de “determinar em seu funcionamento e em suas razões de ser, o regime de poder – saber – prazer que sustenta, entre nós, o discurso sobre sexualidade humana”.(FOUCAULT, 1988, p. 16). Ou seja, a colocação do sexo em discurso, a afirmação da sua importância, levar em consideração o fato de se falar de sexo, quem fala, o que fala, onde se fala.

Considerando que as pessoas querem saber sobre sexo e falar dele, Foucault discute os pontos importantes nos discursos produzidos sobre sexo, ao longo da história. Questiona os interesses por trás dos discursos e a veracidade dos mesmos, tendo em vista sua relação com o poder. E, questiona, ainda, a incitação ao discurso, numa época considerada de censura e repressão, ponderando que, apesar da repressão, a vontade de saber supera os obstáculos e constitui uma ciência da sexualidade:

“Ora, uma primeira abordagem feita desse ponto de vista parece indicar que, a partir do fim do século XVI,  a colocação do sexo em discurso, em vez de sofrer um processo de restrição, foi, ao contrario, submetida a um mecanismo de crescente incitação; que as técnicas de poder exercidas sobre o sexo não obedeceram a um principio de seleção rigorosa mas, ao contrario, de disseminação e implantação das sexualidades polimorfas e que a vontade de saber não se detém diante de um tabu irrevogável, mas se obstinou – sem dúvida através de muitos erros – em constituir uma ciência da sexualidade”. (FOUCAULT, 1988, p. 17-18))

 

A colocação do sexo em discurso

 Como vimos acima, com o advento do capitalismo, o sexo passa a sofrer uma série de interdições. O falar sobre sexo só é permitido para proibi-lo, condená-lo, do contrário, impõe-se lhe o silêncio.

Após três séculos de interdições, as coisas parecem ter mudado: “em torno e a propósito do sexo há uma verdadeira explosão discursiva”.(FOUCAULT,1988, p. 21). Contudo, essa explosão discursiva, não significa a libertação do sexo. Pelo contrário, é a afirmação da sua repressão.

Entretanto, no nível dos discursos, muita coisa mudou. Houve uma proliferação dos discursos indecentes, principalmente, a partir do século XVIII. Para Foucault (1988), as interdições, a censura provocaram, como efeito colateral, a valorização e intensificação desses discursos. Mas também, houve a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do exercício do poder. Houve uma incitação a falar de sexo e falar cada vez mais. Todavia, esse falar de sexo era ordenado de acordo com os interesses do poder.

“Um discurso obediente e atento deve, portanto, seguir, segundo todos os seus desvios, a linha de junção do corpo e da alma: ele revela, sob a superfície dos pecados, a nervura ininterrupta da carne. Sob a capa de uma linguagem que se tem o cuidado de depurar de modo a não mencioná-lo diretamente, o sexo, é açambarcado e como que encurralado por um discurso que pretende permitir obscuridade nem sossego”.(FOUCAULT, 1988 p. 23)

 Pregava-se a importância da confissão, como meio de desvendar os segredos dos homens, utilizando-se de um discurso onde o sexo era tratado como pecado, atentado a moral, que deveria ser expurgado.

Por volta do século XVIII, o discurso sobre sexo deixa de ter cunho, essencialmente, religioso e torna-se um discurso político, econômico e técnico. Entretanto, essa incitação política, econômica e técnica não visava criar uma teoria da sexualidade, e sim analisar, contabilizar, classificar e especificar o sexo, através de pesquisas quantitativas e causais. Daí Foucault dizer que é necessário “levar em conta” o sexo, formular sobre ele um discurso que não seja unicamente o da moral, mas da racionalidade. É preciso superar alguns escrúpulos, o moralismo que estes revelam e a hipocrisia que neles podemos vislumbrar.

Deve-se falar de sexo e falar publicamente, de uma maneira que não seja ordenada em função da demarcação entre o lícito e o ilícito, mesmo se o locutor preservar para si a distinção (é para mostrá-lo que servem essas declarações solenes e liminares); cumpre falar de sexo como de uma coisa que não se deve simplesmente condenar ou tolerar, mas gerir, inserir em sistemas de utilidade, regular para o bem de todos, fazer funcionar segundo um padrão ótimo.(FOUCAULT, 1988, p. 27)

 Com a colocação do sexo em discurso, surge, nas instâncias do poder, a necessidade de se criar mecanismos de regulação dos discursos, de modo a torná-los úteis e públicos, tirando-lhes o rigor de uma proibição.

Para esclarecer melhor, Foucault cita dois exemplos de como se deu essa regulação; primeiro, o surgimento da população, enquanto problema econômico e político. Os governos deixam de lidar com sujeitos e passam a lidar com uma população e suas variáveis. São essas variáveis que levam os governos a pensarem o sexo como um problema de ordem pública, já que, ele está no cerne dos problemas econômicos e políticos. Por conta desses problemas, taxa de natalidade, a idade dos casamentos, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a precocidade e a frequência das relações sexuais, a conduta sexual da população passa a ser analisada e sofrer intervenções, através de discursos calculados, que incitam ou reprimem de acordo com os interesses políticos e econômicos.

Através da economia política da população, forma-se toda uma teia de observações sobre o sexo. Surge a análise das condutas sexuais , de suas determinações e efeitos, nos limites entre o biológico e o econômico. Aparecem também as campanhas sistemáticas que,  à margem dos meios tradicionais – exortações morais e religiosas, medidas fiscais – tentam fazer do comportamento sexual dos casais uma conduta econômica e política deliberada. (FOUCAULT, 1988, p. 29).

 Outro exemplo citado por Foucault diz respeito ao sexo das crianças. Se, até o inicio do século XVII as crianças circulavam entre os adultos com total liberdade e tinham sua sexualidade respeitada, a partir daí, seu sexo é negado. Contudo, o negar o sexo na criança, não significa não falar dele, ao contrário, fala-se de outra forma. Os colégios do século XVIII, por exemplo, apesar de, aparentemente, não falar em sexo, tinham na sua arquiteturas, nos regulamentos de disciplina e em toda a sua organização interior o sexo implícito.

O espaço da sala, a forma das mesas, o arranjo dos pátios de recreio, a distribuição dos dormitórios (com ou sem separações, com ou sem cortinas), os regulamentos elaborados para a vigilância do recolhimento e do sono, tudo fala e maneira mais prolixa da sexualidade das crianças (FOUCAULT, 1988, p. 30) .

 Os discursos acerca do sexo não cessaram, pelo contrario, se proliferaram do século XVIII até os nossos dias. E tais discursos, não se distanciaram do poder. Junto a ele, foi incitado a falar. Criaram-se “dispositivos para ouvir e registrar, procedimentos para observar, interrogar e formular. Desenfurnam-no e obrigam-no a uma existência discursiva”. (FOUCAULT, 1988).

 Sexualidade e educação

 Apesar de não tratar diretamente de educação, pode-se observar, na obra de Foucault, o quanto ela está intrinsecamente relacionada ao sexo, principalmente, no que diz respeito à ligação entre sexo e poder.

Foucault, a principio, não faz distinção entre sexo e sexualidade. Em muitos momentos, ele usa os dois termos como sinônimos. Entretanto, apesar de parecerem sinônimas, as palavras diferem completamente uma da outra. Enquanto sexo significa “características físicas e psicológicas que distinguem os machos das fêmeas; atributos que determinam o gênero de uma pessoa, também as funções e os processos envolvidos no ato sexual e na procriação”.(GOLDENSON & ANDERSON, 1989), sexualidade quer dizer:

Capacidade de comportar-se sexualmente, isto é, de responder a estímulos eróticos e obter prazer de atividades sexuais como as preliminares, o ato sexual e a masturbação. A sexualidade envolve não somente os órgãos genitais, mas todas as zonas erógenas do corpo, assim como vontades, desejos e fantasias associadas ao sexo. (GOLDENSON & ANDERSON, 1989).

 Ou seja, a sexualidade incorpora todo o universo do ato sexual, levando em consideração aspectos físicos, psicológicos, sociais, religiosos, econômicos, políticos e culturais. E, é nesse sentido que ela está relacionada com o poder.

Com a repressão do sexo, imposta pela nova ordem social, coube a três profissionais garantir que os discursos proferidos sobre sexo não fugissem as regras estabelecidas: o padre, o médico e o pedagogo. Ao primeiro cabia escutar as confissões, exaltando os males de uma vida sexual “ilícita”. Ao segundo cabia diagnosticar as sexualidades “anômalas”, combatendo, assim, qualquer forma de prazer que ameaçasse o poder. E ao terceiro cabia investigar o despertar da sexualidade nas crianças, assegurando sua interdição.

A nós interessa analisar o papel do terceiro profissional. Portanto, concentrar-nos-emos no papel do pedagogo.

Como dissemos, ao pedagogo, cabia garantir a negação do sexo das crianças. Por conta disso, o onanismo foi fortemente combatido por esses profissionais, como uma praga a ser extinta. A menor demonstração de prazer infantil era punida. As crianças passaram a ser vigiadas e obrigadas a confessar qualquer manifestação sexual. A pedagogia tornou-se um mecanismo de vigilância e punição. Mais uma aliada ao poder repressivo, que tem nela mais um apoio para a multiplicação do seu discurso repressor.

Segundo Foucault (1988), a família está cheia de sexualidades múltiplas, fragmentárias e móveis. Por conta disso, não pode dar conta sozinha de inibir, interditar as manifestações da sexualidade na criança. Para ajudá-la, as instituições escolares, constituem uma outra maneira de interdição. Porém, esses espaços também estão cheios de sexualidade. Neles são praticadas as formas de sexualidade contrarias ao discurso. Uma sexualidade não conjugal, não heterossexual, não monogâmica. Através dos discursos proferidos nestes espaços, constata-se que a sexualidade infantil existe: precoce, ativa, permanente. Por conta disso, Foucault considera que:

Seria inexato dizer que a instituição pedagógica impôs um silêncio geral ao sexo das crianças e dos adolescentes. Pelo contrário, desde o séc. XVIII ela concentrou as formas do discurso neste tema; codificou os conteúdos e qualificou os locutores. (FOUCAULT, 1988, p. 31).

 Contudo, Foucault ressalta que, essa incitação ao discurso sobre o sexo da criança e do adolescente tratava-se de mais uma estratégia para fazer funcionar outros discursos vinculados a manutenção do poder.

Durante todo o período de colocação do sexo em discurso, a pedagogia foi utilizada como instrumento do poder instituído. A principio, cabia a pedagogia garantir a negação do sexo nas crianças, entretanto, a partir do século XIX, houve uma reformulação no discurso sobre o sexo. Isso não significa dizer que a repressão foi extinta, e, sim, que houve uma mudança de estratégia. O sexo, que, até então, era negado, passa a ser aceito sob condições especiais. E com a pedagogia não é diferente. Aos pedagogos cabia, agora, formular um discurso consonante com as inovações as quais Foucault se refere como “uma nova tecnologia do sexo”.

Ainda hoje, a pedagogia profere discursos sobre o sexo ordenados de acordo com os mecanismos de poder. Contudo, os discursos não têm mais o teor repressivo de outrora. Os interesses do poder mudaram, e com eles, os discursos.

 CONCLUSÃO

 Nossa sociedade talvez tenha sido a que mais discutiu sexo, num período histórico, relativamente curto. Porém, não somos uma sociedade que vê o sexo com naturalidade, pois, os discursos produzidos, ao longo desses três séculos, tinham um único objetivo: reproduzir a força de trabalho, a forma das relações sociais, tornando a sexualidade economicamente útil e politicamente conservadora.

A ordem social evoluiu, porém, na sua essência continua a mesma. Se, antes, a compreensão do instinto sexual era negada, hoje em dia, como diz Foucault, ela importa mais que o ato sexual. Se, antes, o interesse, implícito no discurso, era reproduzir a força de trabalho, hoje, o interesse é conter os índices de natalidade. Enfim, os discursos mudam, mas, permanecem os mesmos, voltados para interesses políticos e econômicos. E, hoje, mais do que nunca, cabe a educação o papel de oferecer essa compreensão do instinto sexual, a que se refere Foucault, tendo em vista a importância da mesma no exercício do poder.

 
 

REFERÊNCIAS

 

FOUCAUL, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. 14ª Ed. Rio de Janeiro: Graal, 1988.

 GOLDENSON, Robert M. & ANDERSON, Keneth N. Dicionário de Sexo. São Paulo: àtica, 1989.


* Uma referência as sociedades ocidentais, e não, especificamente, a sociedade brasileira. (N da A.)

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Autor: Jaqueline Alves De Souza


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