Meio ambiente, poder público e desapropriação



                        Meio Ambiente, Poder Público e Desapropriação

 

                                                    A terra ensina-nos mais acerca de nós próprios do que 

                                                    todos os livros. Porque ela nos resiste.          

Antoine de Saint-Exupéry

 

                           As contagens indicam que somos atualmente mais de sete bilhões de pessoas vivendo no planeta terra. E acelerando, já que o crescimento da população se dá em progressão geométrica.

                           Cada vez mais se faz necessário o planejamento para o crescimento ordenado dos centros populacionais, as cidades, para que o homem e o meio ambiente acertem uma forma de conviver de modo saudável e sustentável, haja vista sua interdependência.

                          Apesar das primeiras cidades terem se desenvolvido por volta do ano 3500 a.C., na antiga Mesopotâmia, somente na primeira metade do século XIX, em decorrência da Revolução Industrial, é que apareceu o fenômeno da urbanização, característico das cidades como conhecemos. As cidades modernas caracterizam-se por agregarem atividades comerciais e industriais, estabelecendo uma diferenciação com o espaço rural, onde a atividade predominante é a agrícola.

                         Inicialmente o crescimento era absolutamente livre, dando-se as aglomerações normalmente onde se encontrasse água e terras férteis.

                         Após a Revolução Industrial, o adensamento populacional modificou-se em suas características intensificando as relações de mercado e concentrando os espaços de troca nos locais mais habitados além da instalação das indústrias no entorno de onde se encontrava a mão de obra necessária.

                        Esse fenômeno  provocou um crescimento desordenado, sem planejamento, que acabou por interferir fortemente no meio ambiente.

                      Segundo Eugine Odum, as cidades ocupam não mais do que 5% do mundo inteiro, contudo elas alteram os rios, matas e campos cultivados, florestas, a atmosfera. E essas alterações decorrem principalmente pelos usos e apropriações de diversos agentes humanos sobre o solo, a água, o ar. Nas cidades brasileiras, identificam-se alguns dos agentes da degradação das condições ambientais. O primeiro parece ser a urbanização, sobretudo porque ocorreu, junto com a industrialização, de forma abrupta nas grandes cidades e tendendo a fazer o mesmo com aquelas consideradas de menor porte, mas não de menos importância.

                     A ocupação desordenada e em áreas de riscos pela população, a falta de todas as infra-estruturas sociais, a exemplo de saneamento básico, saúde e transporte, aliada à falta de planejamento público, o consumismo exagerado das populações, a poluição da água, do ar e das paisagens, a ausência de áreas verdes nas cidades e outras mazelas, frutos do caráter predatório da expansão econômica capitalista, vêm corroborando para deterioração da qualidade de vida do homem nas cidades.

 

                     Em meados do século passado, o Brasil começa a se preocupar com os danos ambientais causados pelo crescimento populacional e econômico, além dos “alertas” expedidos tanto pela Europa como Ásia e Norte América, já que essas estavam e estão amargando as conseqüências de seu desmesurado e incauto desenvolvimento.

                  

                      O Poder público inicia uma série de estudos e debates sobre a questão ambiental e já não era sem tempo. Começa a criar mecanismos de intervenção e legislar sobre o meio ambiente.

                    

                        A preocupação começa a tomar formas e por fim nasce o Estatuto da Cidade em 2001, com a Lei 10.257 de 10 de julho do mesmo ano que veio a regulamentar os dispositivos constitucionais já insculpidos na Carta Magna de 1988.

Dispõe a lei federal que o objetivo da política urbana é “ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana” (art. 2º, caput). Para alcançar esse desiderato, estabelece diversas diretrizes, como o planejamento do desenvolvimento das cidades, da distribuição espacial da população e das atividades econômicas do Município; a ordenação e controle do uso do solo; a proteção, preservação e recuperação do meio ambiente natural e construído, do patrimônio cultural, histórico, artístico, paisagístico e arqueológico; e a garantia do direito a cidades sustentáveis.

Nota-se, pois, que o Estatuto da Cidade coloca a sustentabilidade do meio ambiente urbano como um direito, concebido como “o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infra-estrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações” (art. 2º, inc. I).

                   

                          A responsabilidade com a qualidade de vida no espaço urbano não é inovação desse diploma legal. Na verdade, esse debate vem desde a Declaração sobre Assentamentos Humanos, adotada pela primeira Conferência das Nações Unidas sobre Assentamentos Humanos (Habitat I), ocorrida em Vancouver em 1976.

                           

                          Contudo, fazer uma interface entre a matéria urbana e a ambiental não é uma tarefa nada fácil. Analisando o texto dos artigos da Constituição Federal, nota-se que enquanto a política urbana está inserida na Ordem Econômica e Financeira, visando, sobretudo, à regulação da propriedade privada, a temática ambiental está disposta na Ordem Social, focalizando os bens comuns, que são direitos difusos, tendo titulares indetermináveis.

 

                    A legislação federal institui os parâmetros gerais, a estadual especifica outro tanto, mas a efetividade fica com as políticas públicas em nível municipal.         Planejar o espaço urbano significa remeter ao futuro das cidades, buscando medidas de precaução contra problemas e dificuldades, ou ainda, aproveitando melhor possíveis benefícios. Para isso é necessário planejar.

 

                    Para se realizar esse planejamento, existem diversos instrumentos dos quais pode se valer o Poder Público Municipal, que variam conforme a complexidade de cada mecanismo. A Lei 10.257/2001 enumera exemplificadamente os seguintes instrumentos de planejamento municipal: disciplina do parcelamento do uso e da ocupação do solo; zoneamento ambiental; plano plurianual; diretrizes orçamentárias e orçamento anual; gestão orçamentária participativa; planos, programas e projetos setoriais; planos de desenvolvimento econômico e social; e, finalmente, o Plano Diretor, exigido das cidades com pelo menos 20.000 habitantes e aconselhável às de menor população. É por meio do plano que se define o melhor modo de ocupar um município ou região, prever as áreas onde se localizarão os pontos de lazer, as atividades industriais e todos os usos do solo, não somente no presente, mas também no futuro. Isso permitirá a consolidação de valores com vista à qualidade de vida urbana.

 

                      Porém, a preocupação com o uso adequado do solo, a preservação e outras determinações governamentais em âmbito municipal esbarram severamente com o Direito de Propriedade, esse também insculpido na Constituição Federal e no Código Civil brasileiro.

                           “É garantido o direito de propriedade” (art. 5º, XXII da CF). O direito de propriedade é um direito individual e como todo direito individual, uma cláusula pétrea.

 

O direito de propriedade é tão importante que já aparece no “caput” do artigo 5º. – “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes” (art. 5º, “caput” da CF).

 

A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: II propriedade privada; III função social da propriedade privada” (art. 170, II e III da CF).”

 

Mas também determina a função social da propriedade:

O direito de propriedade não é um direito absoluto, assim o proprietário tem que dar uma função social à propriedade. “A propriedade atenderá a sua função social” (art. 5º, XXIII da CF).

 

  • Função social da propriedade urbana: “A propriedade urbana cumpre a função social quando obedece às diretrizes fundamentais de ordenação da cidade fixadas no plano diretor” (art. 182, §2º da CF). O plano diretor estabelecerá quais áreas são residências, comerciais e industriais; quais são as zonas de tombamento e etc.

    “O plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana” (art. 182, §1º da CF).

    “A política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público Municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes” (art. 182 da CF).

 

 

                 Mesmo prevalecendo os interesses sociais e não os individuais, não pode o Poder Público interferir na propriedade privada simplesmente por decisão aleatória. Há todo um regramento necessário que também é previsto em lei.

 

“O Estado poderá intervir na propriedade privada e nas atividades econômicas para propiciar o bem estar, desde que obedeça aos limites constitucionais que amparam o interesse público e garantem os direitos individuais.

 

    • Se a propriedade estiver cumprindo a sua função social: A intervenção só pode ter por base a supremacia do interesse público sobre o particular, ou seja, só poderá ser feita por necessidade pública, utilidade pública, ou por interesse social. A indenização neste caso se da mediante prévia e justa indenização em dinheiro.

      “A lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição” (art. 5º, XXIV da CF).

      “As desapropriações de imóveis urbanos serão feitas com prévia e justa
      indenização em dinheiro” (art. 182, §3º da CF).”

 E mais:

  • Decreto-lei 3365/41: Dispõe sobre desapropriações por utilidade pública. Conhecida como a Lei Geral das Desapropriações.

 

  • Lei 4132/62: Define os casos de desapropriação por interesse social. Nos casos omissos aplica-se o decreto-lei 3365/41.

 

  • Decreto-lei 1075/70: Regula a imissão provisória na posse em imóveis residenciais urbanos habitados por seus proprietários ou por compromissários compradores que possuam seus títulos registrados no Registro de imóveis.

 

  • Lei complementar 76/93 alterada pela Lei complementar 88/96: Dispõe sobre o procedimento contraditório especial, de rito sumário, para o processo de desapropriação de imóvel rural, por interesse social, para fins de reforma agrária.

 

  • Lei 10257/01 (Estatuto da Cidade): Disciplina a desapropriação para fins de política urbana.

 

  • Lei 8629/93 e Lei 4504/64 (Estatuto da terra).

 

 

                      O assunto é vasto e profícuo e há que se levar em consideração seu relativismo de novidade. Vários têm sido os entendimentos dos Tribunais que por vezes produzem jurisprudências contraditórias. O que se vê é uma generalização na legislação ficando ao cargo do Poder Municipal a decisão maior para a eficácia legal e cumprimento dos objetivos sérios de preservação, reconstrução e conservação do meio ambiente, guardando os interesses sociais além de observar e cumprir o direito de propriedade.

                           Os instrumentos legais urbanísticos buscam também a solução dos problemas ambientais das cidades brasileiras. Desde as diretrizes do Estatuto da Cidade, fica clara uma preocupação do legislador com o equilíbrio ambiental. Entretanto, se pautadas apenas na agenda do município, sem planejamento e previsão orçamentária, sem um aporte, inclusive de recursos financeiros de governos estaduais e federais, os avanços do texto legal, podem ficar, literalmente, no papel. Isso, naturalmente causa prejuízo social, legal e acaba por abarrotar o judiciário com questões dessa natureza, que poderiam ser mais facilmente resolvidas com férrea e comprometida vontade política que merece toda a gratidão da sociedade.

 

 

Julia I. Koster

Advogada e especialista em Administração Pública

 

 

 

 


Autor: Julia. I. Koster


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